CRÓNICAS PLURICULTURAIS
76. ESPIRITUALIZANDO E AMANDO AS COISAS
Amamos qualquer coisa na medida em que ela parece ser nossa.
Há afeto à casa, terra e país onde nascemos, lugares de brincadeiras da nossa meninice, onde crescemos e vivemos, à escola onde aprendemos a ler, escrever e contar.
Às árvores e flores que plantámos, aos livros que amamos, com amizade e valor estimativo proporcional à associação de ideias, imagens, memórias, recordações felizes e cruciais na nossa vida.
Às vezes é no meio do silêncio e da solidão que o descobrimos.
O impulso humano para a ação, carregada de adrenalina e emoção, são uma fuga para a nossa angústia, interrogação e certeza da nossa mortalidade, fazendo com que, tantas vezes, não haja tempo para espiritualizar e amar as coisas que nos rodeiam.
O amor e a amizade por elas, nasce de um contacto, mesmo que apenas imaterial e através da memória.
Há em nós um animismo que nos leva a atribuir alma às coisas inanimadas.
Mesmo aquele que não é afetuoso ou sensível cria, anima e espiritualiza amizade e amor às coisas que lhe são aprazíveis e úteis.
Às vezes é na ausência das coisas que bem-queremos que sentimos a sua falta.
O imperativo da sobrevivência obriga-nos a correr para a agitação, a responsabilidade e stresse quotidiano, mas há que priorizar regras e outros interesses que nos ajudem a manter o sentido das proporções.
Ao termos consciência da brevidade da vida humana, devemos consagrar amizade e amor ao que nos envolve e coabita connosco, compreendendo melhor tudo o que tem valor no universo que conhecemos, promovendo interesses subsidiários além daqueles que representam o centro nuclear da nossa mundividência.
Incluindo espiritualizar e amar os objetos, como os livros, que não envelhecem, que são migratórios, fiéis, firmes e leais, em que o mesmo que dizem hoje, dirão amanhã ou daqui a anos.
Por vezes é no meio do silêncio e de um olhar, que ocorre em qualquer lugar.
28.05.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício