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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO XXI

   
   No seu Tsurezuregusa (ou "Horas de Lazer"), cuja versão francesa, de Charles Grosbois e Tomiko Yoshida (Les Heures Oisives) foi publicada pela Gallimard-Unesco em 1968, Urabe Kenko (1283-1350) conta-nos que, referindo-se a um poema do ex-imperador Go Toba, se perguntou ao nobre senhor Teika: será sinal de mau gosto aliar-se o termo "sode" (manga) ao termo "tamoto" (ponta da manga)? 


   Existe um precedente, respondeu o senhor Teika: «A espiga do caniço, no meio das ervas do prado outonal, não nos lembrará a ponta da manga (tamoto) de um kimono? E não revelará seu rosto o seu amor e não se parecerá com a manga (sode) de uma mulher a chamar o seu amante? Não há pois inconveniente algum em aliar estas duas palavras».


   
Para bem entendermos esta referência, convirá lembrarmo-nos de que as mangas dos vestidos, na China, como no Japão, quando largas, permitem exprimir, de forma plástica, sentimentos, e a própria poesia gosta de evocar tais imagens e artifícios. O poema aqui citado por Teika encontra-se no capítulo do Outono da antologia Shin Kokinshu. As alusões à natureza e suas coisas, tal como ao papel e símbolos do vestuário (padrões, desenhos, cores, jeitos de vestir) são correntes na literatura da era Heian e, mesmo depois das cenas descritas deixarem de ocorrer nos palácios da corte imperial e acontecerem alhures, inclusive nos bairros de prazer, tais alusões se foram mantendo.


   A historiadora Tanaka Yuko, autora de várias obras acerca das representações eróticas (incluindo shunga) no imaginário nipónico, sobretudo na arte e literatura do período Edo, chega mesmo a escrever que aquelas gravuras, as shunga, são como que «o reino do vestuário». Recorro a uma longa citação de Philippe Pons e Pierre-François Souyri (L’Esprit de Plaisir, Payot, 2020) para compreensiva explicação de tal afirmação:


   O vestuário tem um papel importante nas cenas eróticas. Por várias razões. Primeiro, porque a maioria das pessoas no período Edo tinha apenas um fato, e admirar lindas mulheres em sugestivas poses, revestidas de kimonos com cores magníficas devia estimular a imaginação. Além disso, fazer amor meio vestido também lembrava práticas bastante comuns, se pensarmos que fazia frio por vários meses do ano e as casas não estavam especialmente bem equipadas para resistir ao Inverno... Os vestidos japoneses (para homens como para mulheres) são além disso fáceis de arregaçar e não se usava mais roupa interior do que uma espécie de tangas, muitas vezes de cor encarnada quando trazidas por mulheres. Os criadores de shunga tiravam disso partido para revelarem à sua vontade os órgãos sexuais.  


   Nas estampas eróticas, os corpos são, portanto, raramente despidos. 80% das personagens femininas estão vestidas. Desde a era Heian que os tecidos de cores atraentes e os acessórios têm sido descritos na literatura e pintados na iconografia. Tal acontece ainda a partir do século XVII nas shunga, graças ao desenvolvimento das técnicas de coloração das estampas. Os vestidos, sumptuosos e representados até ao ínfimo pormenor, eram parte integrante da imagem erótica. Tornam-se então um elemento discursivo central da estampa e não apenas um pretexto ou elemento decorativo.


   ... Aliás, muitos pintores de shunga eram também desenhadores de moda que conservavam «cadernos de moda» (hinagata bon), de que se serviam com frequência para desenhar kimonos.


  
Será ousado - talvez não disparatado - sugerir que a focalização do poder socialmente correto na regulamentação das práticas sexuais deu azo a que o imaginário popular se escapasse para o reino da exploração de novos fantasmas... Mas não terá o mesmo, ou algo semelhante, ocorrido nas sociedades ocidentais, a partir sobretudo dos anos loucos de entre-guerras? Seja como for, a mania da moda testemunha um novo olhar sobre o corpo humano (designadamente feminino) em sociedade, mais focalizado no erótico e sua circunstância, praticamente esquecido da inocência original da nudez. De certo modo, pode-se concluir que a moda, afinal, é a erotização dos corpos depois de lhes ter sido interdita a exposição pública da sua própria nudez inocente.


   Pela mesma altura, a influência moral e jurídica do "Ocidente" na construção japonesa de conceitos politicamente corretos de pudor e virtude, bem como do respetivo suporte legal e regulamentar produziu o aparecimento e divulgação de vocabulário novo, tal como waisetsu (obscenidade) que surge no código penal de 1880 (art.º 259, sobre "atos obscenos" (waisetsu shogyo) que, no código napoleónico, são mencionados como attentats à la pudeur... Cabe aqui outra longa citação do L’Esprit de Plaisir, que inclui referências a vários comentários de estrangeiros e japoneses:


   No quadro da sua política «virtuosa», o Estado Meiji trata com rigor os banhos públicos mistos. Com mais êxito do que as autoridades shogunais. Tais banhos eram mencionados na maioria dos relatos de quase todos os visitantes estrangeiros da época. Suscitavam a curiosidade dos espíritos mais abertos e a ultra reprovação dos apóstolos da pudibonderia vitoriana. No decurso da sua viagem ao Japão, em 1889, Rudyard Kipling (1865-1936) experimentara uma surpresa entre divertida e reprovadora quando, ao tomar um banho no Hotel Oriental de Kobe, uma jovem cortez lhe propusera juntar-se a ele, oferta que recusou... O homem de negócios e arqueólogo alemão Heinrich Schliemann (1822-1890), que o precedera no Japão, ficou, pelo contrário, chocado. Escreve, em 1865: «Nem concebo como é que sentimentos de pureza e de santidade podem existir na vida de um povo em que, não somente ambos os sexos frequentam os mesmos banhos públicos, mas até mulheres de todas as idades se divertem imenso como espectadoras de pinturas obscenas»... [Alusão às estampas eróticas e a certos espetáculos de rua].


   A intrépida viajante britânica Isabella Bird (1831-1904), que chegou ao Japão em 1878 e por lá peregrinou, é mais tolerante. Filha de pastor anglicano, não parece nada incomodada pela promiscuidade «desses lugares de convívio comunitário». Até via «na presença das mulheres uma garantia contra qualquer consequência perigosa». 


   A despreocupação dos japoneses com a nudez, que punha a maioria dos estrangeiros aos berros, era a expressão de uma atitude desinibida perante o corpo. Os britânicos também se tinham sentido muito chocados pela nudez dos indianos, quando aportaram ao subcontinente. Todos eram habitados pelo puritanismo da época: a nudez era assimilada à desordem, à negrura da alma, à impureza, à vergonha e, portanto, ao pecado. No seu etnocentrismo, recusavam-se a conceber que o limiar do pudor pudesse variar com os diferentes contextos, estima a historiadora Kawano Satsuki. Os banhos públicos, fossem mistos ou não, eram geralmente sombrios, e o vapor esfumava as formas dos corpos. O prazer das abluções e a tranquilidade trazida pelo calor da água levavam a melhor sobre o olhar indiscreto. O romancista Natsume Soseki 
[de quem já falei e é um dos pioneiros da moderna literatura japonesa] evoca em 1909 a imagem de uma mulher vislumbrada no banho de uma estalagem:


   «A silhueta que surgiu à minha frente em toda a sua beleza nada tem de ordinário. Se eu dissesse que ela se despiu, caíria no mundo da trivialidade. A visão é natural, como se aquela silhueta tivesse nascido na era dos deuses, no meio das nuvens, num mundo sem artifício, em que o vestido não tinha razão de ser...   ...Tal visão não se impõe à minha vista com o imediatismo do nu. Surge confusamente, como que numa atmosfera sobrenatural que transforma o real para nos deixar adivinhar a sua beleza cheia de graça».


   
Interessante também será registar aqui duas observações europeias. Uma do nosso já conhecido Basil Hall Chamberlain (1850-1935) e outra de um suiço, Aimé Humbert (1814-1900), que foi ao Japão em 1860. Diz o britânico que "a higiene é mais importante para os japoneses do que a pudicícia artificial ocidental". E escreve o suíço: Por muito estranhos que esses costumes nos possam parecer, nenhum japonês, antes da chegada dos europeus, imaginaria  que a prática de banhos públicos pudesse ser repreensível. Foi o olhar europeu que tornou feio o que antes não o era...


   
Neste trecho de «Em Rebusca do Japão» - tal como noutros - procuro registar narrativas de factos e comentários de outros tempos, Não tomo, nem quero tomar, qualquer partido sobre o maior ou menor fundamento ético das atitudes e comportamentos revelados. Deixo-nos, a todos, a oportunidade de nos refletirmos em diferentes circunstâncias. Até por uma questão de higiene mental que nos livre de preconceitos e juízos temerários.  


   Aliás, no próprio Japão abundam outros exemplos de estilos de vida e códigos morais, e até de promiscuidades envoltas em ambientes e culturas de vária natureza, como que disfarçados. Atentemos, por exemplo, na corte e na aristocracia de Heian Kyo (a capital da paz, atual Kyoto) que, de finais do século VIII aos do século XII, foi um centro de convívio e cultura sui generis, em que a atividade literária era exercício quotidiano e a prática poética instrumento sistemático de comunicação amorosa.


   Já aqui se falou de Murasaki Shikibu e de Sei Shonagon, duas enormes escritoras do século X-XI, cujas obras, com discrição e espírito crítico, nos desvendam a vida social da aristocracia da corte imperial do tempo. Ficamos assim a conhecer os segredos do make up, do vestuário, das boas maneiras e da elegância, quer dos homens, quer das mulheres, os seus jogos e passatempos. Hoje, ressalto a importância da vida amorosa e sexual: Para os homens de Heian-kyo, havia muito campo aberto. Eram todos casados, como soía, mas, de acordo com os preceitos confucionistas de governo das sociedades, o casamento era puramente uma questão política tratada pelos pais quando ambos os parceiros eram jovens, tendo em vista a criação de vantajosas alianças entre famílias. Normalmente, marido e mulher passavam pouco tempo juntos e encontravam-se apenas para procriar. Amor e casamento nada tinham em comum, ainda que a posição da primeira mulher no topo da hierarquia devesse ser respeitada. [Ainda há poucas décadas, falando, no Japão, com japoneses que me anunciavam o seu próximo matrimónio, eu lhes perguntava se conheciam bem as noivas e obtinha como resposta que não ou nem por isso, tudo fora combinado na sequência de um omiai entre famílias e empresas... O amor, diziam, se tiver de vir, virá depois...]


   Além da mulher primeira, o homem suficientemente rico e poderoso para poder fazê-lo, tinha concubinas, digamos que entre quatro e oito. Estas eram mulheres de classes altas, que ele tinha de tratar de acordo com os procedimentos formais e desposar em cerimónia formal. Além disso, nada o impedia de ter relações ocasionais com mulheres ou concubinas de outros homens, damas de companhia e, até, senhoras de inferior condição social (com as quais, evidentemente, não podia estabelecer um vínculo formal) ou, ainda, "mulheres de prazer". A promiscuidade era parte da vida, e um homem que fosse fiel a uma só mulher era considerado algo estranho e incitado a corrigir-se...


  
Estas considerações da britânica Lesley Downer (Geisha - the secret history of a vanishing world, Londres, Headline, 2000) desenham bem o cenário em que se desenrolou a vida aristocrática, e se desenvolveu o gosto estético e a literatura, na cidade e era de Heian-kyo. Mas também nos abrem uma janela para o que viria a ser, em séculos posteriores, a íntima ligação do amor e do sexo (ou do tal "espírito de prazer") com as artes e letras, desde a beleza dos tecidos e adereços ao engenho dos poemas compostos para comunicar mensagens.


   A título de exemplo, traduzo um dos Ise Monogatari (sécIX) e, para cotejo, um trecho dos Ukiyo Monogatari (séc. XVII), ou seja, um poema da era de Heian-kyo e outro da era de Edo ou Tokugawa, em que, com o advento de uma nova burguesia mercantil e endinheirada, se levantaram, confinaram e regulamentaram os bairros do prazer.


   Outrora, um homem endereçou o seguinte a uma dama que raramente encontrava:


               O tempo dos nossos encontros,
               digo eu para comigo,
               é instante como relâmpago
               mas longa me parece
               a vossa crueldade...

   Sete séculos depois:
   Vivendo só para o instante, entregando todo o nosso tempo só aos prazeres da lua, da neve, das cerejeiras em flor, e dos momiji. Cantando, bebendo vinho, acariciando-nos, e deixando-nos ir à deriva, sempre sem rumo. Não fazendo caso de não termos dinheiro, nem deixando a tristeza entrar-nos no coração. Só como planta seguindo a corrente do rio: eis o que chamamos ukiyo, o mundo flutuante...


   A  presença sempre aguda do sentimento de fatalidade do efémero, é milenar na cultura japonesa, a nossa permanente circunstância sendo tão só o instante. Esquecê-lo seria abrir à dor a porta do coração. O ukiyo de que, em 1661, nos fala o escritor Ryoi Asai, no texto citado acima, era originalmente um conceito budista referindo a transitoriedade de todas as coisas.

   

  Camilo Martins de Oliveira