Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

22044523_AYkGP.jpeg
  De 31 de maio a 6 de junho de 2021

 

«Ver é Ser Visto – Fragmentos Essenciais» é uma Antologia de Eduardo Lorenço (1923-2020), na qual se reunem alguns dos textos mais significativos do grande ensaísta.

 

ver é ser visto _ Eduardo Lourenço.jpg

 

DE FORA PARA DENTRO…

Eduardo Lourenço sempre sentiu a necessidade de analisar a realidade cultural de fora e por dentro. A sua ideia de heterodoxia deparou-se, desde que surgiu, com múltiplas incompreensões – já que várias ortodoxias se sentiram atingidas. Procurando salvaguardar sempre a independência de espírito, causou em muitos dos seus leitores e investigadores sentimentos diversos e contrastados. Manteve-se, porém, fiel às inquietações fundamentais. Longe das certezas, sempre preocupado em pôr-se na pele do outro, considerou como necessário evitar conclusões simplistas, partindo da imperfeição humana e da responsabilidade de caminhar no exigente sentido de uma singularidade e de uma sociedade melhores. A escolha do ensaísmo, no caminho indicado por Montaigne, significa, aliás, a preocupação fundamental de procurar, a partir da reflexão pessoal, não uma ordenação do mundo, mas o entendimento da complexidade humana e das suas metamorfoses. E percebemos, assim, a influência de Sílvio Lima, mestre que encontrou na Alma Mater de Coimbra, e a aplicação de uma persistente análise que fez do método ao longo da vida, com engenho e inesgotável capacidade inovadora. Os textos que constituem a antologia procuram abranger momentos importantes do percurso do seu autor, começando pela definição da atitude independente e heterodoxa e pela referência fundadora da relação com a Europa e com o diálogo que então nos faltava (1949), colocando essa reflexão na continuidade de quantos portugueses recusaram fechar-se dentro das fronteiras, desde os renascentistas aos românticos, como Garrett e Herculano, até à complexa atitude de Antero de Quental e da sua geração, de quem se sentiu tão próximo sempre. E nesta linha repensa Portugal (num contexto existencial), glosa a conferência de Antero sobre as “Causas da Decadência”, interroga Oliveira Martins, analisa criticamente o papel dos mitos, desconstrói a saudade e o sebastianismo, encontra-se com o Camões histórico enquanto referência cultural perene e diversa, e mergulha numa reflexão sobre Fernando Pessoa, rei da nossa Baviera, aprofundando, à medida que mais se ia conhecendo a obra do poeta, a significação do seu lugar no tempo, para além da sua consideração portuguesa. A existência mítica e os caminhos vários que abre foram uma preocupação permanente do ensaísta, em busca da diversidade, da porta aberta, do melting pot português, do significado da nossa Nau de Ícaro (de um quadro de Breughel, o velho), das aventuras e desventuras migrantes, do País entre a realidade e o sonho, da língua projetada universalmente. Mas o sentido crítico, sempre muito agudo, levaria à reflexão sobre a Europa desencantada, labirinto de uma realidade necessária e frágil. E, por fim, nesta recolha, encontramos a relação pessoalíssima com a poesia – porque o ensaísmo de Lourenço procura insistentemente as intuições poéticas para deslindar o significado das ideias no mundo. Hölderlin diria “o que permanece / os poetas o fundam”. A amizade com Carlos de Oliveira obriga a explicações sobre “o sentido e a forma da poesia neorrealista”, a crítica e a metacrítica aprofundam a atitude criadora do autor, Camões é símbolo da nossa cultura e Antero revela a tensão essencial (bem presente neste ensaísmo) entre o pensamento e a utopia.

 

NOSTALGIA DA UNIDADE…

Eduardo Prado Coelho falou de uma nostalgia da unidade e do absoluto em Eduardo Lourenço. Num texto inédito de 1954, publicado pela revista “Relâmpago” (nº 22, 4-2008) (“Ísis ou a Inteligência”), o ensaísta diz: “a mitologia é a verdade dispersa, túnica rasgada de um deus morto a quem só podemos ressuscitar juntando com paciência piedosa todos os pedaços. Essa tarefa é superior às nossas forças”. É essa interrogação permanente sobre os mitos que nos revela uma das facetas mais originais do autor. Se bem virmos, é a desconstrução de mitos, como a saudade e o sebastianismo, ou como os excessos contraditórios sobre a nossa identidade, que permite avançar no sentido de uma ideia de emancipação individual ou coletiva. A melancolia ou o sonho não mobilizam vontades. Precisamos ir além da ilusão. É necessário “rever, renovar, suspeitar sem tréguas as imagens e os mitos que nelas se incarnam”. E o ensaísta é o primeiro a reconhecer uma certa ambiguidade no seu pensamento – expresso em fórmulas como “Poesia e Metafísica” e “Existência e Literatura” (no subtítulo de O Canto do Signo). Mas é a necessidade de entender a diversidade que o leva nesse sentido. “Perceber uma coisa é ver outra no lugar daquela que estamos vendo. Entender uma ideia ver outra no lugar dela. Sempre a ausência é o pano de fudo da presença, mas essa ausência é a grande presença”… “Ver é ser visto”. Esta consideração, sempre presente em Eduardo Lourenço, permite entender o seu sentido crítico, feito de contrapontos entre presença e ausência, entre eu e o outro. Daí a permanente perspetiva crítica e a nostalgia da unidade e do absoluto. São as grandes intuições de ordem global que considera primordiais, e é delas que parte análise dos fenómenos. E é assim que a poesia de Camões, Antero e Pessoa se projetam entre o sonho e a realidade, com a preocupação e evitar a tentação pura do abstrato.

 

CLARIFICAR O ENTENDIMENTO

Em entrevista concedida a António Guerreiro e publicada no citado número da revista “Relâmpago”, Eduardo Lourenço sente necessidade de clarificar a sua relação, falsamente empolada, com o tema Portugal: “Como os meus livros não têm uma sequência clara, muitos deles são muito marcados pela contingência, e são diversificados nos seus objetivos, acabo por não saber muito bem como é que eles são percebidos. Fundamentalmente, sou identificado com O Labirinto da Saudade. Este rótulo que me foi colado deve-se certamente ao facto de esse livrinho ser o único dos livros que suscita interesse por parte de gente dos mais diversos credos (…). E assim apareço eu investido de uma famosa preocupação por Portugal que é o contrário daquilo que penso ter escrito”. De facto, o ensaísta procurou libertar-se dessa simplificação. Mas esse rótulo também se alimentou “desta minha ideia diabólica e masoquista de querer sempre estar também do outro lado, inclusive do lado que me põe em causa”. E é certo que, contra a lógica de um só discurso, existente nas várias famílias ideológicas, o pensador “quis sempre dar uma chance a um discurso antagónico, contra o qual prossigo o meu combate mas que de algum modo integro no meu próprio discurso”.Os textos e as ideias encadeiam-se – numa procura permanente de posição e de sentido. A ordem é difícil de estabelecer – porque o ensaio é uma ginástica do espírito. O labirinto que o ensaísta percorre traz-nos a saudade não como melancolia ou como lembrança e desejo, mas como interrogação e dúvida, paradoxo e demanda de síntese. A paixão por Camões, Antero e Pessoa significa a procura de compreender a cultura como um diálogo permanente entre o sublime e a vida comum, a unidade e a diversidade... Eis o fascínio da leitura.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

OLHAR E VER


13. DE PRINCIPIA ET DE JURE


O que ultimamente se tem passado em Jerusalém é preocupante, mas sobretudo muito triste: as provocações e retaliações homicidas de judeus e palestinos muçulmanos relativas à ocupação ou utilização de lugares santos para eles - e para cristãos também - radicam não só no pretenso estatuto da cidade como capital do estado sionista de Israel ("Jerusalém completa e unificada é a capital de Israel" diz a lei do estado ocupante, ao arrepio de decisões das Nações Unidas) e na reivindicação palestiniana de que ela seja a capital do estado a que os palestinos têm direito, nem apenas na submersão do diálogo inter-religioso, nem na deterioração do convívio étnico. O caso tem raízes históricas, com pesadas responsabilidades de potências ocidentais, que não devem ser escamoteadas. Todos sabemos, por exemplo, que, para efeitos de enfraquecimento, pelo interior, do Império Otomano, seu inimigo na Primeira Guerra Mundial, o Império Britânico fomentou levantamentos de súbditos (judeus e árabes) daquele, prometendo-lhes estados independentes. Tal como, durante séculos, durante e depois dos tempos bíblicos, houve quezílias, destruições e exílios, mas também períodos de entendimento mútuo e partilha (mesmo sob domínio otomano), estes sempre que o poder hegemónico foi permitindo e fomentando o convívio e a paz entre etnias, confissões religiosas, fações políticas... O povo, os povos, afinal, talvez prefiram a harmonia possível ao afrontamento brutal. Também na música, o concerto é um despique que se resolve nas consonâncias procuradas, e na final que se conseguir alcançar. Não vou agora repetir relatos do que hoje se passa, nem narrativas do que se passou. Há livros de história e reportagens jornalísticas que contam coisas, talvez demasiadas coisas, pois cada qual procura puxar a brasa à sardinha, poucos quiçá fazendo apelo ao universalmente humano desejo de coexistência na tranquilidade. Pensossinto que, se não se manipulassem multidões, aspirações e opiniões, talvez, terra a terra, a cidade dos homens pudesse ser de todos, por tanto, tão pouco ou tão muito, sentida por cada um como sua. Que assim não seja, ou tão difícil pareça poder sê-lo, resulta sobretudo de não haver prioridade da consulta aberta dos povos, que são muitos e partes legitimamente interessadas, sem interferência de títeres, que são poucos e partes ilegitimamente interesseiras. Os nossos sistemas políticos - ditaduras, sublevações, terrorismos ou democracias - sofrem desse mal endémico que é pretender, pela força do poder instalado ou revolucionário, ou pela matreirice do "marketing" eleitoral, impor vontades e destinos alheios ao que as gentes do dia a dia, feito de trabalho, família e comunidade, desejam. Os anseios dos povos são assim dados lançados no tabuleiro dos jogos do poder. Num jogo que mal disfarça a ganância financeira de uns, a soberba pretensiosa e dominadora de outros, o egoísmo totalitário de todos eles... Serei muito estúpido, mas não acredito na distribuição da riqueza pela ditadura marxista, nem pelo funcionamento dos mercados. Talvez ela fosse possível pelo funcionamento organizado de um ou do outro sistema, desde que sempre inspirado pelo sentido da partilha comunitária... Mas todos já sabemos que, por muito que essa beleza se apregoe, nunca assim aconteceu, e até pode piorar pelos tempos que correm. E também nos parece que, apesar de necessário e indispensável, o princípio ético da solidariedade e da justiça, não funcionará ao deus dará... Há certamente uma reforma das mentalidades que deve ser feita. Mas será possível fazê-la sem o adequado enquadramento institucional? Esta questão é quase como aquela de quem surgiu primeiro, se o ovo, se a galinha. Ser eminentemente social, o homem não muda em abstrato, e as instituições são a incarnação comunitária de ideias. Assim, por exemplo, esse conceito que se vai desenvolvendo, a partir das propostas de Michael Porter e Mark Kramer do lucro como criação de valor participado (investimento em inovação e competitividade a longo prazo, avaliação do impacto social e ambiental que deverá beneficiar da riqueza criada) não passará de uma aspiração enquanto não se lhe encontrarem práticas consignadas na lei que tutela a atividade empresarial. Tal como nunca se conseguirá uma reforma dos mercados financeiros, sem a terminação institucional das transações bolsistas especulativas, que tanto têm viciado o valor das empresas e a correta e transparente apreciação dos investimentos a fazer. E quanto mais forem nominativas as subscrições (em vez da distribuição vagabunda que facilita todas as manobras e reforça a manipulação de valores pelos grandes acionistas que, ainda por cima, detêm o poder de eleger os órgãos sociais e, por aí, influenciarem decisões e relatórios) tanto mais social será a empresa e responsável a participação beneficiária dos respetivos lucros. A economia privada tem vantagens indiscutíveis, pela responsabilização adveniente da propriedade, pela inovação fomentada pela concorrência. Por isso mesmo essa propriedade deve ser transparente e partilhada pela valorização democrática do capital e do trabalho; e deve a concorrência seguir regras de jogo limpo. Será que a questão fulcral do nosso destino global tenha hoje a ver mais com o vermo-nos nos espelhos dos outros, com raivas de ressentimentos ou com aspirações de emulação? Não só no interior de cada uma das nossas comunidades divididas por desigualdades, como ainda - e cada vez mais, por força dos media que nos mostram um mundo comum em desequilíbrio de direitos e benesses - na ordem internacional? Meditemos sobre os índices de satisfação (ditos de felicidade) das nossas "sociedades de afluência" e na curiosa comparação que Niall Ferguson faz entre a colonização da América do Norte e a da que se situa a sul do Rio Grande norte-americano. Professora na Sorbonne, Claudia Senik publicou agora (Paris, Seuil, outubro de 2014) L´Économie du Bonheur, que introduz assim: A modernidade democrática fez da felicidade uma ideia nova, um princípio constitucional, quase um dever. Desde que o indivíduo é reconhecido como figura central da sociedade, a sua felicidade torna-se objetivo supremo. Mas se a felicidade é a medida de qualquer escolha, importa encontrar-lhe uma métrica, mesmo aproximativa... ...Trata-se do nível de felicidade subjetiva, declarado pelos indivíduos em resposta a inquéritos feitos à população...  ...O inquérito dos economistas concerne particularmente o papel da riqueza enquanto fundamento da felicidade. Dará o dinheiro a felicidade? O crescimento torna mesmo as pessoas mais felizes? Em caso contrário dever-se-á optar pelo decrescimento ou, pelo menos, medir o bem-estar para além do PIB? Poderiam então as políticas públicas utilizar a quantificação da felicidade como uma espécie de bússola? Este tipo de medida permite compreender porque é que os franceses sobrem de tanto "défice de felicidade", apesar de condições de vida objetivamente satisfatórias. Estamos aqui perante outro sinal dos tempos: em sociedades de abundância e consumo, onde o dinheiro parece ter-se tornado o único substituto dos valores que prezávamos - e medida de tudo, até mesmo do estatuto social e da consideração pessoal - eis que as pessoas se interrogam sobre o que é ser feliz... Bem sei que muitos se sentem infelizes por se pensarem discriminados relativamente aos que mais têm e usufruem, donde resulta ressentimento, inveja, sofrimento de injustiça. Ou, ainda, se sentem explorados, enganados e prejudicados por um sistema mercantil que os envolve de publicidade e promessas e os arrasta para o endividamento... Penso que uma das virtudes de maior justiça distributiva e frugalidade seria, precisamente, a de tornar uns menos soberbos, outros menos revoltados, e todos mais razoáveis e fraternos. Tal como Claudia Senik, gosto de recordar aquele discurso de Robert Kennedy, em 1968, quando era candidato às presidenciais norte-americanas e o mataram, como antes a seu irmão John: O PIB não reflete a saúde dos nossos filhos, a qualidade da sua educação, nem o prazer das suas brincadeiras. Não inclui a beleza da nossa poesia, a força dos nossos casamentos, a inteligência do debate público, a probidade dos nossos funcionários. Não mede a nossa coragem, nem a nossa sabedoria, nem a nossa devoção ao nosso país. De facto, mede tudo menos aquilo que faz com que valha a pena viver a vida, e diz-nos tudo sobre a América menos porque é que nos orgulhamos de ser americanos. A abrir o capítulo III do seu Civilisations, já nestas crónicas referido, o escocês Niall Ferguson, professor em Harvard e Oxford, interroga-se sobre as razões do maior êxito civilizacional da América colonizada pelos britânicos, em comparação com a América latina. Vou apenas traduzir aqui duas citações com que o autor sugere o seu pensamento. A primeira é de John Locke que, em 1669, na qualidade de secretário do conde de Shaftesbury, redigiu as Constituições fundamentais da Carolina (hoje dois estados dos EUA). Diz aquele filósofo: A liberdade define-se como a liberdade de cada um para regular e comandar a sua ideia, a sua pessoa, os seus atos, as suas posses, e tudo o que lhe pertence, no âmbito das leis a que está submetido; portanto, de não depender da vontade arbitrária de outrem...  ...O fim principal e capital, em vista do qual os homens se associam em repúblicas e se submetem a governos é, portanto, a preservação da sua propriedade. Claríssimo: nascemos livres, e os pactos sociais são expressão da nossa livre vontade, a propriedade privada sendo garante dela. Mas nem a liberdade individual, nem a propriedade privada são um privilégio de alguns, antes são um bem comum a todos e que todos devem comumente preservar. A outra citação é de Simon Bolivar, o "libertador" da América espanhola do sul, no séc. XIX: Somos os vis descendentes desses predadores espanhóis que desembarcaram na América para a sangrarem até ao fim e se reproduzirem com as suas vítimas. Mais tarde, os rebentos ilegítimos dessas uniões uniram-se com os dos escravos importados de África. Surtos de tal mestiçagem racial e dotados de moral tão exemplar, como poderíamos permitirmo-nos colocar as leis acima dos chefes e os princípios acima dos homens? Sabendo embora como a consciência da mestiçagem pode por vezes determinar ressentimento no mestiço, não posso nem quero atribuir-lhe qualquer culpa de desacatos ou injustiças. Mas guardo, de Bolivar, o reconhecimento, também, de que as leis e os princípios devem sempre colocar-se acima dos homens e dos seus chefes. Os princípios do humanismo: liberdade, igualdade (na dignidade), fraternidade que, no cristianismo, dão pelo nome genérico de valor divino do humano. As leis que os reconheçam e proclamem, e garantam o seu respeito e aplicação. Outro dia falaremos de diferendos e progresso do direito positivo internacional. Por agora, deixo outra pergunta: será possível que a ONU se imponha ao respeito e as suas decisões sejam exequíveis, enquanto a sua própria organização, como muitas das suas regras de funcionamento, não respeitarem os princípios universais acima enunciados? Enquanto teimar ser uma Animal Farm do George Orwell:  All animals are equal, but some animals are more equal than the others...?

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 26.12.2014 neste blogue.

CRONOLOGIA COM REPERCUSSÃO TEATRAL: SÁ DE MIRANDA EM ITÁLIA

 

A cronologia justifica esta análise da vida e obra de um grande escritor português que ainda hoje marca a criatividade literária: e isto, não obstante a escassez da criação/produção teatral respetiva. Referimos então aqui o teatro criado por Sá de Miranda (1481-1558) escasso na criação em si mesma considerada mas relevante e significativo na expressão inovadora, concretizada em apenas duas peças mas subjacente a toda a qualidade criacional literária deste escritor/doutrinador no âmbito da literatura portuguesa.


E será questionável essa pouca projeção da criação teatral vinda de um autor que teve ensejo de contactar os meios teatrais /culturais da época. Efetivamente, a dramaturgia criada será escassa: e podemos então imaginar o que seria se o autor mais se interessasse pelo teatro. Mas em qualquer caso merece destaque.


Importa então ter presente que Sá de Miranda, nascido como já referimos em 1481, portanto há exatos 540 anos, parte para Itália em 1521, portanto há exatos 5 séculos! Ali se integra no meio cultural dominante: mantém contactos com autores de relevo como Ariosto, Bembo, Sandalette ou Sannazano, nomes na época extremamente projetados, como aliás o primeiro ainda hoje o será...


Em Itália permanece até 1526. No regresso, em Madrid, convive com Lope de Vega.


Instala-se em Lisboa e faz representar duas peças, “Vilhalpandos” em 1528 e “Estrangeiros”, esta em 1538.


Obra pois breve e esparsa, mas hoje assinalável pela qualidade cénica e sobretudo literária. Podemos então imaginar a relevância que teria o teatro de Sá de Miranda, se efetivamente se tivesse dedicado à criação da arte do espetáculo!


Mas mesmo escasso, o seu teatro é relevante, sobretudo porque introduz aqui uma cultura europeia na época assinalável. E isso deve-se em grande parte a importância, na época e ainda hoje, dos contactos estabelecidos nessa longa estadia em meios culturais. José Oliveira Barata, na “História do Teatro Português” editada pela Universidade Aberta em 1991, cita designadamente Ariosto, Bembo, Sannazano, ou, na viagem de regresso, Graciliano de Ia Vega e Juan Boscan.


É então de assinalar a inovação técnica e literária desta obra dramática, escassa que seja e é. No entanto, essa escassez não se reflete no sentido cénico inerente.


Antes pelo contrário: tal como refere José Oliveira Barata na “História do Teatro Português”, “o pioneirismo que pode, em alguns casos, ensombrar a qualidade das duas comédias de Sá de Miranda não esconde porém a importância decisiva dessas comédias enquanto modelos práticos que abrem caminho as posteriores experiências de António Ferreira, Jorge Ferreira de Vasconcelos ou, inclusive, Camões”. Saliente-se aliás que estes autores, para Iá da projeção da obra de cada um deles no seu conjunto, oferecem uma indiscutível e permanente qualidade no que respeita a criação teatral...


E citamos então aqui a “Dedicatória Ao Infante Cardeal Dom Henrique” como tal transcrita por José Oliveira Barata na “História do Teatro Português” (ed. Universidade Aberta 1991):


“A comédia, qual é, tal é, aIde e mal ataviada. Esta so Iembranca fiz a partida, que se não desculpasse de querer as vezes arremedar Plauto e Terêncio, porque em outras partes Ihe fora grande louvor, e se as mais tambérn Ihe acoimassem a pessoa de urn Doutor, como tomada de Ludovico Ariosto que Ihes pusesse diante os três advogados de Terêncio, dos quais urn nega, outro afirma, o terceiro duvida, como inda cada dia assim que desde aquele tempo vem o furto (...) E quanto a comédia que de nele se ha de fazer parece-me bern que faca na claustra da portaria como me ele escreve”...


E finalmente, uma referência à internacionalização, hoje esquecida, de Sá de Miranda.


Pois Luciana Stegagno Picchio, comentadora italiana, precisamente escreveu na “História do Teatro Português”:


“Embora a ação de “Os Estrangeiros” decorresse em Palermo e as personagens ostentassem nomes de feição clássica (Amente, Devorante, Petronio, Cassiana), o todo exaltava ainda um saboroso perfume Ibérico, composto de grosseiros jogos de palavras, de piscar de olhos, de concessão a um público plebeu acostumado as chalaças vicentinas tão caseiras, tão pejadas de história local”...


Assim mesmo!

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

76. ESPIRITUALIZANDO E AMANDO AS COISAS 


Amamos qualquer coisa na medida em que ela parece ser nossa.


Há afeto à casa, terra e país onde nascemos, lugares de brincadeiras da nossa meninice, onde crescemos e vivemos, à escola onde aprendemos a ler, escrever e contar. 


Às árvores e flores que plantámos, aos livros que amamos, com amizade e valor estimativo proporcional à associação de ideias, imagens, memórias, recordações felizes e cruciais na nossa vida.  


Às vezes é no meio do silêncio e da solidão que o descobrimos. 


O impulso humano para a ação, carregada de adrenalina e emoção, são uma fuga para a nossa angústia, interrogação e certeza da nossa mortalidade, fazendo com que, tantas vezes, não haja tempo para espiritualizar e amar as coisas que nos rodeiam.


O amor e a amizade por elas, nasce de um contacto, mesmo que apenas imaterial e através da memória.  


Há em nós um animismo que nos leva a atribuir alma às coisas inanimadas. 


Mesmo aquele que não é afetuoso ou sensível cria, anima e espiritualiza amizade e amor às coisas que lhe são aprazíveis e úteis. 


Às vezes é na ausência das coisas que bem-queremos que sentimos a sua falta.


O imperativo da sobrevivência obriga-nos a correr para a agitação, a responsabilidade e stresse quotidiano, mas há que priorizar regras e outros interesses que nos ajudem a manter o sentido das proporções. 


Ao termos consciência da brevidade da vida humana, devemos consagrar amizade e amor ao que nos envolve e coabita connosco, compreendendo melhor tudo o que tem valor no universo que conhecemos, promovendo interesses subsidiários além daqueles que representam o centro nuclear da nossa mundividência. 


Incluindo espiritualizar e amar os objetos, como os livros, que não envelhecem, que são migratórios, fiéis, firmes e leais, em que o mesmo que dizem hoje, dirão amanhã ou daqui a anos.


Por vezes é no meio do silêncio e de um olhar, que ocorre em qualquer lugar.      

    

28.05.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

ESCRITA ALQUÍMICA, A TUA POESIA


António, António Gamoneda, querido e doce amigo,


Como pensas que me esqueci de te escrever? Regresso a casa, como tu, atravessando a vida, e há sempre aquela erva cuyo nombre no se sabe; asi há sido mi vida por estes tempos. E por assim o saberes, te rogo que não julgues nada do meu silêncio. Recordo bem quando me deste a tua mão para entrar na neve e tinhas tanta razão! ou não é que se atravessa o inverno até chegarmos aos ossos humanos?


Querido António que a tua poesia é uma paz en mis ojos mesmo quando escuto o descrever da morte. E tudo cessa y cae Dios, um dia, naquele em que nada é verdade.


Escrevo-te também hoje por ser sábado, o primeiro de 2018. E tanto me lembro quando te conheci. Era sábado e senti que has llegado al gran sábado de la vida y amei as desaparições, sem receios.


Tudo o que me ensinaste seria redutor se o dissesse, até a escuridão dos teus paralelismos com as paisagens, pinturas, palavras, músicas, cores, nunca elas seriam tão escuras se não nos esclarecessem tanto a todos.


A descoberta da vida também é dolorosa e exige a descrição da mentira com uma precisão rara, e para isso é precisa a escuridão.


E quantas vezes encostei o meu ouvido à tua poesia e por ela tu prision en la melancolía, pois tudo na vida, durante algum tempo, é, el alimento por la esperanza.E só!


António, deixa que te lembre que atravessando


los aniversarios, a veces viajan las palomas ebrias
soy la ciudad y el viento, ah y los jardines! Estuve a punto de llorar hasta tu trono.


Juntos estamos e estaremos numa escrita rodeada de frutos. Os nossos livros algumas sementes!


Teresa, Teresa Bracinha Vieira


P.S. Não tenhas medo que eu também já sei que o amanhecer quando chega vem em pastilhas pardas. Peço-te: mira mis ojos en el instante de la nieve. Luego.


E recordo por entre as páginas que escrevemos:


(…) a inflexibilidade do destino grego, impede, por uma migalha, que os humanos sintam o mesmo, à mesma hora e pela mesma razão.

             Miro a mi amor, Luni.

Sim,

Es bueno ir por las calles y escutar tus passos

e ainda assim é bom de quando em vez pensar que quiero morrir en libertad como um caso de luz incorporada

o centro da luz que escuta o quanto não tens piedade do estrangeiro,

Ah António o universo e a criatura. Nada mais peças ou não tivesses sido um imenso ouvido

Es bueno ir por las calles y escutar tus passos

Luni, ah a pureza das facas abandonadas.

Sim, o zero e a completude são de uma claridade sem descanso.

Así las cosas.

Teresa Bracinha Vieira

 Obs: Solicitada a presente reposição.

 

TUDO E TODOS INTERLIGADOS. 1


Se algo se nos impôs de modo claro, com esta terrível pandemia, é que tudo e todos estamos interligados.


1. Constatámos que nos contagiamos uns aos outros, de tal modo que até foi e, por vezes, ainda é (por quanto tempo?), necessário desviarmo-nos uns dos outros, usar máscara, ficar confinados. Percebemos que precisamos de nos proteger uns aos outros: ou nos salvamos juntos ou podemos perder-nos todos. Aí está o exemplo das vacinas: basta um pouco de egoísmo esclarecido, para se perceber que elas têm de ser distribuídas por todos, pois enquanto houver alguém não vacinado no mundo a ameaça continua e tanto mais grave quanto irão surgindo variantes do vírus…


2. Cada uma de nós, cada um de nós é ela, é ele, único, única (cada uma, cada um diz “eu” como mais ninguém pode ou pôde alguma vez dizer). O enigma, o milagre espantoso do eu, ser autoconciente, consciente de si, alguém como nunca houve outro ou outra!


Será que deste modo se está a afirmar o individualismo? De modo nenhum. Porque cada um de nós é um eu único, mas sempre na relação constituinte. Uma das características essenciais que nos distinguem dos outros animais é a neotenia (nascemos prematuros), que faz com que, vindos ao mundo por fazer, tenhamos de fazer-nos. O que andamos a fazer na vida? A fazer-nos, a partir de outros e uns com os outros. Quando olhamos para a neotenia, temos de concluir: ou a natureza foi madrasta para nós e não nos deu o que devia dar, como fez com os outros animais, ou esta é a condição de possibilidade de sermos o que somos: humanos, tendo de receber por cultura e produzindo cultura o que a natura nos não deu, sendo inventivos, criando o novo. Esta é, por um lado, a experiência da liberdade — somos dados a nós mesmos, com a responsabilidade de nos fazermos — e , por outro, a experiência radical da alteridade: sou eu com o outro, que também é um eu, mas um eu que não sou eu, um eu outro. E fazemo-nos uns aos outros e sempre com outros. Aliás, com esta pergunta tremenda: se eu tivesse encontrado na vida outras pessoas, se tivesse frequentado outras escolas, lido outros livros, feito outras viagens…, seria eu? Sim, seria eu mas de outro modo (idem sed aliter).


Temos uma herança genética (aquele óvulo que foi fecundado por aquele espermatozóide) e uma herança cultural. E, viajando para trás na história tanto genética como cultural, as relações são in-findas. Encontramos os pais, os avós, os bisavós, os trisavós, os tetraavós…, por sua vez com relações e vínculos infindáveis…, e não é difícil concluir que poderíamos pura e simplesemnte não existir. É um milagre existir precisamente “eu”. Do ponto de vista cultural: estou a escrever e, se reflectir, constato que isso é possível porque há os que me ensinaram as primeiras letras, e a juntá-las, e a ler, e a lingua portuguesa (que eu não inventei…), em relação e contacto com outras línguas (o que seria a língua portuguesa sem o latim?), encontro professores e mestres, que connheci, mas também os que não conhecei, mas foram eles que ensinaram estes meus mestres, e os que escreveram livros que eu li, que, por sua vez, não existiriam, se o seus autores não tivessem tido  contacto com outros autores e outros livros… idefinidamente… O que seria eu, quem seria eu sem todos aqueles e aquelas que entraram na minha vida sem eles saberem nem mesmo eu… Ah, e eu não sei fazer automóveis nem computadores, nem telefones, nem cultivo nada do que me alimenta, que vem de tantas partes do mundo e resulta do trabalho concertado de tantos e de tantas por esse mundo além!…


Afinal, o que somos uns sem os outros, os conhecidos e aqueles e aquelas — constituem incomensuralvelemnte a maior parte, a quase totalidade — que não conhecemos? Somos e estamos interligaods por vínculos indesmentíveis, sem os quais não seríamos, precisando de tirar dessa constatação as devidas consequências… Temos uma dívida universal…


3. E somos, vindos de uma história gigantesca: a evolução, desde o Big Bang, há 3.700 milhões de anos. E deu-se a expansão do Universo. E a Terra terá uns 5.000 milhões de anos. E não havia vida e apareceu a vida há uns 4.000 milhões de anos, e a vida foi-se expandindo e complexificando… Muito lentamente foram surgindo os hominídeos, veio o sapiens e depois, há uns 200-150 mil anos, o sapiens sapiens…, sendo necessário acrescentar: sapiens sapiens (sapiente sapiente) e ao mesmo tempo demens demens (demente demente)…


Aparecemos inseridos neste processo gigantesco, fazemos parte da Terra, a nossa casa comum, num vínculo indestrutível. Ela está ferida e grita. Como vamos tratá-la? É a casa de nós todos, da Humanidade inteira e ou cuidamos dela todos ou não há futuro…


Mas olhemos para a História propriamente dita da Humanidade, a que se inaugura com o sapiens sapiens. Que encontramos? O melhor e o pior, a mais heróica grandeza e a mais vil baixeza, santos e pecadores, progressos e regressões, heróis e cobardes, inventores e traidores, impérios contra impérios e rios de sangue…, migrações e encontros e desencontros entre povos, culturas e civilizações… E cada povo precisa de assumir a sua história, sem negá-la, porque a memória faz parte da identidade, e os erros não se resolvem derrubando estátuas nem autoflagelando-se, mas recolhendo os melhores ensinamentos…, para evitar mais erros


4. Aqui chegados, também perguntamos: Porque houve o Big Bang e não nada? E: Que futuro? Para onde queremos ir? Há um Sentido último? (Continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 MAIO 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR


A farsa e a arte da nova vanguarda.


«Art today has reached a new extreme of decadence, in which it dialectically incorporates all the past signs of artistic rejuvenation – the dregs of old and already won struggles for reintegration, reinvigoration – while denying their contemporary possibility» (Kuspit 1993, 13)


A partir do final dos anos sessenta do século XX, declara-se que em cada indivíduo existe um caráter único e uma personalidade exclusiva, mas o eu (simultaneamente verdadeiro e falso) está sempre a progredir e deve ser cultivado.


 O advento da nova vanguarda assinala que, entre outras coisas, a arte perdeu o seu propósito terapêutico, a sua capacidade de curar e de salvar. A arte da nova vanguarda não tenta transformar os valores do seu público, nem realçar os seus pontos fortes ou eliminar fraquezas, nem faz rejuvenescer e simplesmente não restaura vontade de viver. Explora sim a suscetibilidade do seu público em relação à arte e a sua esperança inconsciente de transfiguração, mas oferece pouco em troca. Certamente não aborda a condição do público, pois o pós-modernismo sinaliza que a arte perdeu a sua vontade de poder. Não é mais uma afirmação abençoada, não tem uma existência divina e não é produzida em plenitude e em perfeição.


A arte da nova vanguarda não cura, nem redime. Evita a espontaneidade e nega a primordialidade, apresentando ao falso eu complacente, qualquer ironia, e não é claro que pretenda triunfar sobre o verdadeiro eu. Padroniza o verdadeiro eu num estereótipo, num ready-made, numa falsa identidade. O pós-modernismo afirma a decandência do déjà-vu e oferece uma espécie de conformidade com o contexto e com o histórico. Prefere o secundário ao primário, o recuo ao avanço, o disfarce à transfiguração. (Kuspit 1993, 12-13)


A ideia de farsa está relacionada com a suposição de que é mais fácil falar acerca de si próprio através de algo ou de alguém.


«Eu só me preocupo comigo, o resto é uma paisagem humana. Posso dizer pela experiência que tenho tido, que viver assim debruçado cá para dentro é apaixonante.». Ruben A. In O Mundo à Minha Procura, p.12-13.


O encontro consigo mesmo vem por meio de coisas que existem por causa de uma combinação única de memórias reunidas. A soma de cada experiência interna e externa constrói uma identidade subjetiva. O pós-modernismo não incorpora, nem sintetiza a experiência do objeto a favor do sujeito. Objetifica sim em demasiado a arte. Materializa de modo que as suas implicações subjetivas pareçam o seu ponto mais visível e a sua aparência mais espetacular. (Kuspit 1993, 13)


O pós-modernismo aceita uma multiplicidade de linguagens, de estilos, de expressões e de autores: o artista pode produzir objetos que coincidam totalmente consigo mesmo - expondo experiências de vida e objetos individuais com significado pessoal - ou produzindo-os fingindo ser outra pessoa. O artista pós-modernista não apresenta necessariamente uma vontade criativa – nem uma vontade de poder e de verdade, nem uma vontade em transformar ou transfigurar. A ideia do artista como alguém superior e raramente dotado pela livre auto-consagração, torna-se uma farsa.


No final dos anos 60, autores como John Cage, Susan Sontag, Robert Venturi começaram a desenvolver uma visão baseada na ideia de que «a verdadeira vida é a vida que vivemos». Isso significava apagar as fronteiras entre a arte e as demais atividades humanas - indústria, comércio, moda, design e política. A sua filosofia consistia no pressuposto de que todos poderiam estar abertos a toda e qualquer variedade e riqueza de coisas, materiais e ideais. (Berman, 1989)


Por isso a farsa aceita a complexidade, a diferença e a incerteza. Ao quebrar dogmas e modelos racionais absolutos, a arte pós-modernista substitui estes modelos por incoerência e ambiguidade, que agora aparecem como virtudes. E usa o humor e o absurdo como meio de expressão, como uma forma alternativa de escapar, de descontextualizar, de mudar o sentido, de estabelecer a liberdade, o instinto, a distorção e o paradoxo. (Calinescu, 2003)


A expressão pós-modernista adota conceitos de ligação ao lugar, ao momento e ao contexto. Aceita a apropriação de linguagens mesmo que pertençam ao passado - porque podem ser manipuladas de acordo com objetivos pessoais, analogias urbanas, dimensão pública e até mesmo monumental (Calinescu, 2003).


A memória é assim um legado importante. O artista pós-moderno é um colecionador de memórias que nunca trabalha do zero, porque a história pode ser constantemente reutilizada. Cada artista pode aplicar diferentes interpretações da história - é consequentemente aberta a multiplicidade de caminhos, pontos de vista e um imenso legado. O uso da memória renova o interesse pela tradição – que é usada no sentido de representar formas atemporais; o conhecimento ancestral e o arquétipo.


O artista pós-modernista considera sempre o contexto concreto e essa presença do contexto é a chave para o entendimento e para o desenvolvimento do seu processo. É nessa interpretação do contexto - como fator de imprecisão - que se podem incluir valores como a poética (que o artista subjetivamente fixa e insiste). E é nesse sentido que cada objeto é único - por pertencer a um determinado contexto, a um preciso momento e a um lugar concreto – e por isso se amplia e subverte assim a tendência racional do modernismo ao exacerbar a expressão do edifico e do autor (sempre em busca de uma metodologia precisa, de uma síntese da forma e da clareza de um conceito que fazia justificar uma certa austeridade formal).

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

22044523_AYkGP.jpeg
  De 24 a 30 de maio de 2021

 

A “Conferência Europeia das Humanidades 2021” constituiu oportunidade para debater a necessidade de dar ao conhecimento lugar central na sociedade contemporânea.

 

european humanities conference.jpg

 

COMPREENDER O FUTURO

A realização, na Fundação Gulbenkian, da Conferência Europeia das Humanidades, organizada pela UNESCO, FCT e Conselho Internacional para a Filosofia e as Ciências Humanas (CIPSH), no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da UE, permitiu um debate aprofundado sobre um tema complexo que não pode ser abordado de forma simplificada, como se tratasse de um mero dilema entre duas culturas – literária e científica. A verdade é que, como salientou durante os trabalhos António Damásio, a compreensão da complexidade obriga-nos a não cair no velho erro de Descartes e a garantir a complementaridade efetiva entre razão e sentimento. O programa, ao propor como tema geral “Humanidades Europeias e Além”, deu especial ênfase à ligação entre reflexão e espírito científico, já que, como o Presidente da República notou, na abertura da Conferência “nenhuma sociedade tem futuro sem conhecimento e sem colocar esse conhecimento como fundamento das suas decisões sociais e económicas”, sobretudo quando nos encontramos numa circunstância de tempos críticos muito desafiantes, já que os dilemas que se nos têm colocado, designadamente com a pandemia, têm obrigado a uma articulação efetiva entre pensamento e ação, coesão social e estratégias científicas. Com efeito, os problemas complexos e multidisciplinares em causa exigem abordagens que devem combinar várias perspetivas e disciplinas, de modo a compreendermos que a medicina e a ciência política, a saúde pública e a economia têm de andar permanentemente a par, de modo que a evolução da sociedade se faça num equilíbrio permanente entre as diferentes áreas de Investigação e Desenvolvimento. Nesse sentido, a diretora-geral adjunta da UNESCO, Gabriela Ramos recordou o livro de 1722, "Diário do Ano da Peste", de Daniel Deföe, onde se retrata a sociedade de Londres durante a Grande Peste de 1665 e mostra como os fenómenos são cíclicos e as atitudes se repetem: "Para entender uma pandemia temos de compreender as relações entre diferentes realidades, desde o clima, à geografia e à história. Temos de aprender com o passado para preparar o futuro e as humanidades são os guardiães desse conhecimento". De facto, como salientou ainda, “não vale a pena ter avanços e soluções científicas se a sociedade os não compreende”. As pessoas aceitam as decisões desde que tomadas por autoridades em quem confiem e desde que disponham de informação fiável, designadamente no domínio digital. Contudo, essa relação de confiança só é possível estabelecer se houver uma presença segura das Humanidades, como fatores de diálogo e de qualidade.

 

FONTE DE CRIATIVIDADE E DE INOVAÇÃO

De facto, as Humanidades são uma fonte de criatividade e inovação. E, como afirmou o crítico de arte e escritor inglês, John Ruskin (1819-1900): "As grandes nações escrevem a sua autobiografia em três manuscritos: o livro dos seus feitos e acontecimentos, o livro das palavras e o livro das artes". Contudo, "nenhum destes livros pode ser entendido se não tivermos em consideração os outros dois". Factos, palavras e artes constituem a base estrutural para entendermos a evolução histórica – daí que a pedagogia e a escola tenham de assentar a aprendizagem na permanente ligação entre os diferentes domínios do pensamento. Assim, falar de Humanidades não pode reduzir-se à literatura ou à reflexão, como realidades separadas, devendo, sim, participar como estímulo permanente à Ciência como Cultura. Daí a necessidade de não subalternizar a Filosofia. Não é demais lembrar que as sete Artes Liberais, o trivium (lógica, gramática e retórica) e o quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), associavam naturalmente as Humanidades aos diversos ramos do saber. Lembremo-nos dos exemplos de Leonardo da Vinci e de Leibniz, ou de portugueses como Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de Castro. Fácil é de notar como, para eles, as Humanidades ligavam todas as áreas do conhecimento, não de modo autossuficiente, mas como fatores de coordenação e exigência. A crise financeira de 2008 ou a crise pandémica de 2020-21 demonstraram como a lógica positivista da cultura científica falhou rotundamente, incapaz de distinguir realidade e ilusão, verdade e aparência. O racional e o razoável têm de se articular. E hoje a questão das alterações climáticas e o estado de emergência em que nos encontramos no domínio ambiental – deixaram de ser (com a pandemia) temas longínquos, já que as questões de sobrevivência da humanidade passaram a ser bem atuais e próximas de nós. Não há desenvolvimento sem aprendizagem de qualidade e sem a prioridade dada à educação, à ciência e à cultura. Por isso, o património cultural é cada vez mais fonte de criatividade e inovação, uma vez que nos permite entender o tempo nas sua diferentes dimensões, já que o passado projeta o futuro e as raízes são chaves para a compreensão sobre de onde vimos, quem somos e o que nos distingue dos outros… Numa sociedade de informação, devemos estar aptos a transformar informação em conhecimento e o conhecimento em sabedoria. T. S. Eliot disse “Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?” – Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”.

 

A IMPORTÂNCIA DA COMPLEXIDADE

A reflexão sobre a complexidade de Edgar Morin (que se aproxima de completar cem anos) leva-nos a entender a célebre afirmação de Pascal: «considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, mas tenho por não menos impossível a possibilidade de conhecer o todo sem conhecer singularmente as partes». Há, assim, um vai-e-vem em que se funda a diligência de conhecer. E é esta preocupação que nos permite articular o uno e o múltiplo, o próximo e o distante, a teoria e a experiência… De facto, a complexidade está no coração da relação entre o simples e o complexo porque uma tal relação é a um tempo antagónico e complementar. A ciência funda-se não só no consenso como no conflito. Ao mesmo tempo, evolui a partir de quatro colunas fundamentais: a racionalidade, o empirismo, a imaginação e a verificação. Sabemos que há um diferendo permanente entre o racionalismo e o empirismo. As novas descobertas empíricas e o experimentalismo foram pondo em causa, de diversas maneiras, as construções racionais – que permanentemente se reconstituem e reconstroem constantemente a partir de novos elementos e fatores. Ao salientarmos a importância das Humanidades, entendemos que a complexidade não é uma receita, mas um apelo à civilização das ideias. De facto, «a gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue aceder à humanidade». Duas barbáries coexistem e agem sem contemplações: a que vem da noite dos tempos e usa a violência; e a barbárie moderna e fria da hegemonia do quantitativo, da técnica e do lucro. E ambas levam-nos ao abismo. Importa, pois, entender o que Hölderlin nos ensinou: «onde cresce o perigo, cresce também o que salva».

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:


      A nação judia, livre e independente, dispõe-se a colaborar com os seus vizinhos árabes livres, para promover a verdadeira independência de todos os países semitas do Médio Oriente... -  afirmava Ben Gurion um dos pais e primeiros governantes do atual estado de Israel. Aliás, foi ele quem pronunciou a declaração de constituição e independência do estado de Israel, em 14 de maio de 1948.


   Já no século I da nossa era, Flávio José, judeu, cidadão romano, cronista ou historiador de seu ofício, propunha, na sua obra Antiguidades Judaicas (I, 180; VII, 67), a seguinte etimologia para o topónimo Jerusalém: Visão da Paz. O topónimo terá raiz muito antiga, surge no século XIX antes de Cristo gravado num figurino egípcio: Rushalimin. 


   Em Lettrines, março de 1967, Julien Gracq escrevia: Jerusalém, cometa histórico cuja história quase se reduz a um longo rasto inflamado, pousada na sua colina como foguetão em rampa de lançamento - tanta fúria de eternidade em tão pequeno corpo - cidade Pítia, cidade epiléptica, soluçando sem tréguas do transe do porvir...


   No seu Éthique de la Considération, a professora de filosofia na Universidade de Paris-Est-Marne-la-Vallée, Corine Pelluchon, que tem a idade da minha filha Teresa, cita São Bernardo de Claraval, pai da reforma beneditina de Cister e pregador de Cruzada - sim, esse mesmo, o tal que é evocado, em azulejos do nosso mosteiro de Alcobaça, pelos seus monges e conversos, obreiros da colonização agrícola de grande parte de Portugal, nos tempos d´El Rei Dom Afonso Henriques, o Fundador:


   Bernard de Clairvaux écrit au pape Eugene III en exil: «Lembra-te de que nasceste de uma mulher!» É impossível governarmos sem nos lembrarmos, nós mesmos, de que saímos nus do ventre de uma mulher, de que somos um ser engendrado. Para mim, todavia, a humildade, mais do que uma virtude, é antes do mais um método. Porque nos permite purificar o olhar, e deixarmos de estar em pleno poder e domínio, que são as tentações constantes do humano. A humildade é uma experiência que despoja o indivíduo dos seus atributos sociais, permitindo-lhe agarrar a sua nua humanidade, e ter compaixão para com outro, e então compreender o seu próprio lugar no mundo, sem perder o sentido da justa medida. Isso que hoje falta a tanta gente brilhante...


   Lembrei-me destes passos e trechos - ouvidos ou lidos há mais ou menos tempo, sem precisão de datas ou ocasiões, pois que cada vez mais indiferentes se me tornam as horas e distâncias - ao refletir hoje, dia 27 de janeiro de 2018, na memória do Holocausto. Que a lembrança da barbárie nazi e de tantas outras perseguições e injustiças de que judeus foram vítimas possa levar hoje Israel a pensarsentir, não ressentimento ou vingança, nem sequer desforra - muito menos a custas de populações de cristãos e muçulmanos palestinos, inocentes de genocídios e, na sua esmagadora maioria, povos há mais tempo radicados na Palestina do que os judeus de origem caucasiana e descendentes de outros convertidos, que o movimento sionista veio trazendo para aquelas paragens, ali adquirindo e, depois, expropriando terras, nem sempre de forma condizente com as leis e usos locais, menos ainda com o respeito devido a paisanos sujeitos, primeiro, ao domínio otomano (até 1917) e, a seguir, ao do mandato britânico (de 1917 a 1945).


   Recordo, comovido, um trecho de Pour l´Amour de Bethléem, ma Ville Emmurée, de Vera Baboun, eleita, em 2012, presidente da Câmara Municipal de Belém, professora universitária, católica palestina, de origem árabe e arménia, mãe de cinco filhos, viúva de um palestino morto por forças israelitas de ocupação: Acontecia-me ir diretamente, à saída da escola São José, assistir à missa das 17horas na igreja de Santa Catarina. Lembro-me especialmente desse dia de maio, mês da Virgem Maria. Tinha 16 anos. Estava sentada na nave, com a farda da escola, e a pasta ao lado. Escutava a homilia. Foi então que o padre pronunciou esta frase: «As bênçãos e as graças escondem-se no coração dos sofrimentos. Aprendei a fazê-las nascer!» Falava em árabe, e fascinava-me o ritmo, mesmo se ainda não lhe percebia o sentido. De regresso a casa, apressei-me a apontá-la num canto do diário íntimo que então escrevia. Tal como a ouvira. «As bênçãos e as graças escondem-se no coração dos sofrimentos. Aprendei a fazê-las nascer!» Quem era eu então? Uma filha de boa família, que se ia casar, tão jovem ainda, com um rapaz vindo também de um meio considerado bem. Tinha pais amorosos. A vida era bela! Não conhecia o sentido da palavra «sofrimento». E todavia aquela frase ia mudar a minha vida.  


   Acrescento, Princesa de mim, mais duas breves citações do livro de Vera Baboun, porque também nos fazem refletir:


   Trinta e sete anos depois, Belém está muito mudada. Do lado de Jerusalém, um muro com oito metros de altura encerra-nos cada vez mais hermeticamente...  ...Doravante, a avenida de Hebron, a artéria principal, dantes com tanta vida, que levava a Jerusalém, é um beco sem saída...  ...O muro impõe-se à nossa vida quotidiana, pesando sobre cada um dos nossos movimentos, penetrando insidiosamente nos nossos espíritos...


   Geralmente, a primeira pergunta que os visitantes fazem ao presidente da Câmara de Belém é «Fale-nos das relações entre cristãos e muçulmanos!», como se estas devessem ser necessariamente más. Mas não é assim. Cristãos ou muçulmanos, em Belém vivemos sempre juntos. Quando era nova, todos os nossos vizinhos eram muçulmanos e mantínhamos as melhores relações do mundo. Vinham a nossa casa, íamos a casa deles. Partilhávamos almoço ou jantar. Jogávamos futebol na rua, rapazes e raparigas, muçulmanos e cristãos. Hoje, face ao muro, seja qual for a nossa religião, nós, Palestinos, somos todos arrumados pelo mesmo labéu.


  
O detestável surto de terrorismo cego que se reclama de inspiração islâmica (imagina, Princesa, outro qualquer movimento de violência "evangélica" que se pretendesse sequaz da expulsão dos vendilhões do Templo) tem gerado reações que, cada vez mais, tendem a apontar motivações religiosas ao espírito bélico e suas inerentes sevícias e injustiças gritantes. Juízo que, apesar de substanciado por atos e factos indesmentíveis, não deixa, finalmente, de ser temerário pela extensão generalizadora e discriminatória que fomenta, e pouco lúcido pela estreiteza da compreensão da própria natureza humana. Não chegarei ao exagero de afirmar que em cada um de nós habita um médico e o seu monstro, mas sei que todos sofremos a tentação de impulsos para o bem e para o mal. Muitos textos religiosos, da Bíblia ao Corão, e outros ainda, conservam palavras de ordem, pretensamente reveladas ou ditadas por divina voz, incitando a uma qualquer guerra santa, que todavia podem ser interpretadas pela perspetiva do bem, sobretudo para quem crê que se Deus fala o fará por bem. Claro que há nisto muito de subjetivo ou, se preferires, de cultural. Mas também é verdade que, em todas as religiões, incluindo as monoteístas, desde sempre despertaram movimentos de universalização da igual dignidade humana e de paz.


   A vida religiosa ou qualquer vida conscientemente espiritual, é sempre uma relação e, como tal, necessariamente subjetiva ou, melhor, intersubjetiva. Se esta aparente banalidade que acabo de te escrever pode ser facilmente captável por pessoas praticantes de diferentes formas de religião - no sentido de tentativa de comunicação com o transcendente, o invisível, ou o poder ignoto -,  já a sua instituição social - no sentido cripto-jurídico de ideia que se corporiza em organizações providas de funções normalizadas e hierarquias gestoras - poderá torna-la em propriedade mobilizadora de um poder político, de vocação totalitária ou discriminatória, de que temos tantos infelizes exemplos históricos (e os judeus basto sofreram de perseguições). A Igreja Católica ainda hoje carrega o peso institucional que lhe foi moldado, no século IV, pela sua "constantinização", isto é, pela assimilação de conceitos e relações, regras e práticas, jurídicas e rituais, próprias do Império Romano e seu aparelho de Estado. Quem se dedicar um pouco - ou talvez mesmo muito - à leitura de textos coevos perceberá melhor o balanço de deve-e-haver dessa transformação das comunidades cristãs primitivas (as dos séculos I, II e III) na cristandade romana bizantina e latina do século IV. No judaísmo, quiçá por nunca ter convertido o poder imperial, a tradição religiosa (melhor diria: as tradições) foi-se transmitindo descentralizadamente pelas sinagogas da diáspora, em que, além da Torah, Jerusalém era um ponto de reencontro e união espiritual em redor da Promessa. Nesse sentido, o mito da Cidade do Templo, de David e Salomão, com mais ou menos veracidade histórica ou evidência arqueológica, é certamente respeitável e, pelo seu símbolo teológico da prometida Cidade de Deus, admirável.


   Mas isso não faz dela a capital política do recente estado de Israel, não só por razões abundantes de ordem histórica, política e jurídica, como ainda pelo facto de 55% dos atuais cidadãos israelitas se declararem não religiosos. E muitos israelitas judeus contestam a fundamentação religiosa exclusiva de Jerusalém-capital e defendem os direitos dos palestinos. Aliás, Israel é o segundo estado judaico do mundo (com 5 milhões de habitantes), sendo os EUA o primeiro (com 6 milhões e meio). Nessa América, onde constituem + ou - 2% da população têm uma representação de 33% do Congresso. O que ninguém contestará: na verdade, estão lá por mérito próprio, não por serem judeus ou como tal considerados. São representantes do povo americano, a que pertencem. E assumindo várias nacionalidades e culturas, vivendo entre as gentes, praticando a sua religião, outra, ou até nenhuma, as comunidades judias são testemunhas de um princípio fundador da nossa civilização: Deus, o Ser, o Nome, a Palavra, escolheu o ser humano para, no tempo histórico, ir fazendo do universo a Jerusalém Celeste.


   Aquilo a que hoje se chama «a Política» nada deve considerar nem resolver sem olhar para as pessoas, as populações, os povos, com suas vidas. Sem excluir ninguém, antes procurando sempre acolher os mais abandonados. Por isso, Princesa de mim, te deixo com mais uma citação de Vera Baboun, que talvez nos ajude a meditar (traduzo-te o epílogo de Pour l´Amour de Bethléem):


   Belém é o paraíso dos indesejados. Abrigamos o «Presépio», um lar que acolhe as crianças nascidas fora do casamento; e ainda outro abrigo, animado por freiras, que recebe mulheres espancadas ou violadas, vindas de toda a Palestina: um excelente hospital para crianças atrasadas mentais; outro, novo, para tratar dependências da droga... Porquê? Porque a piedade, a paz, o amor são o credo da Natividade. Foi sobre isto que nos construímos. Aqui estamos, cristãos de Belém, para lembrar ao resto do mundo o que aqui se passou. Belém não é apenas uma cidade, é um modo de ser, uma unção de paz que apenas pede para se espalhar pelo planeta. Mas, ai de nós, enquanto a nossa cidade, que foi o berço do Príncipe da Paz, estiver emuralhada, não reinará a paz. Nós somos o estandarte da paz, os seus guardiães e defensores. Não merecemos esta desgraça. Em Belém se encontra a gruta onde Nosso Senhor, pelo seu nascimento, mudou o calendário do mundo! A humanidade poderia dar-lhe bom ou mau uso, mas foi sinal de uma civilização nova, de uma nova leitura do nosso destino. Possa o mundo aperceber-se disso, antes de que seja tarde demais!


   Ninguém pode hoje provar e demonstrar que Jesus Cristo nasceu mesmo numa gruta ou em Belém. Mas tal não tira qualquer força à mensagem emitida, à vocação da paz. Tampouco sabemos tudo, ou nem sequer muito, da história de Jerusalém, que conheceu muitos e desvairados conquistadores e reinantes, vindos de perto e de longe, confessando fés diferentes (até as cruzadas lá impuseram um reino cristão). Mas, para além do conhecimento histórico, e ainda aquém de definitivas decisões políticas, pensemos em Rushalimin - Jerusalém, e desejemos, com a força das varas todas do nosso coração A Visão da Paz.


Camilo Maria    

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Solicitou-se a reposição deste texto publicado em 2018 neste blogue.

AINDA O TEATRO DE ALFREDO CORTEZ

 

Na semana passada fizemos uma evocação do centenário da “Zilda”, primeira peça de Alfredo Cortez. E aí se referiu com destaque a heterogeneidade da vasta obra deste dramaturgo que de certo modo marca, inclusive por essa mesma heterogeneidade, a caracterização do teatro português ao longo do século, desde a “Zilda”, datada exatamente de 1920, até à “Moema”, escrita cerca de 20 anos depois: e isto, sem desenvolver referências a mais peças e a mais intervenções cénico-literárias deste autor, insista-se, referencial da modernização heterogénea do teatro  da época.


Recorde-se aliás que a “Zilda” data exatamente de 1921. E a partir dessa excelente peça, prossegue toda uma dramaturgia que, como já vimos, cobre a vasta variedade estilística que marca o teatro contemporâneo de qualidade…


Ora será então oportuno evocar a análise que lhe dedica Luiz Francisco Rebello na “História do Teatro Português” ou no estudo intitulado “100 Anos de Teatro Português”, pois trata-se de obras referenciais, não obstante a expressão sintética do estudo em si mesmo.


Mas nada disso obsta a uma interessante visão do teatro de Cortez, devidamente enquadrado na vastidão e heterogeneidade da sua obra, que aqui já temos aliás referido.


E no que me diz respeito, tenho, da mesma forma, dedicado à obra de Alfredo Cortez numerosos e vastos estudos, aqui também frequentemente referidos.


Mas cito então agora, designadamente Rebello, que nos “100 Anos de Teatro Português” escreve:


“Figura cimeira da dramaturgia portuguesa no período balizado pelas guerras de 14-18 e 39-45, a sua obra, de expressão rigorosa e linear, quase ascética, acusa um perfeito domínio da técnica teatral, uma análise impiedosa dos costumes da sociedade sua contemporânea e uma profunda compreensão anímica do povo português”.


E, da mesma forma, fazemos agora uma vasta transcrição do livro intitulado “O Teatro e a sua História” da autoria de Tomaz Ribas: e tenha-se então presente que Ribas comporta um memorial de intervenções diretas nas artes do espetáculo. Essa circunstância não é despicienda: pois está-se perante um crítico que na sua atividade profissional atuou diretamente e durante anos nas artes do espetáculo…


Pois acerca de Alfredo Cortez, escreve então Ribas em “O Teatro e a sua História”, livro evocativo do centenário do autor:


“Alfredo Cortez (1880-1946), com as suas nítidas influências ibsenianas e perandellianas, o seu pendor crítico e um não dissimulado gosto por temas de inspiração folclórica, é um excelente dramaturgo, sem dúvida um dos nossos maiores dramaturgos de todos os tempos e até, entre nós, um autor muito original e inovador; por outro lado, é um dramaturgo que ao longo das suas doze peças, saltita e percorre vários géneros: o drama psicológico, o teatro apologético, o teatro histórico, a comédia e o drama de crítica social e o teatro de inspiração folclórica. A sua obra geral apresenta-se numa equilibrada sequência cronológica de temas… de temas correspondentes às suas várias experiências ideológicas”.


Cita as peças. E acrescenta:


“Muito curioso e valioso é o domínio que Alfredo Cortez tem do linguajar popular” referindo muito concretamente “Saias” e “Tá-Mar”.


Em suma:


O teatro de Alfredo Cortez merece ser revisitado: o que, tendo em vista a natureza específica da obra teatral,  a expressão correta será outra: o teatro de Alfredo Cortez merece ser reencenado!...

 

DUARTE IVO CRUZ

Pág. 1/4