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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

 

74. UMA IDEIA DE EUROPA E DE CIVILIZAÇÃO EUROPEIA


Civilização define-se por oposição à barbárie. 

Traz em si um juízo de valor.   

Um conjunto de caraterísticas espirituais e materiais. 

Começa por significar um elevado nível de desenvolvimento espiritual e social.  

São tidos por civilizados os indivíduos polidos e bem-educados. São povos e culturas que usufruem de privilégios de um nível elevado e superior de desenvolvimento científico e tecnológico, cultural, espiritual, político e social.  

Uma civilização pode reunir várias culturas, sendo interdependentes reciprocamente em termos de um mínimo de denominador comum.  

A civilização é tida como o nível mais abrangente de identidade cultural.

Enquanto a cultura agarra mais de perto os valores próprios dos grupos que lhe são mais próximos (o biológico, a família, a tribo, a terra, a pátria, o país, a língua materna), a civilização é mais abrangente, englobando várias culturas, ocupando mais espaço e perdurando mais tempo, apesar das mudanças ocorridas no seu interior.   

Abrangendo múltiplas culturas no seu seio, uma civilização pode consagrar a solução da diversidade sem unidade, da unidade sem diversidade e da unidade na diversidade.   

Que dizer da Europa e da civilização europeia?  

Embora com elementos comuns a outras civilizações, há nela elementos que a particularizam, resultantes da sua longa temporalidade.  

Tem como principal base civilizacional a tradição greco-latina e judaico-cristã, a que acresce as navegações, a tradição revolucionária e liberal e a revolução industrial, com consequências a nível dos fundamentos políticos, económicos e técnicos, entre outros.  George Steiner, na palestra A Ideia de Europa, define-a em cinco axiomas: o café; a paisagem a uma escala humana que possibilita a sua travessia a pé; ruas e praças com nomes de artistas, cientistas, escritores e estadistas do passado; a herança dupla de Atenas e Jerusalém; as trevas que a ensombram, mesmo nas horas mais luminosas, de Auschwitz ao Gulag.

Considerando que mesmo as ideias mais abstratas têm de estar ancoradas na realidade, questiona-se: como é que isso se aplica à ideia de Europa?     

Responde num parágrafo célebre: 

“A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos mapas essenciais da “ideia de Europa”.

Concebendo a Europa como uma identidade cultural, é a partir daqui que se deve pensar a civilização europeia e aquilo que deve ser a União Europeia, defendendo: 

“O génio da Europa é aquilo que William Blake teria chamado “a santidade do pormenor diminuto”. É o génio da diversidade linguística, cultural e social, de um mosaico pródigo que muitas vezes percorre uma distância trivial, separado por vinte quilómetros, uma divisão entre mundos. Em contraste com a terrível monotonia que se estende do ocidente de Nova Jérsia às montanhas da Califórnia”.    

É a defesa de uma solução de síntese: da unidade com diversidade.

E se o legado ontológico da Europa é o questionamento, perfilha a ideia de que a Europa ocidental pode “ter o privilégio imperativo de produzir, de pôr em prática, um humanismo secular”. E acrescenta: “Esta tarefa pertence ao espírito e ao intelecto”. 

Uma ideia de Europa e de civilização europeia que tenha como valores fundamentais a democracia, a tolerância e os direitos humanos.     

Exemplifica-o o ânimo espiritual e mental que permitiu a sobrevivência do pianista judeu-polaco Wladyslaw Szpilman, na segunda guerra mundial, com a imprescindível ajuda do oficial alemão Wehrmarcht Hosenfeld, retratado no filme O Pianista, de Polanski, ao som de Chopin, como se, naqueles momentos, a guerra não existisse, eclipsada pelo poder e força da música, unindo-os e libertando-os na adversidade, aliando  inesperadamente em dignidade, tolerância e na unidade com diversidade, duas pessoas oficialmente inimigas, fazendo jus a uma matriz europeia humanista e transversal.   

 

14.05.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício