REFERÊNCIAS A UM ESPETÁCULO MEDIEVAL
Fazemos hoje aqui breve referência a um espetáculo descrito por Alexandre Herculano nas "Lendas e Narrativas", espetáculo esse realizado em 1401, portanto há exatos 620 anos, para celebrar a sagração do Mosteiro da Batalha.
E é desde já assinalável este recurso a artes de teatro numa cerimónia régia de agração de um edifício religioso, ou, pelo menos com expressão sacra. De certo modo, isto mostra-nos que o teatro em Portugal surge anterior a Gil Vicente o a Henrique da Mota, o que não obsta a que o chamado "Mestre Gil" como durante séculos era designado, seja referido como o efetivo introdutor, digamos assim, do teatro-texto em Portugal.
Hoje iremos pois fazer só a transcrição do texto de Alexandre Herculano. Eis o que ele diz, no Tomo I das "Lendas e Narrativas", sobre o que terá sido o teatro em Portugal antes de Gil Vicente:
"Pela primeira porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.
Essas primeiras figuras eram seis formando uma espécie de prólogo ao auto. Três que vinham adiante representavam a Fé, a Esperança e a Caridade; após elas, vinham a Idolateria, o Diabo e a Soberba; todas com suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enlevava mais os olhos da grande multidão dos espectadores era o Diabo, vestido de pele de cabra, com um rabo que ele arrastava pelo tablado e seu forcado na mão, mui vistoso e bem posto.
Feitas as vénias a El-Rei, a Idolateria começou o seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o género humano, ao que a Fé acudia com dizer que, ao início, estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia achar e que ela Fé não era culpada de ter chegado tão asinha esse dia.
Então o Diabo vinha lamentando-se de que a Esperança começasse a entrar no coração dos homens; que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e com isto, carreteava, com tais momos e trejeitos, que o povo ria a rebentar o mais devotamente que era possível."
Ora bem, vale a pena recordar que Alexandre Herculano, nos "Opúsculos" publica um texto de 1837, onde de certo modo completa mas limita esta oposição, pois escreve que "em Portugal é provável que começassem as representações cénicas pelo mesmo tema em que principiaram na Espanha, mas nenhum vestígio resta desse teatro primitivo".
O que é no mínimo discutível!...
Duarte Ivo Cruz