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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO XXII

   

   O segredo do entendimento da essência viva da cultura está em agarrá-la tal como surge, em toda a sua concreticidade real, escreve Kuki Shuzo (Iki no kozo, Tokyo, Iwanami Shoten, 1930). Afinal, quando falamos da cultura de uma dada comunidade humana, no seu habitat, nesta ou naquela época, procuramos entender os valores ou referências que, naquela circunstância de espaço e tempo, orientam (dão sentido) a condutas e modos de vida observados. Assim, por exemplo, as «histórias da vida privada», sobretudo porque escritas de uma perspetiva antropológica, contam-nos muito mais acerca de uma cultura, do que as simples narrativas políticas e militares, literárias ou artísticas... O seu trabalho de observação e análise é, afinal, um labor quase arqueológico, na medida em que busca indícios concretos, quotidianos, que nos permitam ir reconstruindo "a nossa vida antes de nós" (dizia João Ameal). E se o jesuíta Luís Fróis é mundialmente considerado, não só a fonte estrangeira mais segura, mas também o mais abrangente testemunho da vida japonesa no século XVI, tal se deve ao olhar sempre lúcido e descomprometido com que esse português foi observando as realidades concretas que a cultura nipónica naquele tempo envolvia.


   Uma mulher honrada não será tida em grande estima se não souber escrever, dizia ele, tal como, um século mais tarde, Ihara Saikaku (escritor seiscentista de que já falámos aqui) diria que uma senhora fina deve entregar-se às artes da harpa, do jogo de damas (go), dos perfumes 3 dos poemas, e em nada se deve mostrar ignorante. Mas talvez as damas da corte de Heian-kyo, ainda que inultrapassáveis no seu génio literário e poético, tivessem permanecido, durante séculos, como modelos de "classe", ao ponto de as próprias "tayo" (cortesãs, prostitutas "finas") do período Edo (ou Tokugawa) se terem considerado suas legítimas herdeiras... Um dia viremos falar sobre geisha, ou "pessoas de artes", artistas do entretenimento, incluindo conversa literária e recitação de poesia, canto e execução de instrumentos musicais. Poucos sabem que os primeiros gei (artes) sha (pessoa) foram homens, aparecidos quando o shogunato Tokugawa, ainda no século XVII, proibiu a exibição de mulheres em palco, para evitar prostituição não licenciada. Todavia, nos bairros de prazer e noutros locais confinados, as primeiras geisha profissionais foram prostitutas reconvertidas em artistas de entretenimento sofisticado e culto que, com o andar dos tempos, acabariam por ser, conforme desejo próprio ou fados da vida, também prostitutas ocasionais ou nada disso e apenas animadoras de festas... Aliás, chegou-se a emitir licenças para geisha com ou sem exercício de prostituição autorizada. Fosse como fosse, algumas delas tornaram-se "estrelas" sociais e várias foram esposas, concubinas, ou simplesmente amigas e conselheiras, até de primeiros ministros.


   Também o nosso padre Luís Fróis, já em finais do século XVI, observara a prática do divórcio no Japão: no Japão qualquer um pode repudiar sua mulher quando quiser, sem que por isso a mulher perca a honra ou o casamento. Tal repúdio fazia-se normalmente por carta chamada mikudarihan, em três linhas e meia. Explicam Pons e Souyri que dizia: «Tendo em conta a nossa recíproca incompatibilidade, e com base em conversas longamente refletidas, separo-me da minha esposa.» O homem não era obrigado a justificar-se nem a explicar as circunstâncias que o levavam a repudiar a mulher. Bastava-lhe afirmar o desejo de se separar dela. Tal bilhete tinha força de lei perante as autoridades judiciais. A sua formulação lapidar pode interpretar-se como exemplo da omnipotência dos homens sobre a casa...   ...Masem 1987o historiador Takagi Tadashi mostrou quetodaviaas coisas eram bem mais complexas: 


   Apesar de práticas que, aparentemente, punham a mulher  em posição de inferioridade no seio do casal, ela podia, muito bem, divorciar-se por iniciativa sua, se assim o desejasse. Por exemplo, acontecia que, na sequência de uma zanga, a mulher abandonasse o domicílio conjugal, para reintegrar a sua própria família, deste modo obrigando o marido abandonado a redigir o tal famoso bilhete. 
[Luís Fróis comenta: No Japão, são muitas vezes as mulheres  a repudiar os homens...] 


   Na verdade, havia uma forma de divórcio resumida pela expressão popular «tsuba no tobidashi rikon», isto é, por «quando a mulher  se vai embora, batendo com a porta»... Então, se ela se recusar a voltar para casa do marido, este ver-se-á obrigado - «posto que é ele que chora» - a escrever o famoso bilhete. Em tais condições, o divórcio não é a expulsão da mulher, mas o contrário: é ela que toma a iniciativa de partir (ou de fugir de casa?)... 


   Ihara Saikaku conta-nos a história duma rapariga que aceitou o casamento «para não desobedecer aos pais», mas que, na noite de núpcias, se recusa ao marido, porque ama outro homem. Furioso, o marido, «tendo escrito uma carta de repúdio, atirou-lha à cara, mas ela, por seu lado, aceitou-a com gratidão»... No seio da nova burguesia do período Edo, designadamente na classe dos comerciantes, eram frequentes os divórcios, até porque os casamentos eram arranjados pelas famílias e ninguém contava com um amor certo entre os esposos, cujas relações se limitavam a assegurar  a continuidade da "casa", seu nome e património. Além disso, o instituto jurídico da adoção permitia o recurso a esta prática por famílias sem descendência. Assim, as relações amorosas, sexuais, eram parte constante das vidas dos casais das classes rurais e populares dos meios urbanos. 


   No fundo, tudo isto pode ser entendido por qualquer ocidental com experiência ou simples conhecimento das instituições e regras, usos e costumes, pautados ou licenciados pelas nossas próprias culturas... Talvez apenas com a diferença subtil do culto estético da circunstância e da prática do prazer sexual que, no Japão, foi sobrevivendo, desde os tempos galantes da corte imperial de Heian até aos artifícios lúdicos dos bairros de divertimento da era Edo.


   A vida sexual da gente comum, todavia, correspondia à diferença natural das respetivas culturas, sem que fossem necessariamente abalados certos pilares dum sentimento original partilhado por todos: a natural inocência do sexo, a complementaridade dos parceiros, a igualdade dos direitos de cada um ao prazer da união. Aliás, é abundante a literatura de iniciação e instrução sexual, num país onde - é bom recordá-lo - a literacia está muito generalizada. As visitas e encontros noturnos (yobai) eram hábitos frequentes, ao ponto de, mesmo em zonas rurais, os quartos das raparigas nunca estarem longe das portas de entrada das casas. Nada de muito diferente das práticas da corte de Heian. No século XIX, um médico da ilha de Shikoku (onde se situa Tokushima e estão as cinzas de Wenceslau de Moraes) escrevia: Na minha Iyo natal não há qualquer tipo de prostituta. Em contrapartida, as raparigas solteiras, as criadas, as viúvas, e as mulheres maduras, facilmente têm relações sexuais. Mas como tal não é, só por si, caso de prostituição, elas não se entregam a homem que não seja do gosto delas. Também isto era verdade para as geisha, tal como para as tayu que, aliás, faziam muitas vezes gala em só receber um pretendente ao fim de várias insistentes visitas. 

   

Camilo Martins de Oliveira