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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

72. A CULTURA E O QUESTIONAMENTO PERMANENTE DA REALIDADE


É um lugar comum questionar como foi possível o nazismo florir num país como a Alemanha, pátria de filósofos, compositores, escritores, cientistas, intelectuais, artistas e pensadores de vanguarda, num território tido como culto e exemplo, à data, de uma nação civilizada.
Sabemos bem, a começar pela História, que nem a educação, o saber ou o conhecimento intelectual nos oferecem qualquer garantia de um juízo moral ou de uma ética melhor.
A desumana tirania das ideias sempre teve o apoio de intelectuais e de pessoas da cultura.    
Ditadores e regimes totalitários sempre tiveram muitos admiradores e simpatizantes intelectuais e das artes em geral.
Alguns desses mentores legitimaram e institucionalizaram a violência terrorista.
Legitimaram e fomentaram a prática de crimes contra a humanidade.
O mundo pode ser modificado pela força do intelecto, para o bem e para o mal.
Mas é a cultura que nos permite distinguir entre a barbárie e a civilização.  
Foi a cultura que nos permitiu compreender a distinguir a barbárie dos totalitarismos.
Só uma cultura enquanto questionamento constante e permanente da realidade nos liberta.
Só uma cultura essencialmente crítica permite distinguir tiranos, ideias, doutrinas e regimes totalitários da democracia baseada no espírito crítico.  
É esse espírito e sentido crítico   que nos pode libertar da ameaça de uma ditadura tecnológica, num mundo de cidadãos convertidos em autómatos, ou numa mera cultura de entretenimento e diversão.     
Se é verdade que graças à força das ideias se pode criar um mundo melhor, pondo de lado despotismos e tiranias em desfavor da pessoa e dos direitos humanos, também é verdade que o desaparecimento da cultura enquanto questionamento permanente da realidade é o melhor amigo de utopias fraudulentas sempre prontas a suprimir a verdade pela causa da pretensa verdade maior que defendem.  

30.04.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

O pio do silêncio


E estar velho é sentir que se vive uma intensidade do saber e do não-saber para o qual se deseja tempo e ar puro na Natureza e nas ideias e em todos os convívios dos afetos em consciência comum da missão do amor

e estar velho é desejar o vento das tardes, o das casas, o do mar, o dos pássaros e que o cavalo de madeira seja agora de carne e de conclusão em vida do sonho que transportou

e estar velho é sentir que esta pandemia nos faz ficar no defeso, como sítio de folhas sem retorno onde se demora a claridade e apressa o desconhecimento aos nossos espelhos

e se estar velho é não aceitar este tempo assalariado de uma existência rígida, espaço intercalar e jamais, jamais paisagem, quando nunca nos bastou o ver e o rever

então sistematizemos os dados destes excessos de visões mínimas que nos fixam irónicas e eis 

como até vivemos numa desordem de muitas inexistências e só não somos antipoéticos porque enviamos barcos uns aos outros numa antevisão órfica

nós

o bloco dos dissidentes robustos contra as formigas que afinal nos devolvem Camões a um outro destino

quando o silêncio é o imenso pio qual nova proposta da vida

turmalina

que só pertence a uma ave que o esclarece e nos visita.

 

 Teresa Bracinha Vieira

JESUS E A IGREJA. 2

 

1. A interpretação da Eucaristia como sacrifício teve várias consequências perniciosas. A maior foi a da ordenação sacra sacerdotal. Mas o Novo Testamento evitou a palavra hiereus — o sacerdote sacrificador de vítimas para oferecer à divindade e aplacá-la e pedir os seus favores. Jesus, que era leigo, foi vítima dos sacerdotes do Templo e, citando os profetas, colocou estas palavras na boca de Deus: “Ide aprender: eu quero justiça e misericórdia e não sacrifícios; os vossos sacrifícios aborrecem-me”. Evidentemente, com a ordenação sacra, a mulher, ritualmente impura, ficou excluída de presidir à Eucaristia.


O Novo Testamento diz que, pelo baptismo, todos formam um povo de sacerdotes, profetas e reis. Mas, com a ordenação sacerdotal, surgiu a distinção, essencial e não de grau, entre  o “sacerdócio comum” dos fiéis e o “sacerdócio ordenado” e, com ela, o estabelecimento de duas classes na Igreja: o clero e os leigos. E entrou “a lepra do clericalismo”, na expressão do Papa Francisco: de facto, a “hierarquia” (poder sacro) fica com todos os poderes — julgo que não se pensa suficientemente no que significou ser padre ou bispo, com o poder de “trazer Cristo à Terra, com a consagração”, perdoar os pecados, decidindo da salvação eterna ou da condenação das pessoas... —, usando e abusando do poder..., até à tragédia da pedofilia, privilégios de toda a ordem...


A Missa foi concebida como “immolatio” e “mactatio” de Cristo, embora se discutisse se essa imolação é real, moral, mística, ou sacramental. O sacerdote tinha o poder de realizar o milagre da transubstanciação do pão e do vinho, que deixavam de ser pão e vinho. Esta concepção substancialista e coisista da presença de Cristo na Eucaristia arrastou consigo vários equívocos. Em primeiro lugar, precisamente a concepção coisista da presença de Cristo. Hegel viu bem o perigo desta coisificação: referindo-se à celebração da Eucaristia, escreveu que, segundo a representação católica, “a hóstia — essa coisa exterior, sensível, não espiritual — é, mediante a consagração, o Deus presente — Deus como coisa”. Outro equívoco foi o da divisão e separação da realidade em sagrado e profano, de tal modo que o padre era retirado do profano para se consagrar ao sagrado (ainda hoje, a linguagem eclesiástica fala dos “consagrados”, sendo todos os outros, implicitamente, os profanos). A Eucaristia já não era celebração em que todos participavam activamente, mas sacrifício objectivo autónomo, que o padre até podia celebrar sozinho e que oferecia pelas almas do Purgatório e outras intenções — ainda há padres a celebrar, sós, Missas contínuas. E era possível esta contradição nos termos: “ir” à Missa, que até se dizia em latim e de costas para o povo, sem comungar, quando Jesus disse na Última Ceia: “Tomai e comei”. Está-se na Missa, mas de fora, ignorando que a celebração da memória de Jesus implica uma real e autêntica conversão, com a entrada activa na dinâmica do seu Reino, que é o Reino da justiça, da fraternidade, da verdade. Chegou-se a esta distorção: é-se convidado para um banquete, mas é de fora que se assiste à festa, às “cerimónias”. Por isso é que há as “missas oficiais” a que assistem agnósticos e indiferentes. Paradoxalmente, com a interpretação coisista da presença de Cristo, contra o sentido profundo do que S. Paulo diz aos Coríntios — “quem come do pão e bebe do cálice do Senhor indignamente torna-se réu do Corpo e do Sangue do Senhor” —, muitos cristãos, indo à Missa e não comungando, vêem-se libertos da urgência da conversão ao projecto de vida de Jesus. Ora, precisamente nesta não conversão, é que, segundo S. Paulo, nos tornamos “réus do Corpo e do Sangue do Senhor”, isto é, culpados da sua morte: de facto, o que S. Paulo condena nas comunidades são as suas divisões e que enquanto uns se fartam outros passam fome.


É, pois, necessário ser consequente: uma vez que se deve partir do pressuposto de que quem vai à Missa é porque quer sinceramente entrar no espírito de Jesus, não se compreende que não comungue. Evidentemente, se se estiver na dinâmica da conversão, com capacidade de entrega e sacrifício em ordem a uma vida pessoal e familiar digna e ao combate por um mundo de verdade, justiça e paz. Ainda neste sentido, torna-se igualmente claro que a celebração eucarística terá de acontecer no quadro das diferentes culturas do mundo. Assim, é claro que no Japão ou na China ou entre os esquimós não se deveria impor o pão e o vinho. A não ser que a Igreja queira continuar a ser uma instituição de clonagem cultual e cultural...


O que na Igreja Católica está em questão é se a presente constituição hierárquica é de instituição divina e, por isso, imutável. Já vimos que não, e é significativo que, segundo o Pontifical Romano. Ordenação do bispo, dos presbíteros e diáconos, o próprio ritual de ordenação já não diga “sagração episcopal” nem “ordenação sacerdotal”, mas “ordenação do bispo” e “ordenação dos presbíteros”.


A Igreja Católica precisa, com urgência, de uma nova constituição: uma constituição de mais comunhão de discípulas e discípulos, sem duas classes, que ponha fim a uma das últimas monarquias absolutas do mundo, com respeito pelos direitos humanos, que consagre a igualdade de homens e mulheres, que termine com o celibato obrigatório, com uma nova atitude perante a sexualidade. Como poderá ser a Igreja Católica, se se deixar orientar pelo Evangelho, por aquilo que Jesus anunciou e queria?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 ABR 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Conversa com estudantes
de Louis Kahn.


‘Um edifício é um mundo dentro do mundo’, (Kahn 1998, 31)


No livro Conversa com estudantes (Gustavo Gili 1998) Louis Kahn ao aconselhar uma assembleia, através da elevação da sua atividade profissional (‘...porque todo programa escrito por um não-arquiteto está condenado a ser cópia de uma outra escola ou de algum outro edifício.’), tenta exprimir em que consiste o ato de criar ‘espaços inspirados’.


O discurso está concentrado no interlocutor e o sujeito está em posição de transmitir a essência do seu trabalho - descobre-se aqui a autoridade de Kahn através da sua figura com professor. Kahn fala através da sua experiência, exprime-se de maneira a veicular sentimentos e despertar paixões no interlocutor (‘Busque a essência e você verá no programa aquilo que você quer...Uma biblioteca, por exemplo.’).


‘A arquitetura é a incorporação do imensurável.’ (Kahn 1998, 36)


O que é muito importante perceber é que para Kahn arquitetura é sobretudo a busca pela expressão da essência e do programa e a busca pela essência dos lugares criados para uma comunidade.


Kahn tenta assim descrever, usando a sua experiência, o seu método de trabalho (‘Na verdade, eu busco a essência das coisas.’). Kahn dá a descobrir a verdade acerca da sua procura. Kahn esclarece e faz valer as suas ideias com força, ao buscar a essência e a verdade da disciplina da arquitetura, mas também instruindo e transmitindo uma apreensão subjetiva - pela sua experiência, pelo seu estudo exaustivo dos propósitos sociais modernos, do New Deal, da vida do Homem em comunidade e das formas do passado (Kahn estudou as formas do passado nas viagens que realizou à Europa: 1928-29 e 1951-52).


Kahn expõe o problema e a solução com a sua sabedoria, repetindo constantemente a importância da ideia em arquitetura. O discurso está concentrado no interlocutor. A procura de Kahn pela intenção e pela luz faz-se, concretamente pelo desenho (‘O programa, sozinho, não significa nada, porque é com espaços que se está lidando. Então, ele deve se fazer acompanhar de esboços que expressem a sua ideia sobre qual é a natureza daquilo.’).


Ao longo do desenvolvimento do texto assiste-se a um discurso partilhado que pretende esclarecer a real tarefa do arquiteto (‘Se você procura um arquiteto, você está lidando com espaços...’). A demonstração é feita através da comparação do trabalho do arquiteto com o trabalho o pintor (‘A natureza da pintura é tal, que se pode criar a escuridão em pleno dia. Pode-se criar um vestido azul que seja vermelho. Ou portas com vãos menores do que as pessoas. Esta é a prerrogativa do pintor.’). O discurso termina com o aconselhamento reforçado acerca da importância de criar ‘espaços inspirados’: ‘É necessário, portanto, considerar os requisitos da essência do ambiente que inspira a atividade daquela instituição do Homem.’

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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   De 26 de abril a 2 de maio de 2021

 

Hans Küng, há pouco desaparecido, deixou-nos a obra fundamental “Religiões do Mundo - Em busca dos pontos comuns”, publicado entre nós na editorial Multinova (2005). Lembramos a colaboração ativa do teólogo na revista “Concilium” portuguesa, animada por Helena Vaz da Silva, e o facto de ter estado entre nós numa iniciativa da nossa saudosa presidente.

 

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HOMEM DE TODAS AS ESTAÇÕES

O teólogo católico Hans Küng (1928-2021) morreu a 6 de abril em Tubinga e deixou uma herança intelectual, filosófica e teológica de grande valor. Pode dizer-se que as suas reflexões e a sua obra constituem elementos perenes, para além do horizonte do nosso tempo e do catolicismo. O futuro se encarregará, por certo, em especial no domínio da cultura da paz e do diálogo inter-religioso, de demonstrar como a cultura moderna se enriquece graças à compreensão de que a razão e o sentimento, a ciência e a espiritualidade se completam permitindo que a humanidade se aperfeiçoe e se emancipe, assumindo os limites do conhecimento e a necessidade de fazer do diálogo entre civilizações uma verdadeira troca de experiências, devendo cada qual ser capaz de se colocar no lugar do outro. Só com essa capacidade será possível criar uma verdadeira consciência comum, que impeça a violência ou a intolerância por motivos religiosos ou culturais. Longe de entender o mundo das religiões como imóvel, silencioso e estático, incoerente e contraditório, importa partir de uma informação séria e bem comprovada, de uma orientação que possa servir de ajuda para enfrentar a complexidade e a multiplicidade das religiões e de uma motivação que estimule uma atitude nova frente à religião e às religiões – de forma a reconhecer a dimensão universal do respeito mútuo e da dignidade humana. Daí a exigência de paz entre os homens, num momento em que há a tentação para o fechamento e a intolerância, centrados em novos dogmatismos. E assim o teólogo afirmou: “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões; não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais; o nosso planeta não irá sobreviver se não houver um ethos global, uma ética para o mundo inteiro”. E não se julgue que é fácil levar este entendimento à prática.

 

CATOLICIDADE CRÍTICA

Na sequência do Concílio Vaticano II, o teólogo desempenhou um papel de grande importância, persistindo numa “catolicidade crítica”, exercida a partir de dentro da Igreja – uma vez que só uma voz que persista no espírito dos apóstolos pode contrariar eficazmente a deserção dos lugares de culto, a secularização crescente da sociedade, a rarefação de candidatos a funções religiosas e a revelação de abusos dos clérigos. Daí invocar na sua obra os exemplos de Erasmo, de Tomás Morus ou de Monsenhor Romero – e a partir deles assumir a ideia de liberdade teológica, exercida com rigor. E foi essa fundamentação sólida do pensamento que lhe permitiu ser respeitado, mesmo pelos seus críticos – que, aliás, sempre afirmou respeitar e considerar. Por outro lado, contra um certo “restauracionismo” ou recuo em relação aos avanços conciliares, defendeu um cristianismo fiel a uma ideia de serviço, mais próximo da Bíblia e de Jesus e menos subordinado à organização em pirâmide da Igreja. Como suíço, Hans Küng procurou articular catolicismo e democracia, dando ao “povo de Deus” um sentido de liberdade e responsabilidade – invocando nas suas “Memórias” (2006-2010) o exemplo do educador Franz Xavier Kauffmann, que encontrou quando tinha 12 anos, e que foi um apelo irreversível no sentido da vivência e do exemplo das bem-aventuranças. Assim, a democracia e a colegialidade, foram para o teólogo elementos fundamentais e de uma grande pertinência. Por isso, distinguiu, como corolário lógico do seu pensamento, fidelidade à vontade de Deus, Jesus, e obediência ou submissão total às regras, devendo a fidelidade prevalecer relativamente à obediência. Estudioso sistemático da “nova teologia francesa” de Teilhard de Chardin, Henri de Lubac e Yves Congar, o padre, ordenado em 1954, desenvolveu, de forma pioneira, a noção aberta e moderna de ecumenismo – dialogando ainda com Rudolf Bultmann e Karl Barth, a partir da compreensão de um Jesus histórico, da vivência do Seu exemplo e de um compromisso necessário em nome da dignidade humana. Foi, assim, muito relevante a criação do Instituto de Investigações Ecuménicas em Tubinga (1960-1996) e os passos corajosos que deu no sentido de mobilizar vontades num esforço de verdadeira compreensão mútua.

 

A FORÇA DA GRAÇA DIVINA

Em lugar de uma atitude conformista, indiferente ou pessimista, Hans Küng centra-se na capacidade criadora e na força da Graça divina, livre e corajosa, à imagem dos Atos dos Apóstolos. Como espírito atento ao mundo e aos sinais dos tempos, salientou a importância das artes e da arquitetura contemporânea. Os novos caminhos artísticos permitiriam uma vivência religiosa mais autêntica e uma melhor inserção na cultura contemporânea. Não escondeu, assim, de modo persistente, a enorme esperança depositada no Concílio Vaticano II, a partir da audácia de João XXIII, invocando ainda as ideias lançadas nos anos sessenta, designadamente na “Nova Fronteira” de John Kennedy. Estudou os cinco paradigmas da História da Igreja: o original judaico-cristão, o helenístico, o romano-católico medieval, o da Reforma e o da modernidade – afirmando a recusa de uma atitude retrospetiva ou medieval no pensamento religioso. Depois de 1965, foi, assim, um dos animadores da revista internacional “Concilium”, com grande repercussão internacional, lançada em língua portuguesa por António Alçada Baptista e Helena Vaz da Silva. Hans Küng realizou, aliás, duas conferências em Portugal em 5 e 7 de abril de 1967, ambas muito concorridas, a primeira na Igreja de Santa Isabel, com a assistência de cerca de mil pessoas e ainda no Colégio do Rosário do Porto, com cerca de quinhentas. O tema foi “A liberdade dentro da Igreja”, a merecer um grande interesse de cristãos e não cristãos, havendo até uma nota da PIDE sobre a iniciativa. Infelizmente, a revista não durou muito, pela censura e pelas condicionantes políticas e económicas.

O pensador suíço-alemão, apesar de lhe ter sido retirado o mandato canónico para ensinar em Tubinga, nunca foi impedido de exercer o seu múnus sacerdotal – tendo-se dedicado nos últimos anos ao projeto “Ética planetária – Paz mundial pela paz entre as religiões”. Nessa causa foi inspirado por Lorde Menuhin, que lançara a ideia de diálogo universal na série televisiva “The Music of Man”. A partir daí, o teólogo suíço avançou para as religiões. “Yehudi Menuhin precisava apenas de pegar no seu violino ou na sua batuta para, mesmo a ignorantes ou a ouvidos talvez pouco musicais, abrir o coração para o fascinante mundo da música. Mas como seria possível abrir os ouvidos e os corações para o mundo igualmente misterioso e diferente da religião?”. Hans Küng levou a iniciativa adiante e desse conjunto de programas resultou o livro  “Religiões do Mundo – Em busca dos pontos comuns”, publicado entre nós na editorial Multinova (2005), pelo meu saudoso amigo Manuel Bidarra de Almeida. Ao longo destas páginas, encontramos alguém que procurou sempre fazer do “misterioso e imenso mundo das religiões” uma oportunidade para a descoberta partilhada da importância da liberdade religiosa e da liberdade de consciência como fatores essenciais para que a causa da paz se torne pedra angular das democracias.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

MAIS OUTRA CARTA A JOSÉ SARAMAGO


Meu Caro José:


...e o padre Francisco Gonçalves, como lhe competia, respondeu, Todo o saber está em Deus, Assim é, respondeu o Voador, mas o saber de Deus é como um rio de água que vai correndo para o mar, é Deus a fonte, os homens o oceano, não valia a pena ter criado tanto universo se não fosse para ser assim, e a nós parece-nos impossível poder alguém dormir depois de ter dito ou  ouvido dizer coisas destas.


   
Ao escrever estas poucas linhas, mais do que as suas personagens, estaria o próprio autor inquieto. Você mesmo o confessa, meu caro José, ter-lhe-á sido difícil conciliar o sono depois de as ter pensado e redigido... A mente humana é muito sensível, por isso gosto de dizer que a expressão pensossinto me parece mais realista e acertada, e ainda mais conforme à inquietação que nos percorre e, por vezes, nos faz tremer, mesmo quando não tememos. Da ignorância diremos que é noite do espírito, escuridão, não temos medo necessariamente do que ela esconde, receamos, sim, a nossa própria incapacidade de desenhar as coisas e de, tão temerariamente quanto possível, as nomearmos. Noutro passo do seu Memorial, o José Saramago também se interroga sobre o significado de só Deus, o Sem Nome, saber o nome de tudo e todos, deixando-nos a nós, humanos, o labirinto que vamos semeando de invenções. Não ficou escrito assim, nem por esta ordem, mas assim veio habitar o meu pensarsentir.


   Aliás, a resposta do padre Francisco Gonçalves acima transcrita resulta de interpelação feita pelo padre Bartolomeu Lourenço, como significativamente o José conta no Memorial : Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isto para sabermos que homem era nem que água corria, a água que correu no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal, padre Francisco Gonçalves, isto dissera o padre Bartolomeu Lourenço antes de recolher ao seu quarto...


   
Tenho para comigo que a nossa humana inquietação brota duma qualquer mista consciência de perplexidade (ou, talvez, humilhação revolta) e de curiosidade (pertinaz, teimosa, ousada) - e, ao pensá-la assim, estou sentindo outra iluminação, um encanto novo no conto genético da tentação do fruto proibido da árvore do conhecimento. Será esse o paradoxo da condição humana, ou descoberta da nossa contingência na própria ânsia do cumprimento de uma promessa inicial e fundadora da nossa própria humanidade? Terão Adão e Eva errado por desejarem conhecer a verdade? Tal desejo não seria, afinal, já parte própria deles mesmo? Ou serão os erros cometidos condição necessária do conhecimento do bem e do mal?


   
No Memorial, eis o que diz padre Bartolomeu a Domenico Scarlatti: ... é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente que conhecer os erros. E praticá-los, não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro...


... Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo, não está homem livre de julgar abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico, e logo disse o padre, Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta.


 
Ou talvez fosse só Pilatos cético, pois Jesus, Deus que era, não só se manteve calado durante todo o processo, como quiçá entendia que não chegara a hora de revelar um vislumbre sequer da verdade ontológica que só a Deus pertence... A cada um de nós cabe a tarefa de procurar a verdade possível de encontrar, e só o amor posto nesse trabalho nos trará o perdão que o ter-se amado consegue. E bem diz, meu caro Saramago: Procura cada qual, por seu próprio caminho, a graça,  seja ela o que for, uma simples paisagem com algum céu por cima, uma hora do dia ou da noite, duas árvores, três se forem as de Rembrandt, um murmúrio, sem sabermos se com isto se fecha o caminho ou finalmente se abre, e para onde, para outra paisagem, ou hora, ou árvore, ou murmúrio, veja-se este padre que anda a tirar de si um Deus e a pôr outro, mal sabendo que proveito haverá na troca, e, se proveito houver, quem dele finalmente aproveitará, veja-se este músico que outra música que esta não saberia compor, que não estará vivo daqui a cem anos, para ouvir a primeira sinfonia do homem, erradamente chamada Nona...


   
Ao Deus sem nome - e talvez por isso mesmo - deram os humanos muitos nomes. Ao Deus desconhecido inventaram histórias e preceitos, de forma a torná-lo por vários gostos reconhecível. Mas há um - cujo nome está acima de qualquer nome - que nos envia o seu Primogénito a ensinar-nos o Santo Nome: PAI. E nós assim dizemos: Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o teu nome... Veja bem, meu caro José Saramago, como, por este caminho, me vou despindo de orfandade, e pensossinto que religiosa ou religioso é todo o ser humano que, dia a dia, sai de si para ir em busca do Pai...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

INTERVENÇÃO DO ESTADO NA REDE DE TEATROS HÁ 250 ANOS

 

Fazemos hoje referência a um decreto destinado a garantir, na letra da lei, o incremento da atividade teatral e musical, tendo em vista designadamente a existência de espaços vocacionados para o espetáculo, ou pelo menos adequados a atuações de artistas, a partir de textos declamados.


E aí estará, precisamente, a essência do espetáculo teatral, que só existe quando um texto, mesmo diretamente improvisado, serve de base para a exibição/transformação em termos de espetáculo, e isto, mesmo quanto o público é escasso: pois o que tem de existir, isso sim, é a transmissibilidade direta para o espetador, a partir da atuação direta do intérprete, seja  ou não seja ele autor do texto em si.


O que importa é pois a transmissibilidade de quem cria para quem recebe: e nesse aspeto, deve-se frisar que a partir do século XVIII assiste-se em Portugal a uma sucessiva edificação de edifícios destinados direta ou indiretamente a criações ligadas à arte do espetáculo. A tradição histórica de certo modo remonta à época romana, mas pode-se considerar como tal o Pátio da Arcas, criado em 1590 pelo empresário (digamos assim) castelhano Fernão Dias de la Torre, que em 1590 o criou, na zona que hoje é a Rua Augusta!...


E é de notar que antes a atividade cénica realizava-se em palácios ou em edifícios destinados a outras finalidades!


Tenha-se aliás presente que este Pátio das Arcas surge por influência da corte filipina, no que é hoje a Rua Augusta: e podemos acrescentar outras iniciativas semelhantes como por exemplo (e não só) o Pátio das Fangas da Farinha, perto do Tribunal do Boa Hora, isto já nos inícios do século XVII.


Mas avancemos um século.


Em 1771, era presidente do Senado de Lisboa o filho do Marquês de Pombal, que mantinha o título originário de Conde de Oeiras. Por decreto de 30 de maio daquele ano, é criada a chamada Sociedade para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte. Era uma espécie de empresa municipal de capitais privados, o que na época não significaria grandes mudanças na gestão… Em qualquer caso, já tivemos ocasião de referir e analisar casos semelhantes.


Pois, tal como refere o decreto, a empresa destinava-se a “sustentar os mesmos teatros com aquela pureza e o decoro que os fazem permitidos”, assim mesmo!...


Porém, já tivemos ensejo, no estudo designado “Teatros de Portugal ” (ed. INAPA 2005) de referir que nos termos do decreto de 30 de maio de 1771 é instituída uma “Sociedade para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte”. E nos termos legais, a Sociedade, de âmbito municipal mas de capitais privados, se destina, e novamente citamos, «a sustentar os mesmos teatros com aquela pureza e decoro que os fazem permitidos», assim mesmo!


É questionável, como bem se entende, a linguagem jurídica utilizada.


E transcrevemos agora o que escrevi sobre este assunto em “Teatros de Portugal”:


“pura hipocrisia, pois a Sociedade, de efémera existência, destinava-se, isso sim, a garantir a permanência em Portugal da cantora italiana Ana Zamperini, do pai, da irmã e de numerosa companhia!”


E citamos para terminar este artigo, o que Helena Sacadura Cabral escreveu no livro “Os Nove Magníficos” (ed. Clube de Autor):


«O jesuíta Gabriel Malagrida apontava mesmo o dedo àqueles que iam aos teatros, às músicas, “às danças mais imodestas”, às comédias “mais obscenas” aos divertimentos e aos touros e que, depois,  não punham o pé nas Igrejas, nas festas sagradas, nos sermões ou nas missas apostólicas.


Ora, meses decorridos sobre o terramoto, os reis teriam assistido a representações em Salvaterra do Magos. Imagine-se assim o desconforto que estas palavras não teriam causado. Tão forte que acabou por se ordenar do desterro do jesuíta para Setúbal…»

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


71. BURACOS NEGROS

O BURACO NEGRO E A INCERTEZA

Três cientistas, dois homens e uma mulher, foram laureados com o prémio Nobel da Física de 2020, por provarem que os buracos negros existem. 


Um buraco negro é tido como uma estrela morta, pode resultar do colapso de uma estrela maior que o sol, formando no espaço uma região tão compacta, que um corpo, lá caído, não tem modo de escapar do seu interior.

É uma superfície fechada aprisionada, sem retorno e sem luz, onde o espaço e o tempo ficam deformados, em que o tempo, como o conhecemos, para, não sendo suficientemente explicável pela teoria geral da relatividade de Einstein. 

Para um observador, observando-o do exterior, um buraco é visto como negro porque nenhuma luz emite, nem a luz (a havê-la) consegue fugir do seu interior.

Há, por um lado, a sua singularidade interior desconhecida e, por outro, a sua observação exterior.  

Se tem peso e ocupa espaço, é matéria, mas se nele o tempo cessa e não emite luz, provou-se que provoca efeitos, concluindo-se que no centro da Via Láctea há um buraco negro supermaciço, de quatro milhões de sóis, totalmente escuro e compacto, causa de incertezas: á volta do qual orbitam estrelas? Alimentando-as e produzindo matéria para produzir outros planetas, estrelas e galáxias? Transformando-as numa necrópole de estrelas mortas? Estrelas que morrem e não vão conseguir dar matéria para originarem outras estrelas, planetas e galáxias, gerando a morte fria do universo?  

Presume-se que todas as galáxias têm um buraco negro no meio, girando tudo à volta do centro, como um carrossel cósmico.   

A natureza está cheia de segredos escondidos, que escapam ao nosso modelo-padrão, à quantidade restrita de elementos que descrevemos e percecionamos. 

Sabe-se que a colisão entre dois buracos negros maciços gerou a primeira prova de ondas gravitacionais, hoje tido como um fenómeno normal do universo.

Não podermos ter o prejulgamento ou a arrogância de que já conhecemos a história toda. De que apenas precisamos de confirmar a nossa, esta ou aquela teoria. Há tantas teorias que eram tidas como brilhantes, mas não confirmadas factualmente. Há que mudar de atitude, tendo presente que há um longo percurso entre o conhecimento e a experiência, entre a probabilidade de grandes descobertas e a garantia de que estejam garantidas.     

A ciência pode investigar a natureza, mas é impossível tentar tornar compreensível o infinito. 

Porque somos finitos e o infinito, por natureza, nos escapa.

Aceitando a incompletude, é assumir a incerteza que nos rodeia e a imperfeição que somos, sabendo antecipadamente que é humanamente utópico aceder a um saber completo quando olhamos para a terra e o céu.   

Sabemos que o buraco e a sua matéria negra existem, que são necessários, mas desconhecemos a sua composição, inexistindo no modelo-padrão qualquer partícula que os possa descrever.

O QUADRADO NEGRO DE MALEVITCH

Em O Quadrado Negro sobre Fundo Branco (1913), de Malevitch, o branco e o negro, como cores, personificam a Terra no Universo, falando da vida e da morte, da luz e das trevas, esvoaçando o quadrado negro no espaço, não sujeito à força da gravidade, sinal de um cosmos ordenado ou de um buraco negro para o interior do qual foi sugada toda a matéria. E se é do branco que nascem as formas, o negro é um nada que representa o mundo inteiro, sendo do nada libertado, que vão nascer coisas. Também a linguagem artística, como expressão metafórica, quer ir mais além e ultrapassar toda a arte conhecida, num gradual avanço e permanente incerteza (ver texto nosso, neste blogue, As Artes e o Processo Criativo, VI - O Quadrado Negro de Malevitch).   


Qualquer coisa imanente da natureza, da realidade, surge na representação figurativa deste Quadrado Negro sobre Fundo Branco, em paralelo com o/s buraco/s negro/s, numa antecipação metafórica da arte das descobertas atuais. 

Se a incerteza e a imperfeição são claramente elementos da nossa substância, também o é a nossa debilidade, como o exemplifica a covid 19, um vírus que pode destruir qualquer pessoa na sua vida plena.

E se nós, humanos, somos frágeis e mortais, numa escala temporal de 80 a 90 ou 100 anos, planetas, estrelas, galáxias e buracos negros aparentam-se frágeis e podem desaparecer numa escala de milhares ou milhões de anos, indiciando-se partilharmos a mesma substância e mortalidade.

 

23.04.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

UMBERTO ECO E CARLO MARIA MARTINI (II)


(Um livro acalorado e nós)


E será que tem prevalecido o sentido simbólico enquanto se anulam as realidades?


E se assim for admite-se a carga utópica como uma reserva de força?


Então aquele medo do futuro que se não confessa, multiplica-se, e a experiência interior que dá a palavra «salvação» tem uma tal amplitude que nos revive em todos os sentidos, incluindo o simbólico, graças!


Afinal é como se o caminho da história da condição humana só tivesse possibilidade de ser encontrado fora dela, mas dentro do simbólico e da esperança, enquanto lugares que consolidam o que afinal tem a energia do que é contingente, do que é aventura por entre as ideias.


Desta forma podemos todos dizer coisas muito parecidas, e, no momento mais dramático do que acontece, deseja-se que a misericórdia se integre em nós, e até na nossa escrita, quantas vezes, indignada? depois da morte de quem parte?


Torna-se então claro o quanto bem carecemos de entender a revelação da nossa condição num fim?


Agora, a realidade será sempre mais importante do que o nome que se lhe dá, mesmo que os nomes possam reconhecer valores comuns.


Mas o nosso exercício ainda está longe de esgotar as coisas simples. Creia-se!


Os nossos pequeninos progressos ainda se balançam entre o simbólico e a realidade enquanto repto.

 

 

Teresa Bracinha Vieira

EPITÁFIO: PROFESSOR HANS KÜNG

 

1. Morreu em paz na sua casa de Tubinga no passado dia 6 o teólogo católico mais conhecido nas últimas décadas. Escreveu o próprio epitáfio: PROFESSOR HANS KÜNG. Professor vem do latim: profiteri, que também significa entregar uma mensagem. O problema de muitos professores é que não têm mensagem nenhuma para entregar; Küng tinha e passou a sua vida a passar essa mensagem, mensagem maior para a Humanidade: o Evangelho em confronto com o mundo moderno e o mundo moderno em confronto com a fé. Ainda teve a alegria de ver a suas obras completas publicadas: 24 volumes. Sobre a fé, a Igreja, Deus, as religiões, a arte, a psicanálise, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, a ética... Era um trabalhador incansável, com profundíssimo conhecimento da Teologia, Filosofia, História, Ciência... e com o dom, raro, de transmitir em linguagem acessível o que o rigor académico exige.


2. Foi o mais jovem teólogo convidado por João XXIII como perito do Concílio Vaticano II, integrando uma plêiade de teólogos alemães, incluindo Joseph Ratzinger, mais tarde Bento XVI.


Küng era um cristão convicto, fascinado por Jesus. Disse-me numa longa conversa: “Para mim, ser cristão tem ainda hoje sentido, pois, com o cristianismo, pode-se ser Homem num sentido mais profundo e radical. Hoje vê-se cada vez mais claramente que o cristianismo não é uma pura ideologia para si mesmo. A Igreja não tem a sua finalidade em si mesma. O cristianismo deve ajudar o Homem a ser Homem melhor e mais radicalmente.” Quem é o cristão? Aquele, aquela para quem Jesus é “o determiannte na vida e na morte”.


Porque o centro só pode ser Jesus Cristo, era crítico do sistema eclesiástico romano centralizado, com “Monsignori, Excelências Reverendíssimas, Eminências”... O Vaticano II queria a descentralização e o retorno ao Evangelho, impondo reformas, abrindo à liberdade religiosa, aos direitos humanos, à ciência, à igualdade das mulheres, ao fim do “celibatismo”... Com o Papa João Paulo II, entrava-se lentamente num “inverno da Igreja”, na expressão de outro teólogo, talvez o maior do século XX, Karl Rahner ... A primeira vítima foi Hans Küng a quem em 1979 a Congregação para a Doutrina da Fé retirou a “missio canonica”, isto é, embora continuando padre, já não podia ensinar como teólogo católico. A razão próxima era o livro Infalível? Uma pergunta, no qual punha em questão a infalibilidade papal. Propunha que a infalibilidade fosse substituída pela indefectibilidade da Igreja, no sentido de que a Igreja nunca deixará cair o essencial da fé cristã. Permita-se-me uma nota pessoal. Bento XVI já era o Papa e uma jornalista perguntou-me sobre o que é que eu pensava da infalibilidade; respondi: “Pergunte ao professor Joseph Ratzinger se ele acredita que Bento XVI é infalível”. Foi pouco antes do Natal, estava na Alemanha e pude vê-lo triste na televisão, com estas palavras, que cito de cor: Dedica-se a gente com todo o empenho à Igreja e a recompensa é esta! Mais tarde, o seu colega e amigo, o suíço Herbert Haag, o maior exegeta do século XX, disse-me que ele passou então por uma depressão de seis meses. Küng manteve-se na Igreja e como padre. Aliás, na última vez que nos encontrámos —foi em Barcelona — confessou-me que era com alegria que ia celebrar os seus 50 anos de padre.


O que se passa é que, se a Teologia quer manter o seu estatuto académico, tem de ser crítica, não podendo renunciar à libertas academica (liberade de ensinar). Dado o estatuto da Teologia na Universidade alemã, foi-lhe entregue a Cátedra de Teologia Ecuménica. Deste modo, abriram-se ainda mais os horizontes. Já na tese de doutoramento sobre  A Justificação,  tinha mostrado não haver razão para a separação entre católicos e protestantes quanto a este ponto central, como depois veio a reconhecer o próprio Vaticano. Deus justifica-nos: nós valemos para Ele. Era necessário continuar o processo de unificação das Igrejas cristãs. Difundiu o conhecimento das religiões mundiais e aprofundou as condições de possibilidade do urgente e exigente diálogo inter-religioso, também em ordem à paz. Não se cansou de sublinhar: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do planeta sem um ethos global” ­— ethos com o sentido de uma nova atitude ética. Neste contexto, é o principal redactor da famosa Declaração  “Princípios para uma ética mundial”, assinada no Parlamento das Religiões em Chicago em 1993, centrada na dignidade da pessoa, e que está na base do Instituto de Ética Global, com incidência na política e na economia. Tornou-se então um pensador mundialmente reconhecido. Dirigiu-se à Assembleia das Nações Unidas e aos estudantes da Universidade de Pequim...


Küng tinha imensa esperança no Papa Francisco, que incentiva uma primavera na Igreja e lhe escreveu duas vezes, também por causa da infalibidade, questão a estudar, e lhe enviou uma bênção antes da morte. Lamentavelmente, talvez para não ferir Bento XVI, não o reabilitou de modo oficial.


3. Para Küng, a fé assenta numa confiança radical racional em Deus, que se revelou em Jesus. Acreditava na vida eterna. Confiou, com razões, que, na morte, não ia para o nada, mas para “o Fundamento Útimo e Fim Último do cosmos e da nossa existência a que chamamos Deus”, disse-me também.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 17 ABR 2021

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