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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FIM DO CRISTIANISMO NA EUROPA? .3

 

1. Ninguém pode negar que o cristianismo histórico é responsável por crimes, tragédias, barbaridades. Não duvido de que houve muitos para quem teria sido preferível não ter ouvido falar de Deus nem de Cristo, tantos foram os horrores cometidos em seu nome. Mas, no cômputo geral, estou convencido de que o positivo supera o negativo. Ainda hoje a Igreja presta serviços incalculáveis aos mais pobres e fracos em toda a parte... E é a multinacional do sentido, Sentido último.


Cito Antonio Piñero, grande especialista em cristianismo primitivo e agnóstico. Depois de declarar que Jesus afirmou a igualdade de todos enquanto filhos de Deus, escreve que, a partir deste fermento, “se esperava que mais tarde chegasse a igualdade social. Se compararmos o cristianismo com todas as outras religiões do mundo, vemos que essa igualdade substancial de todos é o que tornou possível que com o tempo se chegasse ao Renascimento, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e aos direitos humanos. Isto quer dizer: o Evangelho guarda, em potência, a semente dessa igualdade, que não podia ser realidade na sociedade do século I. O cristianismo está, à maneira de fermento, por trás de todos os movimentos igualitários e feministas que houve na História, embora agora não o vejamos claramente, porque o cristianismo evoluiu para humanismo. Mas esse humanismo não se vê em religiões que não sejam cristãs. Ou porventura o budismo, por si, chegou ao Iluminismo? O xintoísmo? O islão? Os poucos movimentos feministas que há nas religiões estão inspirados na cultura ocidental. E a cultura ocidental tem como sustento a cultura cristã. Embora se trate de uma cultura cristã descrida, desclericalizada e agnóstica, culturalmente cristã.” O mesmo dizem muitos outros filósofos, incluindo agnósticos e ateus.


2. A pergunta é: Ainda será possível hoje ser cristão na Europa?


Tudo tem de começar por uma experiência, como sucedeu com os primeiros discípulos e comunidades. A experiência de abertura ao Mistério e à Transcendência e a oferta de esperança, alegria, futuro e sentido pleno para a existência. Essa experiência de vida humanamente realizada, na justiça, na solidariedade, no perdão, no combate por um mundo melhor, dá-se num encontro de fé em Jesus, que revela que Deus é Pai/Mãe, Amor incondicional e que dá a salvação, Sentido último. Mesmo os que já são baptizados, a começar por cardeais, bispo e padres, têm de perguntar a si mesmos se fizeram ou não esta experiência e se, através dela, podem responder: “Isto é bom para mim. Para mim”. Haverá conversão e começará então a verdadeira reforma da Igreja, que só pode ser uma Igreja de voluntários e que dá testemunho do melhor, do Evangelho, notícia boa e felicitante.


3. O cristianismo não é um sistema religioso nem pode ser uma obrigação, implica sim um caminho para uma vida com dignidade e sentido. Também não é, em primeiro lugar, um discurso, mas um percurso de vida. Como dizia Simone Weil, a filósofa mística, “onde falta o desejo de encontrar-se com Deus, não há crentes, mas pobres caricaturas de pessoas que se dirigem a Deus por medo ou por interesse.”


Mas o ser humano também é racional e, por isso, o cristão precisa de dar razões da fé e da  esperança. A fé não pode agredir a razão. Por exemplo, o modo como se tem apresentado o pecado original é incompatível com a evolução. Não se pode continuar a baptizar para “apagar a mancha do pecado original”. A morte de Jesus na cruz não foi querida por Deus, ofendido pelo pecado e exigindo uma reparação infinita. Isso contradiz o Evangelho: Deus é Amor. O que é pecado? O que prejudica as pessoas, o que lhes faz mal. Na celebração da Eucaristia, não se pode continuar a pregar de tal modo que subreptícia e inconscientemente se instala a ideia de uma presença física de Cristo: impõe-se entender a distinção entre presença física e presença real, pois é bem sabido que podemos estar fisicamente presentes e realmente ausentes, quando, por exemplo, não há amor. Só exemplos.


4. Jesus não fundou a Igreja-instituição que temos. Ele anunciou, por palavras e obras, o Reino de Deus, força de transformação do mundo a favor de todos, começando pelos mais frágeis e abandonados. É claro que não se pode ser ingénuo: alguma organização é precisa. O problema está em que, contra a vivência das primeiras comunidades, organizadas carismaticamente, se foi instalando uma organização de poder e já não de serviço. Na Igreja, sempre houve carismas, funções, serviços, ministérios. A ruptura deu-se, quando, contra o Novo Testamento, que até evitou a palavra hiereus (sacerdote que oferece sacrifícios), apareceram ministérios com uma ordenação sacra, que faz com que o padre e o bispo se transformem, dir-se-ia, ontologicamente, implicando uma distinção essencial, não só de grau, entre o “sacerdócio dos fiéis” e o “sacerdócio ordenado”. A Igreja ficou então dividida em duas classes: o clero, que manda, e os leigos, que obedecem.


Esta é a raiz da “peste” do clericalismo, pois só o sacerdote ordenado pode presidir à Eucaristia, só ele, “senhor de Deus”, perdoa os pecados..., e a autoridade na Igreja pressupõe a ordenação sacra. Esta sacralização levou à lei do celibato e à exclusão das mulheres...


É urgente a renovação da Igreja como instituição, mas ela estará bloqueada enquanto se não superar o equívoco da ordenação sacra. Devem existir ministérios ordenados — na Igreja é preciso um ordenamento —, mas sem ordens sacras.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 6 MAR 2021