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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR


Paisagem Urbana de Gordon Cullen.


“Num mundo de conceitos bem definidos, as estradas destinar-se-iam ao trânsito de pessoas e coisas e os edifícios às relações sociais e de trabalho. Mas como a maioria das pessoas faz exatamente o que lhe convém e quando lhe convém, verifica-se que também o exterior se encontra ocupado para fins sociais e comerciais. A ocupação de determinados espaços ou linhas privilegiadas no exterior, os recintos, pontos focais, paisagens interiores, etc.., são outras tantas formas de apropriação do espaço.” Gordon Cullen, 1971


No livro “Paisagem Urbana” (Architectural Press, 1971) a análise formal do fenómeno urbano é um dos objetivos principais de Gordon Cullen. O fenómeno urbano estabelece-se através do meio ambiente (que é movimento, localização e conteúdo evocados) e da paisagem (que é uma sucessão de revelações dependentes da posição no espaço e advém de uma visão serial, determinada pela presença de imagens existentes e emergentes - imagens que fazem conviver o aqui e o além).


O fenómeno formal -cidade- é unidade geradora, porque existe união entre habitantes e objetos. Segundo Cullen, cidade é uma experiência plástica, um percurso sucessivo onde convergem elementos de compressão e descompressão; onde contrastam espaços amplos com espaços delimitados; onde alternam momentos de tensão e momentos de tranquilidade. O que constitui concretamente a cidade é uma sobreposição constante de estilos e traçados- por isso, a sua morfologia é intrinsecamente diversa.


Cullen deseja descobrir qual a verdadeira essência do planeamento urbano. Será concordância, convencionalismo, equilíbrio, simetria, continuidade?


Considera-se importante a inter-relação e a convergência dos elementos que formam a cidade. Acentua-se sobretudo a ideia de que há núcleos equilibrados e estabilizados e outros não.


A enumeração dos elementos visíveis e invisíveis no território urbano constitui o objetivo primeiro, dos aspetos apresentados no livro. Os elementos visíveis manifestam-se progressivamente através de alinhamentos, agrupamentos, convergências, desníveis, delimitações e geram os elementos invisíveis ou implícitos- ponto focal, linha de força, deflexão, perspetiva grandiosa, velada e delimitada. Cullen insiste que na paisagem urbana, o essencial são as relações entre o aqui e o além e que geram conceptualmente focalizações; desníveis; perspetivas; estreitamentos; e delimitações. Na verdade, o conteúdo urbano tem categorias paisagísticas que se baseiam na gestação de variados pontos de vista. É importante por isso considerarem-se conceitos como justaposição, pormenor, complexidade, contraste, escala e distorção.


Para Cullen, a cidade é, pois o local de reunião de elementos flexíveis, que são dependentes ou não, da vontade humana. A função essencial de uma cidade deve tornar-se evidente na sua estrutura formal- a organização dos seus elementos reflete naturalmente certas linhas de força. Essas forças decorrem de uma combinação de circunstâncias que estiveram na origem da cidade.


A cidade incaracterística falha, no entanto, na relação entre forma e função porque as suas linhas de força se tornaram confusas ou desapareceram.


A cidade é determinada, deste modo, pela estrutura que está dependente de usos e das experiências. Tal estrutura é suscetível de receber várias interpretações. Torna-se, assim, flexível e pode ser influenciada e até mesmo transformada. A base estrutural da cidade soma situações diferentes- é possível desempenharem-se funções diferentes sob circunstâncias variadas.


O ambiente urbano é, então, construído de duas maneiras: pelo senso comum; e por uma lógica baseada na sanidade, na amenidade, na conveniência e na privacidade. Porém Cullen esclarece que é acima de tudo a comunicação entre os edifícios e o espaço que fica entre, que materializa e dá forma à paisagem urbana.

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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    De 19 a 25 de abril de 2021

 

«Desenhos e caricaturas de Amadeo Souza-Cardoso» é uma reunião de obras do célebre autor do modernismo português falecido prematuramente, vítima da Pneumónica. A exposição está patente na Casa-Museu Teixeira Lopes em Gaia e revela uma faceta menos conhecida do artista, fundamental para a compreensão da sua importância no panorama nacional e europeu.

 

Desenhos e caricaturas de Amadeo Souza-Cardoso.jpg

 

UM ARTISTA MULTIFACETADO

Como diz Helena de Freitas, Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) é dificilmente definível, «não tem um discurso regular, desloca-se com destreza entre vários registos na vida e na obra. Percebe-se na diversidade da pose (entre o provinciano e o cosmopolita), no estilo versátil da escrita, na letra instável, no desconcertante traçado das assinaturas»… Essas características notam-se especialmente na caricatura, onde encontramos o peso da onda modernista e dos caricaturistas como Emmérico Nunes e Christiano Cruz. E pode dizer-se que nessa diversidade, é a procura de vários caminhos que detetamos, numa manifestação evidente onde a busca do movimento está constantemente presente. Daí que na revista «Portugal Futurista», Álvaro de Campos se aproxime nitidamente de Amadeo, na perspetiva da diversidade criativa - «só tem direito a exprimir o que sente em arte, o indivíduo que sente por vários». E Almada Negreiros afirmou, nessa mesma linha de pensamento, que Amadeo «é a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX» - e, maravilhado, deu nota de como partiu de uma identidade próxima para a tornar global - «toda a arte reflete o seu rincão natal. E nunca é o rincão natal o que o pintor retrata. O seu rincão natal são as próprias cores. Foram estas cores que teve para começar a sua mensagem de poeta». Ora, se a obra de Amadeo parte da cor desse rincão, a verdade é que pela caricatura o artista aproxima-se das pessoas, através do humor e da ironia. E assim são as duas metades consideradas essenciais por Baudelaire que se encontram na produção multifacetada do artista, que soube lidar com o tempo – ligando as raízes e o futuro, a herança e a necessária transformação pela arte. Numa célebre entrevista ao jornal «O Dia», Amadeo Souza-Cardoso proclamou, por isso, solenemente: «Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola». A permanente demanda e a insatisfação são as marcas dominantes ao longo do seu percurso criador. José-Augusto França fala, nesse sentido, da impaciência, da angústia e de uma criação expressiva e colérica, «misturando na sua definição uma grande liberdade plástica e uma grande necessidade de dar força e imagens, violentas ou irrisórias, a uma ideia do próprio mundo que o pintor pressentia para além de uma aldeia que o destino lhe dera». Compreende-se que a caricatura seja um elemento fundamental na criação do artista. É a necessidade de uma leitura do tempo feita através da deformação da imagem e da cultura do picaresco, para haver um melhor entendimento de um mundo em acentuado movimento. Lembremo-nos da fotografia de 1906 em que Amadeo, com os seus amigos de Paris, recria com imagens vivas “Los Borrachos” de Velasquez. É, no fundo, o espírito da caricatura que aí está, num encontro em que estão Emmérico Nunes, por certo o mais prolífico caricaturista da sua geração, com Domingos Rebelo, Manuel Bentes e José Pedro Cruz.

 

UMA SELEÇÃO SIGNIFICATIVA

A Casa-Museu Teixeira Lopes recebe uma seleção de desenhos de Amadeo de Souza-Cardoso, trabalhos raramente expostos, que refletem a importância do desenho e, em particular, da caricatura, no processo de formação e afirmação da identidade artística do grande artista de dimensão europeia. Visto em Portugal com perplexidade, pelo seu espírito, aberto, livre e vanguardista, partiu para Paris no início do século XX, integrando um extraordinário círculo de artistas, e desenvolvendo uma grande cumplicidade artística e vivencial com Amadeo Modigliani, a quem é atribuída a obra “Caryatide”, que faz parte da coleção da Casa-Museu Teixeira Lopes e que será exibida nesta exposição, em diálogo com desenhos de figuras femininas do genial pintor de Amarante. Fruto de uma parceria promovida pelo Município de Gaia com o Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso (de Amarante) e com o Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, esta mostra surge no contexto de uma estratégia de afirmação cultural, trazendo à cidade de Gaia grandes figuras do mundo das Artes como Cruzeiro Seixas, Paula Rego ou Vieira da Silva. Estudiosa e investigadora da vida e obra de Amadeo, a investigadora Catarina Alfaro assume a curadoria de “Desenhos e Caricaturas de Amadeo de Souza-Cardoso”, ajudando o visitante a compreender o percurso único de um artista para quem o desenho e a caricatura foram meios por excelência para a inovação, experimentação e observação crítica da sociedade, que caracterizou a sua fugaz carreira. Um núcleo de desenhos, onde se incluem originais do catálogo «XX Dessins» estará patente na Sala Aureliano Lima das Galerias Diogo de Macedo, enquanto a Sala Branca será dedicada ao percurso biográfico e à caricatura. Na Sala Negra, terá lugar à projeção do documentário “Amadeo de Souza Cardoso – Le Dernier secret de l’art moderne”, de Christophe Fonseca. À semelhança das anteriores exposições realizadas no mesmo local, “Desenhos e Caricaturas de Amadeo de Souza-Cardoso” permitirá a edição de um Catálogo, que contará com os contributos da curadora e da investigadora Leonor de Oliveira. Durante o período da exposição terão lugar visitas comentadas. Esta invocação de Amadeo insere-se no movimento de crescente valorização da vida e da obra do artista – permitindo na faceta dos desenhos e caricaturas compreender melhor a influência que exerceu nas gerações que se lhe seguiram. Ainda que não tenha colaborado nos dois primeiros números de “Orpheu”, estava prevista a inserção do seu contributo no malogrado terceiro número que nunca viu a luz do dia e que está profundamente ligado ao drama de Mário de Sá-Carneiro. De qualquer modo, deve dizer-se que Amadeo é de direito próprio uma das figuras mais marcantes do nosso primeiro modernismo, hoje com um reconhecimento europeu, pela sua originalidade e audácia criadora.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CARTA NOVA A JOSÉ SARAMAGO


Meu Caro José Saramago:


   Nas minhas Cartas a José Saramago, todas publicadas, há uns anos (2013/14), no blogue do Centro Nacional de Cultura, nunca me debrucei sobre o Memorial do Convento, obra que sempre me falou menos do que outros escritos seus, com que dialoguei naqueles tempos... Dias atrás, todavia, resolvi pegar nesse livro de 1982, em edição donde não se apagara ainda a dedicatória do autor a Isabel da Nóbrega: À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova. Bonito dito, quase bíblico, deveria ter sido guardado pela mesma verdade que tão sinceramente o inspirou.


   Mas deixo o desabafo sozinho, ou talvez não. Acompanho-o de uma mais longa citação do próprio romance, quando o padre Bartolomeu Lourenço, em trabalhos de passarola, diz ao mutilado soldado Baltasar, conhecido pelo cognome de Sete-Sóis:


   «...maneta é Deus, e fez o universo».


   Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como que para não dar tempo ao diabo de concluir as suas obras, Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda. 


   
Se estivesse agora a escrever-lhe, José Saramago, mais uma das minhas cartas intemporais (se fossem suas, seriam póstumas), dir-lhe-ia que, de Deus, nada sabemos, nem de direita, nem de esquerda. Todavia, por muitas e variadas imagens do Inferno que o engenho humano construa, nenhuma me parece tão verosímil como esta: à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência. Isso mesmo: o Inferno é a ausência de Deus. Tão somente bastante. É evidente que outras representações, como as de sofrimento eterno ou de infinita tortura, tantas vezes resultantes de uma intenção de castigo vindicativo, nascem de visões antropomórficas do ser divino: os humanos - uns mais, outros menos - são propensos a gostar do espetáculo, ainda que só imaginário, do padecer alheio. Vá lá a gente perceber porquê, somos tentados a ser assim, até a própria Igreja - Santa Madre Igreja - consentiu e fomentou o Santo Ofício, a Santa Inquisição, o Santo Temor de Deus, do Rex Tremendae Majestatis, Senhor absoluto do Dies Irae. Parte importante da pedagogia cristã e do que se entende por Magistério da Igreja se fez incutindo o medo, o horror às profundas do Inferno, este surgindo como lugar de sevícias infligidas aos humanos pecadores por diabos a soldo do Deus castigador... A abundante iconografia é esclarecedora da insistência sadomasoquista nas misérias diabólicas do Inferno.


   Ora, com exceção de alguns poucos episódios (como a expulsão dos vendilhões do templo), os evangelhos não recorrem ao castigo como indispensável coadjutor da conduta moral, antes apelam à vocação libertadora da conversão para abrir a via de ultrapassagem do pecado - pecado que é a nossa teimosa paixão de nos confinarmos nos nossos próprios limites - e nos levar à descoberta da vida nova. Vai em paz e não voltes a pecar. Curiosamente, os pecados referidos, tais são conforme a lei mosaica, Jesus não cria qualquer catálogo de pecados novos (como a igreja clerical mais tarde o fará, remoendo sobretudo, e misoginamente, práticas sexuais), apenas ensina que o bem e o mal se cozinham no pensarsentir dos seres humanos, e é de cada um de nós que, bem ou mal, têm voz de saída. O único mandamento novo é o do amor fraterno, para que a nossa alegria seja completa. E quando nos chama a atenção para a escuta dos sinais dos tempos, e de Deus, conta a parábola do rico que desprezava o pobre Lázaro em vida, e que ,depois de morto, sufocado de sede no Inferno, pediu autorização para poder avisar seu irmão de que não deveria proceder como ele próprio, pois correria risco de castigo grande... É-lhe negado tal alívio : quem não escuta em vida a voz de Deus, nas vozes tantas que a vida nos traz, não saberá arrepender-se depois de morto. Nosso é só o tempo desta vida.  


   Ao afirmá-lo ocorre-me outro passo do Memorial, páginas adiante do já citado: Não é verdade que a mão esquerda não faça falta. Se Deus pode viver sem ela, é porque é Deus, um homem precisa das duas mãos, uma mão lava a outra, as duas lavam o rosto... Leio-o metaforicamente, Saramago toca aí em algo que as nossas ânsias de representação antropomórfica de Deus - teimamos em recriá-Lo à nossa imagem e semelhança - nos escondem: o Deus Vivo, não tem morte nem qualquer limitação, é simplesmente o Quem é, o Ser por si, alheio ao espaço e ao tempo. Nós, pelo contrário, somos contingentes, medimos o espaço que nos é alocado, contamos a vida e o tempo, organizamos a nossa mente e suas visões (é isso a cultura), moralizamos e legiferamos também, para podermos contar e julgar os atos. Agitamo-nos muito, condenamos ou "canonizamos", com feroz sofreguidão, sob o chicote da impaciente pressa do tempo. Esquecemos Deus, para quem um dia é igual a mil, e mais ainda nos esquecemos de que nada sabemos dele, nem da sua presença no coração de cada um de nós, cujo íntimo só Ele conhece. Estar à mão esquerda de Deus, poderá ser uma queda no esquecimento ou na nulidade, mas também significar que o Rex Tremendae Majestatis se esqueceu do castigo, pelo menos desde o dia em que o descobrimos na pessoa incarnada do Filho que nos ensinou como tudo é perdoado aos que muito amarem. Deus não tem mão esquerda. Mas nós temos inquietação. Nem o José, enquanto por cá andou, a conseguiu sempre disfarçar.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

OS 200 ANOS DO "CATÃO" DE GARRETT


Será oportuna esta primeira evocação da estreia do “Catão” de Almeida Garrett, ocorrida precisamente em 1821 no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, com a participação do autor, então com 22 anos. Uma peça de juventude, portanto, o que não impediu obviamente ponderações autorais posteriores sobre as origens do texto. E no entanto, há que obviamente reconhecer a qualidade de literatura e de espetáculo que a peça envolve e que Garrett, insista-se, na altura muito jovem, tantas e tantas vezes depois assumiu, numa visão subjetiva e sempre autoelogiativa mas nem por isso menos adequada… 


E é de assinalar que o “Catão” aponta desde logo o sentido de espetáculo à época moderno mas também à época conciliado com a tradição cénica e de conteúdos que o teatro do Garrett mantem ao longo da vasta obra cénica que produziu.


Essa criatividade teatral tem o expoente no “Frei Luís de Sousa” mas surge desde o início da sua dramaturgia, à época, insista-se, renovadora e desde sempre muito válida. De notar, designadamente, a capacidade de adaptação/modernização do estilo e da linguagem clássica com um sentido de espetáculo que desde início da obra dramatúrgica garreteana se desenvolve e tem o valor máximo e atual, mas não exclusivo, repita-se, no “Frei Luís de Sousa”.


E tal como já escrevemos, o “Catão”, insista-se, peça de juventude, contém uma capacidade admirável de manuseio do verbo clássico para a afirmação do espírito de defesa da liberdade e de combate ao poder político absoluto, que transporta o tema para a modernidade direta na época e em tantos aspetos de hoje, na afirmação das instituições  parlamentares:  e a verdade é que, dois séculos decorridos, há na peça uma modernidade que transcende o estilo romântico da linguagem cénica.


E novamente transcrevemos cenas que já temos citado e que marcam desde logo as características do teatro de Garrett e implicitamente, das origens ainda algo clássicas do teatro romântico:


“DÉCIO: A Catão, saudar César envio

 CATÃO: Catão não vejo aqui, vejo o Senado. /Eu César não conheço./  DÉCIO: O Invicto,  o grande triunfador do mundo ati envia”.


E mais adiante a grande fala de Catão, que sintetiza o conteúdo doutrinal da peça:


“CATÃO: As condições são estas: Desarme as   legiões, deponha a púrpura, abdique a ditadura: à classe torne de simples cidadão e e humilde aguarde a sentença de Roma – Então eu próprio, quanto inimigo fui, cordial amigo, seu defensor serei.”


Este é de facto um assunto determinante da renovação garrettiana do teatro português. A ele iremos voltando neste ano de comemoração da reforma de Almeida Garrett.


E a tal respeito, refere-se designadamente a polémica que na época provocou. Iremos então referir um longo texto de José Luís Baiardo sobre as reações que a obra e também a personalidade de Garrett provocou. Vem citado no estudo de Ana Isabel Teixeira de Vasconcelos intitulado “O Teatro em Lisboa no Tempo de Almeida Garrett” (MNT) que também já temos referido a propósito de Garrett.


Porque Garrett era efetivamente e ainda é uma personalidade notória, na época e hoje em tantos aspetos citada!

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

70. AVALIANDO O INDIVÍDUO E AS SUAS IDEIAS


Deverá o indivíduo ser apenas avaliado em função das suas ideias? 
Ser mais avaliado do que as suas ideias?
Ser menos avaliado do que as suas ideias?    
Há obras sublimes de pessoas machistas, femistas, misóginas, misândricas, mitómanas, alcoólicas, avarentas, devassas, xenófobas, racistas, homicidas, vigaristas, escandalosas, opiómanas, perversas, cujos autores ambicionavam mudar para melhor a natureza humana, mas que não hesitavam pessoalmente em humilhar ou tiranizar.  
Se é um dado assente que o mundo pode ser remodelado ou transformado pela força do intelecto, podendo criar uma sociedade e civilização melhor, também há utopias fraudulentas em que a teoria colocada à frente da experiência transforma esta, quando no poder, em controlos totalitários não poucas vezes louvados por intelectuais promotores de ideias tirânicas.     
Se as falhas privadas do indivíduo não devem anular o seu génio, havendo que separar o autor da obra quando falamos, por exemplo, de criação artística, é compreensível investigar e saber o essencial da biografia de mentores e mentes que tentaram e ousaram modificar, transformar e revolucionar a sociedade e a natureza humana.
Haverá sempre algum ganho se adicionarmos ao conhecimento biográfico o da obra. 
O que nos leva a concluir que há autores cuja biografia se confunde com a obra, outros não, ou nem por isso.  
Muitos deles, como cidadãos comuns, foram maus e péssimos exemplos, o que não traz nada de novo, por também inerente ao ser humano.   
Justifica-se que as suas ideias sejam liminarmente rejeitadas? Mesmo não concordando com elas, apesar do seu autor, como cidadão comum, ser uma boa pessoa? 
A avaliação e reflexão, em democracia, situa-se noutro patamar: as suas ideias devem ser reprovadas pelos argumentos, pela discussão, pelo debate, questionamento, réplica, exercício do contraditório e sentido crítico, pela força da razão, e não porque foram inaptos de as adaptar na sua circunstância ou por qualquer outro fundamento moral que as anule ou desacredite.

 

16.04.2012
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

HÉCTOR ABAD FACIOLINCE

Quando o amor de um pai é a magia mais extraordinária do mundo


Mal nos envolvemos na leitura das primeiras páginas deste livro e logo aquele amor entre pai e filho nos enche os sonhos de uma única e sabedora substância.

É o menino pela mão de seu pai.

Este menino não se imaginava sequer no céu, sem o seu pai. Chegou a ver-se por lá e, espreitando para baixo, avistou o pai no inferno, e logo lhe saltou para os braços.

Até ao nascimento dos filhos deste menino, ele nunca tinha sentido um amor assim. Sentia que ao lado do pai nunca nada de mal lhe aconteceria, tal como sente que aos seus filhos nada acontecerá se estiverem com ele.

Ele, o menino e seu pai, viviam numa casa de mulheres: eram dez no total e cinco delas irmãs do menino. A sua infância, na relação com seu pai, fora algo que só se sente muito fundo, naqueles sítios do sentir anterior ao sentir. Ele sentia pelo pai o que os amigos sentiam pelas mães deles.

Quando o pai se ausentava, ele recordava-lhe o cheiro que resistia na fronha da almofada da cama não mudada, a seu pedido, pelas criadas.

Era um mundo em que até os medos medonhos se acolhiam e adormeciam no largo braço do seu pai. Parecia-lhe que o pai o deixava fazer tudo, bastando que o tudo fosse mexer nos livros dele ou no pincel de barbear. Era maravilhoso fingir que sabia escrever à máquina e dedilhar as letras todas numa confusão que, afinal não existia, pois qualquer delas tinha em si a palavra “Pai”. Ah! E aquela luz forte nos olhos só de imaginar que um dia lhe escreveria cartas.

E ele, este menino, nunca conheceu os cumprimentos distantes entre machos, entre pai e filho, daqueles que aparentemente não tinham afetos. Ele, este menino, só conheceu os abraços e as frases carinhosas de seu pai, ou o seu pai não achasse que mimar os filhos era o melhor dos sistemas educativos. 

Nada melhor afinal do que um caderno de apontamentos chamado Manual de tolerância.

Nada melhor do que existir a noção de que os pais podem fazer os filhos muito infelizes e que fazê-los felizes lhes aumenta a bondade e esta a sua felicidade.

Este amor faz os filhos sentirem-se fortes para que um dia a dureza da vida os não vergue, antes os renasça na infância, se necessário.

Ainda hoje, este menino sente que obedece ao pai, ao pai que lhe ensinou a desobedecer se necessário; ao pai que ainda hoje por memória lhe resolve dilemas morais; ao pai que um dia lhe agarrou por um braço deixando-lhe marca, e o obrigou a pedir, em alta voz, desculpa a um vizinho que ele tinha aviltado, copiando colegas.

Depois, depois o pai fechou-se no escritório com ele, e olhando-o nos olhos, recordou-lhe que o próprio Jesus era judeu.

Ter um pai assim, era conhecer a leveza do aprender em compaixão. Era conhecer quando as crianças o que têm é fome.

Um dia, muitos anos depois: 

Filho, enquanto continuares a estudar e a trabalhar como tens feito (…) para nós a tua dependência não será uma carga, mas uma agradabilíssima obrigação.

Assim é a magia mais extraordinária do mundo.


 Teresa Bracinha Vieira

JESUS E A IGREJA. 1

  

1. Será preciso começar pela pergunta: Jesus fundou a Igreja, concretamente com a constituição com que hoje se apresenta? A resposta é inequívoca: “Não”. De facto, por exemplo, na obra com o título em português A Igreja Católica ainda tem futuro? Em defesa de uma nova Constituição para a Igreja Católica, na sequência de outras, o famoso exegeta Herbert Haag, da Universidade de Tubinga, com quem tive o privilégio de privar, renovou a tese segundo a qual é um dado seguro da nova investigação teológica e histórica que Jesus não fundou nem quis fundar uma Igreja (Jesus é o fundamento da Igreja, mas não o seu fundador, dizia o grande teólogo Karl Rahner) e, assim, muito menos pensou numa determinada constituição para ela. Também o Cardeal Walter Kasper, quando era professor da Universidade de Tubinga, perguntava nos exames aos estudantes se Jesus tinha fundado a Igreja, esperando uma resposta negativa.


Jesus não pregou a Igreja; anunciou o Reino de Deus. É bem conhecida a afirmação célebre de Alfred Loisy, em O Evangelho e a Igreja (1902), talvez a obra de teologia que mais polémica levantou no século XX: “Jesus anunciava o Reino e o que veio foi a Igreja”.


Com a morte de Jesus na Cruz, o suplício próprio de escravos, os discípulos confusos fugiram, dispersaram-se, voltaram às suas tarefas normais, pois aparentemente tudo tinha terminado. Assim, o que é espantoso — o enigma do Cristianismo, mesmo de um ponto de vista histórico, é precisamente esse — é que pouco tempo depois começaram a dizer que o tinham “visto”, que Ele está vivo. Se tudo tivesse terminado na morte, o destino de Jesus teria sido o esquecimento. Os discípulos reuniram-se, pois, outra vez e formaram comunidades (ekklesiai) congregadas pela fé em que esse Jesus, o Messias de Deus, voltaria em breve para instaurar o Reino de Deus em plenitude. Portanto, também as primeiras comunidades cristãs viveram dessa profecia, dessa fé e dessa esperança da chegada iminente do Reino de Deus. Neste sentido, basta ler a Primeira Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses 4, 15-17: “Nós os que estamos vivos, quando vier o Senhor, não teremos preferência sobre os que morreram.”


Não há dúvida de que as comunidades de São Paulo se legitimaram democrático-carismaticamente. Como é um facto que as primeiras comunidades se reuniam em casas particulares e celebravam a Eucaristia — o banquete do amor e testemunho da verdade até ao fim —, recordando a última Ceia e as várias refeições de Jesus. Quem presidia era o dono ou a dona da casa. Isto significa que todos os ministérios da Igreja actual, nomeadamente o ministério episcopal e o ministério sacerdotal, não foram criados por Jesus, mas pela Igreja. Como escreve Hans Küng, dado o adiamento da segunda vinda de Jesus, foi por motivos práticos que se impôs mais tarde uma “hierarquia”, uma “hierarquia ministerial”, composta por bispos, presbíteros e diáconos. Mas, a partir dos documentos do Novo Testamento, não se pode falar de uma “instituição” desta hierarquia ministerial e ordenada por Cristo ou os Apóstolos. Por isso, “apesar de toda a ideologia eclesiástica”, também não se pode afirmar que seja “imutável”. Ela é “o resultado” — talvez quase inevitável — de “um desenvolvimento histórico”, de tal modo que, embora a Igreja possa ser assim organizada, “não tem que sê-lo”. Portanto, a Igreja dispõe dos ministérios livremente. Pode mantê-los, aboli-los, mudá-los. Nisto, o princípio tem de ser: não é a comunidade que tem de orientar-se pelas necessidades do ministério, mas o ministério pelas necessidades da comunidade. Os ministérios existem para a comunidade, não a comunidade para os ministérios. Assim, mesmo para presidir à Eucaristia, o pressuposto não tem que ser uma ordenação sacra (Weihe), pois trata-se de um encargo, uma função, uma missão (Auftrag), que poderá ser temporária, por algum tempo, conferida a um homem ou a uma mulher, casados ou não. Onde é que está, no Novo Testamento, que Jesus ordenou alguém como sacerdote na Última Ceia?


A ordenação sacra sacerdotal levou, contra a vontade de Jesus, a duas patologias: o clericalismo e o patriarcalismo. A Igreja constituiu-se como nova sociedade composta por duas classes: hierarquia e povo, “clero” e “leigos”, sublinha Herbert Haag. Deste modo, estabeleceu-se aquele equívoco corrente: sempre que alguém se refere à Igreja, entende-se a hierarquia e não as discípulas e os discípulos de Jesus, isto é, esquecendo mais de noventa e nove por cento da Igreja, tem-se em mente menos de um por cento. Mas Jesus tinha dito: “Sois todos irmãos.”


Um dos nós do problema começou com a concepção da Eucaristia como sacrifício. Com a perspectivação cultual- sacrificial, apareceu o sacerdote, e, com a celebração diária da Eucaristia, a obrigação do celibato, pois o sacerdote está separado, à parte: tocando no Corpo do Senhor não pode tocar a profanidade impura do corpo da mulher, que ficou excluída da ordenação sacerdotal.


Aparecem então várias contradições na Igreja. Há uma que se torna gritante, concretamente em tempos de confinamento: os padres e os bispos podem celebrar a Eucaristia, centro da vida cristã, mesmo sozinhos; as comunidades cristãs, não. A outra: o cristianismo está na base da emancipação feminina, cada vez mais presente nas sociedades, mas a Igreja continua a discriminar as mulheres, não lhes reconhecendo igualdade com os homens. Por isso, sentem-se humilhadas na Igreja, que, muitas, vão abandonando.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 ABR 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Transcendendo a superfície material.


‘It’s what’s important to me – finding a quantity for myself and whatever problem I might get with it. I might find something else, answer some question, or find some form or thought.’, Eva Hesse, 1969


‘Hang Up’ (1966) transcende a pintura como suporte bidimensional.


Eva Hesse considera ‘Hang Up’ como o seu trabalho mais absurdo, surreal e estranho. O trabalho de Eva Hesse sempre refletiu a sua vida e sua experiência.


Uma vez conhecendo a história da sua vida, faz-se automaticamente uma ligação com o seu trabalho como artista. A sua vida foi considerada absurda e cheia de contradições: a fuga para os Estados Unidos, a relação amorosa da sua mãe com o psiquiatra e o seu suicídio, a relação doentia e incestuosa com o seu pai e no final o tumor cerebral (que era a mesma doença da sua madrasta).


‘Hang Up’ foi feito depois da sua estadia na Alemanha, da morte do seu pai e da separação de Tom Doyle. Com este trabalho, parece que Eva Hesse começou a construir estruturas para suportar a sua vida. Estruturas para suportar ausências.


‘Hang Up’ ainda é uma ideia. É uma peça primitiva, básica tal como um esqueleto de uma construção. Tem profundidade material, mas também profundidade em termos de significado: ‘...it is a kind of depth or soul or absurdity or life or meaning or feeling or intellect that I want to get…’


É considerada a base de seu trabalho artístico. É espaço e é contacto.


É um metal muito fino e forte, facilmente dobrável. A moldura tem um significado pictórico muito forte. É toda amarrada, tal como uma ligadura de hospital, com um cordão rígido em volta e que depois foi cuidadosamente pintada com diversas camadas – é mais do que apenas um simples retângulo, talvez seja uma janela... Está relacionada com um grande vazio interior.


Esta peça é um desenho ausente com extensão. É um vazio, um nada sem conteúdo. Apenas uma linha absurda salta para fora do quadro, transcendendo a borda e a fronteira e fazendo duas direções infinitas coexistir: o dentro e o fora.


Hesse perde a dimensão da moldura tal como se perdesse a dimensão de si mesma. Parece que o objeto está completamente limpo - apenas uma linha se concretiza, cheia de contradições, apresentando uma instabilidade radical. É um desafio a qualquer possibilidade de fixação e de definição. Os elementos de ‘Hang Up’ são por natureza instáveis, inconstantes e transeuntes. (Pollock 2006, 43)


‘Hang Up’ é uma peça ativa que une a artista com o público. É como um desenho tridimensional, que lembra a obra de Helena Almeida ao projetar-se na terceira dimensão e ao representar pedaços de uma vida que se conservam na tela.


Com ‘Hang Up’ Eva Hesse transcende todos limites. Simultaneamente combina criação com receção. Hesse queria que o desenho literalmente saísse e caísse com a gravidade e parecesse colado ao chão. A corda de metal duro materializa a terceira dimensão. O desenho salta e torna-se independente da superfície.


Com apenas um gesto - um gesto mínimo - Eva Hesse estabelece todo o controlo da forma.


A linha corre pura e mutável, no vazio. A linha une a diagonal e ocupa todo o espaço disponível que está à sua frente. É como se fosse um gesto com sombra. O espaço é agora a superfície da pintura. Eva Hesse pinta para a frente e faz com que o público participe na conceção e na interpretação desta obra.


Eva Hesse combina vazio, espaço, descontinuidade e sensibilidade. É quase como se fosse a estrutura de uma perda, de uma carência, de uma privação – é um objeto perdido.


A haste de metal em 'Hang Up' não permite que a peça fique flácida, em vez disso, define uma curvatura aparentemente firme e crescente mesmo à frente da estrutura vazia.


'Hang Up' pode ser considerado a extensão de um vazio? Será ausência de presença? Ou talvez materialização de algo que nunca se concretizará, nem voltará?


‘Hang Up’ é na verdade uma peça muito contraditória: é em simultaneamente ocupação e vazio; afirmação e negação; definição e ausência; parede e chão; verticalidade e horizontalidade; estabilidade e instabilidade; fixo e solto; duas dimensões e três dimensões; pintura e escultura; tudo e nada; rigidez e fluidez.

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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    De 12 a 18 de abril de 2021

 

A publicação da obra Penser la Justice – Entretiens de Michael Walzer e Astrid von Besenkist (Albin Michel, 2020) permite-nos pensar nas consequências sociais da pandemia que nos atinge.

 

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E AGORA? 

A pandemia, as suas consequências e a recuperação obrigam a uma reflexão séria sobre a democracia e um novo contrato social. E se na crise sanitária foram os Estados e os governos a marcar a diferença na proteção dos cidadãos, torna-se indispensável maior responsabilidade social para garantir mais coesão e menos desigualdades. A crise financeira de 2008 somou-se à crise da saúde pública – e o resultado esteve na fragmentação da sociedade, na emergência dos egoísmos nacionais e na fragilização das democracias, por falta de instituições mediadoras e pela emergência das lógicas de curto prazo… A publicação da obra Penser la Justice – Entretiens de Michael Walzer e Astrid von Besenkist (Albin Michel, 2020) constitui um importante contributo para a reflexão necessária sobre estes temas. Walzer ensinou Filosofia Política em Harvard e Princeton e é um dos mais importantes pensadores contemporâneos e a sua interlocutora é professora em Sciences-Po (Paris) e chefe de redação da revista “Raisons Politiques”. Como sabemos, o autor de As Esferas da Justiça (Presença, 2003) há muito que insiste na ideia de que mais importante do que escrever uma “Teoria da Justiça” é pensar a justiça distributiva em função do contexto económico, social e político. E é essa questão que ocupa, em parte significativa, este diálogo, fundamental para o momento que atravessamos.

Ao contrário das teorias contratualistas clássicas, Michael Walzer não tem uma abordagem da justiça como realidade hipotética. Antes, prefere pensar nas condições de um consenso verdadeiro e concreto – e nisso demarca-se do “consenso de sobreposição” de Rawls. Por outro lado, não podemos contentar-nos com meras doutrinas morais. Daí a importância do pluralismo, não confundível com relativismo. Tudo depende do significado que os cidadãos atribuem aos bens que recebem. A justiça distributiva varia com a natureza dos bens distribuídos, com as esferas nas quais se verifica essa partilha e com o tempo e o contexto cultural com que nos deparamos. Os bens possuem uma significação diferente consoante a respetiva inserção económica e social. E é esta insistência na “diferença” que constitui a marca própria do pensamento de Walzer. De facto, não podemos apreciar o que é devido a uns e a outros enquanto não soubermos como as pessoas se ligam entre si através do que produzem e distribuem. A singularidade dos sujeitos económicos e o funcionamento das sociedades não se referem apenas às coisas que se fabricam, mas aos diferentes significados que lhes atribuímos, numa objetivação progressiva e plural (na segurança, no bem-estar, no dinheiro, na organização, na educação, nos tempos livres, no poder político, no reconhecimento etc.). E é neste entendimento que o pensador prefere os passos lentos do reformismo (mercê do diálogo e do gradualismo), em lugar dos movimentos rápidos e revolucionários – que rapidamente se tornam reversíveis, já que não podemos fazer tábua rasa dos valores vividos socialmente.

 

UM NOVO CONTRATO SOCIAL

Um novo contrato social obriga, assim, a uma economia centrada na ideia de serviço público de qualidade, num contexto democrático, caracterizado pelo desenvolvimento humano baseado em crescimento limpo, mobilidade segura, envelhecimento ativo com saúde e no melhor aproveitamento da inteligência artificial como instrumento ao serviço da dignidade humana. Urge, deste modo, distinguir valor e preço – porque o que tem mais valor não tem preço, pressupondo o desenvolvimento a noção qualitativa de criação de valor, porque a sociedade não pode basear-se num crescimento ilimitado. O cidadão contribuinte não pode apenas ser consumidor, tem de participar, de estar informado e de contribuir para que Estado e sociedade se tornem fatores de inovação. Daí a necessidade de haver mediadores credíveis, legítimos e respeitados. Se o Estado não deve ser produtor, a sociedade não pode ser apenas consumidora. A legitimidade democrática obriga a considerar a participação, a representação, a transparência e a partilha solidária dos cidadãos. Tem de haver complementaridade entre o contributo das pessoas e a qualidade do serviço público que auferem. Os sistemas fiscais e a justiça distributiva pressupõem: a tributação adequada aos rendimentos, aos compromissos e às prioridades correspondentes ao bem comum; a criação de um valor solidário, correspondente a serviços públicos de qualidade, devidamente avaliados, próximos das pessoas, em especial na saúde, educação e cobertura de riscos sociais; bem como o respeito da regra de ouro das finanças públicas e da equidade intergeracional – a dívida pública só é legítima se realizar investimentos reprodutivos, a sustentabilidade social e ecológica deve salvaguardar o futuro do planeta e das novas gerações. Como tem afirmado Mariana Mazzucato, precisamos de instituições que moldem os mercados e os tornem fatores inovadores de uma economia humana, não acomodada nem dominada pela cegueira burocrática (Cf. O Valor de Tudo. Fazer e Tirar na Economia Global, Temas e Debates, 2018)

 

MAIS CIDADANIA

Eis porque um novo contrato social, que valorize a participação dos cidadãos e a responsabilidade solidária, tem de se basear na diferenciação positiva e na complexidade, adotando políticas ativas centradas na valorização do "capital humano". A aprendizagem é a chave do desenvolvimento, pois só ela permite compreender criticamente os limites, e assegurar que a informação se torne conhecimento, e que o conhecimento se torne sabedoria. A pandemia, permitiu-nos verificar que desvalorizámos elementos essenciais. Importa tirar consequências – precisamos de um planeamento participado e responsável, que nos permita viver de acordo com os meios de que podemos dispor. O desperdício afeta a sustentabilidade e a justiça. Liberdade e ignorância são contraditórios – informação e conhecimento exigem aprendizagem e justiça. A pandemia ampliou a automação que ameaça trabalhadores de serviços pessoais pouco qualificados, pelo que se exige melhor educação e qualificação, preparando as pessoas para as mudanças do mercado. Eis por que importa pensar num contrato social, assente na ligação entre liberdade e responsabilidade, autonomia e solidariedade, Estado e sociedade civil, criando verdadeiras parcerias capazes de defender o bem comum e o interesse público e não apenas o maior ganho. Importa, no fundo, que haja catalisadores, públicos, sociais e privados (como na “Nova Fronteira” de J. F. Kennedy), centrados na inovação social, na aprendizagem e no equilíbrio ambiental – designadamente nos três domínios fundamentais da quarta revolução industrial: a energia, a saúde, a digitalização. Eis porque precisamos de agir em vários tabuleiros, considerando a diferença e a complexidade, o que obriga à definição de missões, de objetivos e calendários, à interdisciplinaridade, à coordenação supranacional e à articulação de setores, em suma, à consideração da experiência e à recusa de lógicas simplificadoras…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

 

 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:


   Tumular me surge a manhã deste Sábado Santo. Acordo e levanto-me num dia cinzento, silencioso e quieto. Da varanda larga do meu quarto, avisto os campos inumados numa atmosfera incolor até ao horizonte. Não bole uma folha nas árvores dos pomares que acompanham a encosta até à estrada deserta de carros e pessoas. Desço ao meu gabinete, ponho-me à escuta das Lamentações de Jeremias, em composições de vários autores, de Alexandre Agricola a Orlando di Lasso, passando por Cristobal de Morales e Jacob Arcadelt, interpretadas pelo Egidius Kwartet, em julho de 2007 na Laurentius Kerk Mijnsheerenland, na Holanda. Cada Lamento é rematado pela conhecida exortação: Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum... Abro os olhos e, cá em baixo, já vejo, no quadro desta janela, a minha sakura florida e viçosa, a lembrar-me lição sage da natureza onde a permanência se descobre na humildade da constante mutação das coisas. No pensarsentir humano, chamamos-lhe conversão ou metanoia. Associamos-lhe, em regra, a ideia de arrependimento e penitência, ou renúncia (para melhor troca?). Mas nesta manhã cinzenta de Sábado Santo, quando o nosso silêncio ecoa o do Senhor Jesus, envolto em panos no segredo do seu sepulcro, e ainda o sofrimento e morte que vai ferindo tantos humanos por esse mundo fora, a flor da cerejeira que trouxe do Japão sorridente me acena com a promessa da alegria maior que encontrarei na simples contemplação do amor redentor de Deus, se assim o quiser também seguir a fidelidade do meu pensarsentir. Medito em como o próprio transitório pode, em silêncio, revelar-nos, num só vislumbre que seja, a inesgotável permanência... E ocorre-me essa resposta de Higuchi Ichiyo (1872-1896), jovem escritora (e autor clássico das letras japonesas, morta tuberculosa com apenas 24 anos) à pergunta sobre o que a faz mais feliz: Desde logo, não são roupas de brocado. O que me faz feliz é a natureza. Há uma verdade, uma honestidade na natureza que por vezes me traz o sentimento de comunicar com as flores silenciosas e a lua tranquila. Esqueço então completamente o mundo flutuante (ukiyo). É como se dançasse no centro de uma esplêndida flor, a propósito criada para aquele instante. Eis como são os meus momentos de felicidade.


   
Acontece-me recordar palavras de Jesus, ao dar comigo em busca de comunhão e paz: Não quero sacrifício, mas misericórdia. A ideia de sacrifício, aliás, traduz sobretudo, vezes demais, a do pagamento duma obrigação ou dívida para com a divindade, como se cumprir um dever ou uma renúncia fosse, em si e por si, ato sacralizante e sempre meritório, transformador do profano em sagrado. Menos vezes entendemos que a misericórdia não é um ato individual, nem qualquer renúncia à espera de compensação. Misericórdia é partilha de coração, com tristezas e alegrias, vida e afetos, êxitos e fracassos, na comunhão do amor. Isto é, anima-se, vive por todos, com todos e em todos. Ninguém pode amar sozinho. Nem sequer perdoar é solitário, o perdão é sempre recíproco: assim leio a parábola do filho pródigo, em que vejo como o pai, ao perdoar o filho, procura também perdão para si. A misericórdia é, necessariamente, uma relação indissociável. O ofertório maior do sacrifício do próprio Filho de Deus só tem sentido no vínculo indestrutível ao Verbo redentor. No seu sepulcro, Jesus inumou consigo a humanidade inteira, para dali ela surgir nova. Qual flor que desabrocha, a meditação sobre o Santo Sepulcro é também momento de alegria. Faz-me feliz pensar que todos podemos comungar na esperança que só o amor partilhado traz.


   Este Domingo de Páscoa surge-me solar, caloroso, criador. É certo que ninguém assistiu à Ressurreição, apenas alguns poucos viram o túmulo vazio, só Maria Madalena viu e falou com o Mestre que, aliás, primeiro confundiu com um jardineiro... Interpelando este, confessou que buscava o seu Senhor, e é essa procura que veicula e realiza o primeiro encontro. Contudo, não pode tocar-lhe: Jesus já não é uma presença física, torna-se naquele que, em comunhão eucarística, os seus seguidores deverão, ao longo da história, reconhecer e anunciar através da partilha do pão. O "sagrado" cristão viverá pela fraternidade humana: as bem aventuranças são bênção do Cristo glorioso descendo sobre quem der de comer ao faminto, de beber ao sedento, praticar a justiça e construir a paz. O beneficiário dessa solidariedade é o próprio Jesus, que, com cada um de nós, vive no coração do Pai. Na celebração eucarística e comungante da Páscoa, mesmo quando solitária, mais do que muitos, estamos todos unidos na alegria da libertação da morte pela comunhão fraterna. A Boa Nova não veio para nos ensimesmar. Veio para nos anunciar a vida que é essa alegria de nos amarmos uns aos outros. Efetivamente, na busca e construção da justiça e da paz. 


   Assim este teu amigo, Princesa de mim, foi refletindo na celebração confinada desta Páscoa cristã.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira