MIGUEL TORGA: UM TEMPO QUE NÃO ACABA
Um dia, há sempre um dia em que nos chega a hora de uma iluminação. Assim me chegou o conhecer Torga o grande Torga pelos seus poemas, pelo que eu por eles intuía e via e já sulcava.
Via as serras, os trabalhadores da empa, os ciclos da natureza, o quanto o amor se podia fazer por cachos de uvas. Aprendia. Aprendia que não estava só no socalco da minha ativa espera.
Perguntava-me muito pelas transcendências e não sei se a interrogação, no fundo, não era apenas o adiar de uma certeza que eu tinha.
Encontrava na leitura de Torga um abrir de segredos intocáveis. O Miura condenado a divertir a multidão entregava o pescoço de toiro vencido ao alívio de um gume. Ou a Terra, única mãe de ventre quente, ao legítimo fruto que fazia sair dos seios feitos arvore.
Miguel Torga o poeta, o romancista, o ensaísta, enfim o escritor e o médico já dissera:
Hinos aos deuses, não.
Os homens é que merecem
Que se lhes cante a virtude.
Bichos que cavam no chão,
Atuam como parecem,
Sem um disfarce que os mude.
In Nihil Sibi
O humanismo sentido por Torga pela obra magnífica do homem, pelo trabalho humano exposto à miséria e à doença, à condição de não ser fácil ser virtuoso, nem criador de vida, e, ainda assim um humano constrói paisagem, molda o meio, semeia penedos face à morte e malgrado o limite do homem ser bicho, este homem tão limitado pelo limite, anseia a descoberta de caminhos para chegar às coisas belas e possíveis.
Assim o senti e ainda sinto Miguel Torga, nesta poderosa acepção do perceber.
Como dele disse Mourão Ferreira, Torga vivia na intimidade das forças elementares e para as celebrar aceitava a constante luta numa rebeldia ao que o queria asfixiar.
Fui a Coimbra e visitei-o. Não sei se visitei o seu monasticismo votado à autenticidade sublime da poesia ou de uma escrita, ou a sua fidelidade à medicina: ou se visitei a visita e tão só me era tanto.
Régio e a medicina? Nemésio? Perguntei.
«Teresa, eu barafusto muito com a medicina. De Régio a Nemésio é todo um dia. Tento entender-me.»
Nada acrescentei, mas recordei-me de uns poemas dele – sabia muitos de cor mas envergonhei-me de lho dizer naquela altura.
E ele já escrevera:
A começar por mim – meu principal motivo
De insatisfação (…)
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar.
E mais além, noutra página de um livro de Coimbra de 1956, continuou:
(…) casou-nos o mito
(…) tu com sementes nos pés
(…) sei que não és mentira nem és lenda
Perder-te nada é – perde-se tudo.
No comboio que me trouxe de volta a Lisboa justifiquei cada palavra das quase nenhumas que trocámos. Voltei a agradecer-lhe o ter podido conhecê-lo. Na minha mão o beijo que nela deixou. Então recarreguei a inocência daquela ida e recordei a joaninha que ambos olhámos, olhando-nos, e afinal foi o único momento em que lhe disse «não nos deu para colecionarmos burros». E o Torga sorriu largamente com o perto e a distância de Piódão que então eu não conhecia. E desejou:
«Que alguém te ame muito é o que eu quero!»
Parei o carro há dois anos atrás, num miradouro no regresso de Piódão, e fui ler o que estava escrito numa pedra no alto da Serra do Açor onde faltava o ar por tão nítida a aldeia, e era isto:
Com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada, vim aqui despedir-me do Portugal primevo. Já o fiz das outras imagens da sua configuração adulta. Faltava-me esta do ovo embrionário.
Miguel Torga
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Solicitou-se a reposição deste texto publicado em 2012 neste blogue.