A VIDA DOS LIVROS
De 17 a 23 de maio de 2021
“Portugal – Ser e Representação” de Miguel Real (Difel, 1998) constitui uma reflexão crucial, no conjunto de uma obra que atinge os quarenta anos de persistente labor intelectual.
PERMANENTE INTERROGAÇÃO
Os quarenta anos de Escrita de Miguel Real correspondem a uma permanente interrogação sobre o tema dos mitos e da essência da cultura. Eis por que razão a sua obra tem de ser analisada a partir do seu sentido crítico e não apenas através de uma identificação simplificadora das glosas que tem desenvolvido, por exemplo, a partir de Teixeira de Pascoaes, Jorge Dias, António José Saraiva e Eduardo Lourenço. De facto, o elemento dominante encontrado pelo ensaísta no homem português de “ser o que não é”, leva-nos à compreensão de que a riqueza do pensamento de Miguel Real é a sua capacidade de pôr em causa os lugares comuns e de assumir a complexidade. Tal como refere José Gil, sobre o “ensaísmo trágico”, relativamente a Eduardo Lourenço, Miguel Real não segue os dois caminhos tradicionais do pensamento filosófico – ora partindo dos grandes conceitos, com o horizonte reconfortante e estável das sínteses, como em Kant e Hegel; ora exercendo a análise pura e direta da decomposição das noções. Miguel Real prefere os conceitos, encarados como “figuras simbólicas”, a partir da função ontológica do mito. Com efeito, aceita que há dois tipos de existência – a empírica e a mítica, mas é a segunda que estrutura a primeira e fá-la consistente. A mitificação do empírico conduz-nos ao primado do sentido crítico, não havendo confusão entre a invocação dos mitos, o seu efeito, e a respetiva aceitação. Eis por que são importantes os mitos que a sociedade produz, assumindo a dupla dimensão de integração e renovação. De facto, o mito evolui e adapta-se à realidade e, simultaneamente, contribui para fazer alterar a própria realidade. Não por acaso, M. Real faz da crítica literária o seu terreno de eleição, a fim de compreender melhor a capacidade criadora. É a busca da complexidade hermeneutica, ontológica e histórico-sociológica que o preocupa. O “imaginário português” é, assim, o campo de ação do analista, como fator de liberdade, de independência e de diversidade. Ao aventurar-se no lugar dos outros e no campo do ser o que não se é, depara-se, tantas vezes, com uma menor compreensão daquilo que verdadeiramente põe em causa. Pode, assim, aplicar-se-lhe o que Eduardo Lourenço afirma em “Heterodoxia – I”: “o homem é livre de aceder a uma visão geral da vida através duma reflexão incondicionada, cuja essência consiste na possibilidade de recusar ou discutir toda a espécie de postulados”. Por isso a distância em relação à ideia de sistema, e a evidente preferência pelo método ensaístico, tal como preconizado por Sílvio Lima. E assim eis-nos perante a interrogação exigente sobre o modo como somos e como imaginaríamos ou deveríamos ser. Daí uma especial coerência em recusar os temas circunstanciais ou as ilusões da moralidade – o que se evidencia nas incursões romanescas, com evidente sucesso, em que a singularidade dialoga com a comunidade, sem pretensão de uma qualquer conclusão edificante.
QUALIDADES E DEFEITOS…
Portugal é visto com qualidades e defeitos, com avanços e recuos, com características próprias, as mais das vezes contraditórias: a Providência e o anti-clericalismo; a unidade e a diversidade; o conformismo e o inconformismo; o lirismo e o picaresco, a tragédia e a ilusão. Afinal, urge denunciar o “irrealismo prodigioso da imagem que os portugueses fazem de si mesmos”, como lemos no autor de “O Labirinto da Saudade”. Longe da placidez das explicações unívocas, encontramos no caminho da nossa História: os gestos traumáticos da independência nacional; a longa hesitação do Mestre de Avis; o desastre de Alfarrobeira; a tragédia do Infante Santo; a morte da esperança do Principe Perfeito; a loucura de D. Sebastião; a ambiguidade do Quinto Império; o efeito do Ouro do Brasil; a partida da Corte para o Brasil; a humilhação do Ultimato inglês; o colonialismo; a neutralidade colaborante do Estado Novo… Tudo se projeta na vida coletiva, na gestação e desenvolvimento dos mitos. “Os Lusíadas” são uma genial ficção, em que Camões segue os passos de Virgílio e põe-nos na linhagem de Eneias e dos heróis de Tróia. É uma ficção grandiosa que não esconde a excecionalidade de uma evolução dificilmente explicável de uma “existência crepuscular”. De facto, só a crítica, do mito e pelo mito, pode tentar encontrar uma chave para esse encontro com o destino difícil de explicar.
EUROPA E LUSOFONIA
Os mitos da Europa e da lusofonia obrigam, no fundo, à interrogação paradoxal sobre o velho continente e as relações ancestrais ambíguas que o tempo tem procurado resolver: depois de a Europa nos ter feito e de nós termos feito a Europa é tempo de assumir criticamente um sonho, apesar do desencantamento que resulta do confronto com a realidade. Afinal, Portugal e a Europa fazem-se mutuamente, designadamente através de uma relação ibérica inteiramente nova e absolutamente necessária… É de uma reconciliação connosco próprios que falamos, deixando de nos sentirmos marginais ou sós – com uma garantia de segurança e liberdade. De facto temos “Duas Europas”: uma, a nossa (em conjunto com a Espanha), castiça, do sul, arrastada pela má consciência de termos sido grandes; e a outra nórdica, avançada e acelerada… Já a “lusofonia” corresponderá a um espaço de língua, que não significa espaço de cultura unívoca. Tratar-se-á sempre de uma ligação de geometria variável, em que as complementaridades e as imperfeições serão muito mais importantes do que qualquer falso sucedâneo imperial. E Miguel Real diz-nos que, como nó central do imaginário português, o sebastianismo é um ativo cultural gerado pela consciência popular. Fernando Gil diz ser a alucinação um operador natural da evidência. O que obriga a que a crítica do mito se torne aguilhão de maior exigência futura. Prova póstuma de existência e desafio à lucidez.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença