A VIDA DOS LIVROS
De 24 a 30 de maio de 2021
A “Conferência Europeia das Humanidades 2021” constituiu oportunidade para debater a necessidade de dar ao conhecimento lugar central na sociedade contemporânea.
COMPREENDER O FUTURO
A realização, na Fundação Gulbenkian, da Conferência Europeia das Humanidades, organizada pela UNESCO, FCT e Conselho Internacional para a Filosofia e as Ciências Humanas (CIPSH), no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da UE, permitiu um debate aprofundado sobre um tema complexo que não pode ser abordado de forma simplificada, como se tratasse de um mero dilema entre duas culturas – literária e científica. A verdade é que, como salientou durante os trabalhos António Damásio, a compreensão da complexidade obriga-nos a não cair no velho erro de Descartes e a garantir a complementaridade efetiva entre razão e sentimento. O programa, ao propor como tema geral “Humanidades Europeias e Além”, deu especial ênfase à ligação entre reflexão e espírito científico, já que, como o Presidente da República notou, na abertura da Conferência “nenhuma sociedade tem futuro sem conhecimento e sem colocar esse conhecimento como fundamento das suas decisões sociais e económicas”, sobretudo quando nos encontramos numa circunstância de tempos críticos muito desafiantes, já que os dilemas que se nos têm colocado, designadamente com a pandemia, têm obrigado a uma articulação efetiva entre pensamento e ação, coesão social e estratégias científicas. Com efeito, os problemas complexos e multidisciplinares em causa exigem abordagens que devem combinar várias perspetivas e disciplinas, de modo a compreendermos que a medicina e a ciência política, a saúde pública e a economia têm de andar permanentemente a par, de modo que a evolução da sociedade se faça num equilíbrio permanente entre as diferentes áreas de Investigação e Desenvolvimento. Nesse sentido, a diretora-geral adjunta da UNESCO, Gabriela Ramos recordou o livro de 1722, "Diário do Ano da Peste", de Daniel Deföe, onde se retrata a sociedade de Londres durante a Grande Peste de 1665 e mostra como os fenómenos são cíclicos e as atitudes se repetem: "Para entender uma pandemia temos de compreender as relações entre diferentes realidades, desde o clima, à geografia e à história. Temos de aprender com o passado para preparar o futuro e as humanidades são os guardiães desse conhecimento". De facto, como salientou ainda, “não vale a pena ter avanços e soluções científicas se a sociedade os não compreende”. As pessoas aceitam as decisões desde que tomadas por autoridades em quem confiem e desde que disponham de informação fiável, designadamente no domínio digital. Contudo, essa relação de confiança só é possível estabelecer se houver uma presença segura das Humanidades, como fatores de diálogo e de qualidade.
FONTE DE CRIATIVIDADE E DE INOVAÇÃO
De facto, as Humanidades são uma fonte de criatividade e inovação. E, como afirmou o crítico de arte e escritor inglês, John Ruskin (1819-1900): "As grandes nações escrevem a sua autobiografia em três manuscritos: o livro dos seus feitos e acontecimentos, o livro das palavras e o livro das artes". Contudo, "nenhum destes livros pode ser entendido se não tivermos em consideração os outros dois". Factos, palavras e artes constituem a base estrutural para entendermos a evolução histórica – daí que a pedagogia e a escola tenham de assentar a aprendizagem na permanente ligação entre os diferentes domínios do pensamento. Assim, falar de Humanidades não pode reduzir-se à literatura ou à reflexão, como realidades separadas, devendo, sim, participar como estímulo permanente à Ciência como Cultura. Daí a necessidade de não subalternizar a Filosofia. Não é demais lembrar que as sete Artes Liberais, o trivium (lógica, gramática e retórica) e o quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), associavam naturalmente as Humanidades aos diversos ramos do saber. Lembremo-nos dos exemplos de Leonardo da Vinci e de Leibniz, ou de portugueses como Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de Castro. Fácil é de notar como, para eles, as Humanidades ligavam todas as áreas do conhecimento, não de modo autossuficiente, mas como fatores de coordenação e exigência. A crise financeira de 2008 ou a crise pandémica de 2020-21 demonstraram como a lógica positivista da cultura científica falhou rotundamente, incapaz de distinguir realidade e ilusão, verdade e aparência. O racional e o razoável têm de se articular. E hoje a questão das alterações climáticas e o estado de emergência em que nos encontramos no domínio ambiental – deixaram de ser (com a pandemia) temas longínquos, já que as questões de sobrevivência da humanidade passaram a ser bem atuais e próximas de nós. Não há desenvolvimento sem aprendizagem de qualidade e sem a prioridade dada à educação, à ciência e à cultura. Por isso, o património cultural é cada vez mais fonte de criatividade e inovação, uma vez que nos permite entender o tempo nas sua diferentes dimensões, já que o passado projeta o futuro e as raízes são chaves para a compreensão sobre de onde vimos, quem somos e o que nos distingue dos outros… Numa sociedade de informação, devemos estar aptos a transformar informação em conhecimento e o conhecimento em sabedoria. T. S. Eliot disse “Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?” – Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”.
A IMPORTÂNCIA DA COMPLEXIDADE
A reflexão sobre a complexidade de Edgar Morin (que se aproxima de completar cem anos) leva-nos a entender a célebre afirmação de Pascal: «considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, mas tenho por não menos impossível a possibilidade de conhecer o todo sem conhecer singularmente as partes». Há, assim, um vai-e-vem em que se funda a diligência de conhecer. E é esta preocupação que nos permite articular o uno e o múltiplo, o próximo e o distante, a teoria e a experiência… De facto, a complexidade está no coração da relação entre o simples e o complexo porque uma tal relação é a um tempo antagónico e complementar. A ciência funda-se não só no consenso como no conflito. Ao mesmo tempo, evolui a partir de quatro colunas fundamentais: a racionalidade, o empirismo, a imaginação e a verificação. Sabemos que há um diferendo permanente entre o racionalismo e o empirismo. As novas descobertas empíricas e o experimentalismo foram pondo em causa, de diversas maneiras, as construções racionais – que permanentemente se reconstituem e reconstroem constantemente a partir de novos elementos e fatores. Ao salientarmos a importância das Humanidades, entendemos que a complexidade não é uma receita, mas um apelo à civilização das ideias. De facto, «a gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue aceder à humanidade». Duas barbáries coexistem e agem sem contemplações: a que vem da noite dos tempos e usa a violência; e a barbárie moderna e fria da hegemonia do quantitativo, da técnica e do lucro. E ambas levam-nos ao abismo. Importa, pois, entender o que Hölderlin nos ensinou: «onde cresce o perigo, cresce também o que salva».
Guilherme d’Oliveira Martins
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