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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

VIRTUDE E VIRTUDES

 

1. Não me parece que a virtude tenha hoje grande cotação. O que actualmente parece ser mais valorizado tem a ver com o ter, o prazer e o poder, a qualquer preço. Daí que, quando se está minimamente atento, se veja o que se vê — apenas exemplos: a calamidade da corrupção; o estado da Justiça; bancos a afundar-se e os contribuintes a pagar; por mais apoios que cheguem da Europa, milhões, mais milhões, mais milhares de milhões, parece que caem num abismo sem fundo e o que é facto é que continuamos sempre na cauda (onde estão a organização e o investimento inteligente?); a irresponsabilidade pelos erros cometidos: alguém conhece alguém que se assuma como responsável (capaz de responder, que é isso que quer dizer responsável) por um erro ou mesmo um crime?...


Degraçadamente, a virtude ou uma pessoa virtuosa, de virtudes, parecem hoje associadas a beatice e menoridade. Mas isso não é de modo nenhum correcto, mesmo de um ponto de vista meramente etimológico. De facto, virtude  — do latim vir, virtute —, é, como pode ler-se no Dicionário de Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, “o conjunto das qualidades que dão valor ao Homem, moral e fisicamente; carácter distinto do Homem, mérito essencial, valor característico, virtude, qualidades morais; qualidades viris, vigor moral, energia, coragem, valentia; a virtude, a perfeição moral.”


Virtude é uma força ou energia que actuam, potência activa, capacidade ou poder de agir. Mas, entenda-se, para evitar equívocos: esse poder é um poder específico, isto é, a qualidade própria de um ser: por exemplo, se o bom remédio é aquele que cura bem, bom veneno é aquele que mata bem. Através do exemplo do veneno, percebe-se que, como explica o filósofo André Comte-Sponville no seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, uma obra com assinalável êxito editorial, inclusivamente na tradução portuguesa, virtude é poder, e o poder basta à virtude: pedimos a alguém que nos desculpe pela nossa ausência, pois, em virtude de uma doença, não pudemos comparecer, e também é claro que uma faca excelente, nas mãos de uma pessoa má, continua excelente; mas não faz excelente a pessoa nem a moral. Porquê? A virtude de uma pessoa é o que a realiza humanamente, é o poder que afirma a sua qualidade própria, isto é, a sua humanidade, como dizia Montaigne: “Nada existe de tão belo e legítimo como ser Homem bem e devidamente”. A virtude é a capacidade para agir segundo a exigência de humanidade: “é o que também chamamos as virtudes morais, pelas quais uma pessoa parece mais humana ou dotada de mais qualidades”, a ponto de, sem elas, ser qualificada de inumana. Numa palavra, praticar a virtude é estar de acordo com a humanidade em nós e dignificá-la.


No sentido mais estrito, as virtudes são as potências activas propriamente humanas, que precisam de ser exercitadas para se tornarem um hábito operacional que as capacite para a acção recta e perfeita, ajustada às exigências mais profundas da natureza humana e tornando o Homem bom pura e simplesmente. As virtudes enquanto inclinação adquirida para o bem ou hábitos operativos bons formam como que uma segunda natureza no Homem, e vão ao encontro da definiçãio clássica proposta por Aristóteles: “Virtude é aquilo que torna bom aquele que a possui e torna boas as suas obras”.


Remando contra a corrente — repito: quem é que se atreve hoje a falar da virtude e em virtudes? —, A. Comte-Sponville viaja por dezoito virtudes: a polidez, a fidelidadade, a prudência, a temperança, a coragem, a justiça, a generosidade, a compaixão, a misericórdia, a gratidão, a humildade, a simplicidade, a tolerância, a pureza, a doçura, a boa-fé, o humor, o amor.  Ah, que falta fazem elas todas! Como espinosista consequente, A. Comte-Sponville não fala da esperança — não dizia Espinosa que a esperança, por ser carência (ainda não se tem o que se espera), é inquietação, ignorância e impotência?


O cume da virtude é o amor, porque aí se manifesta a força máxima da alegria de ser e do ser. Claro que, se se ficasse no eros, não se superaria o perigo da armadilha permanente e consequente tristeza que reside na identificação de sexo e amor — por isso, a castidade também é uma virtude, na medida em que o abuso da sexualidade é condenável. Há eros, mas há também a philia (amizade), que se define por três substantivos: benevolência, beneficência e, sobretudo, confidência, e agapê (o amor para lá do eros e da philia, amor universal e desinteressado, que ama os próprios inimigos). Deus é Amor, pois é a identidade da Vontade infinita e do Bem infinito. Que alegria maior para o Homem do que estar de acordo com o ser, querer que exista tudo quanto existe, regozijar-se com a existência de tudo quanto é, fruir a sua bondade? Não constitui uma bênção ouvir alguém dizer: “Sou feliz porque existes, é bom que existas”? O que seria a minha vida sem ti? Em última análise, a fé cristã em Deus baseia-se na experiência de que, em última análise, é Ele que justifica a nossa existência: valemos para Ele, Ele reconhece-nos, dá-nos valor.


Que outra coisa é o amor senão esta bênção, esta alegria? Embora exigentes, a virtude e as virtudes não são um fardo e um constrangimento. Pelo contrário, quando se pensa adequadamente, vê-se claramente que são qualidades, valores morais vividos e encarnados, cujo fruto é a alegria, o contrário da tristeza. Como escreveu Espinosa, a virtude só pode ser força de espírito e, assim, sempre alegre!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 JUNHO 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Louis Kahn revela que a verdadeira arquitetura é tudo aquilo que a natureza não pode construir.


“Em tudo o que a natureza faz,

A natureza imprime o seu modo de fazer.
Numa pedra, há a memória da pedra.
Num homem, há a memória da sua criação.


Quando compreendemos isso,
nós compreendemos as leis do universo.
Alguns são capazes de reconstruir as leis do universo
Apenas ao olhar uma folha da relva.
Outros têm que aprender muitas, muitas coisas,
até que possam perceber o que é necessário
para desvendar essa ordem que é o universo.”, Louis Kahn (Kahn 2002, 21)


Louis Kahn, nos anos 50 do séc. XX, através do projeto da Galeria de Arte de Yale (1953), concretiza duas ideias fundamentais: sensibilidade e pensamento.


Sensibilidade
para Kahn é intuição, é desejo de criar a natureza do espaço e da ordem. Está acima de pensamento, ao contrariar a ideologia moderna do puramente racional e funcional e ao valorizar a arquitetura como reflexão sensível. Pensamento estabelece os meios para criar, é desenho. O desenho estabelece-se na dimensão da matéria que contém ordem, geometria e hierarquia dos espaços - servidos e servidores.


Ora, no início dos anos 60, no projeto do Salk Institute, a sensibilidade cria características imensuráveis postas em prática a partir de experiências do passado e da evolução do ser humano. Durante este período as obras de Kahn falam do desejo em expressar inspiração para permitir a aprendizagem: “I consider that school is my chapel... Every building that an architect builds is answerable to an institution”, Kahn, 1967


Louis Kahn deseja criar instituições que inspirem o ser humano e que constituam uma herança. Sendo assim, no Salk Institute, o pensamento cria características mensuráveis. É sensibilidade com a presença de ordem. Para Kahn, a arquitetura também significa fazer. É pensamento organizado, é harmonia dos elementos de um programa é meio de expressão. Ao associar-se a sensibilidade, permite a realização da forma. Forma é vontade de existência universal e eterna - estabelece um equilíbrio com o mundo natural, onde as leis não mudam e implica uma hierarquia dos elementos e das funções. Afirma-se então, o volume dentro do volume - a planta não se afirma livre (o espaço servido tem as funções principais) porque está interrompida por espaços servidores (que têm funções secundárias). E assim, Kahn concebe os espaços servidores, unidos coerentemente pelo conceito de forma: “Spaces must be distinguished. The serving areas of a space and the spaces which are served, are two different things.” Kahn, 1959.


No projeto para a Bilblioteca Phillips Exeter (1965) silêncio toma o lugar da sensibilidade. Silêncio é agora o elemento da arquitetura que permite evidenciar a essência das coisas e o desejo de existir pelo meio físico da luz. O que liga o conceito de silêncio e de luz é a fonte de inspiração - com síntese, essência e forma.


“Phillips Exeter Academy Library is embodied in the movement from the darkness to the light as with the book and the search for knowledge”, Steven Holl, 1996


Por sua vez, luz toma o lugar de pensamento, relacionando-se com o fazer. Luz é um utensílio de expressão, um meio dado pela natureza, intimamente ligado à ordem estrutural, modular e à escolha dos materiais.


Por fim, no Yale Center for British Art (1966-1977) contacto substitui silêncio. Contacto é o espanto, o maravilhoso, a primeira resposta intuitiva, a revelação. É essência que não depende do meio e precede a sua existência. É regra inconsciente que não muda.


A visão substitui a luz. E visão é o belo, é o sentimento da total harmonia. É existência que evidencia o espírito encarnado na forma, que se torna presença assim que o ser humano invoca as leis da natureza: “Form has an existence (...) but existence does have a mental existence so you design to make things tangible.”, Louis Kahn


Kahn afirma que a ordem humana está referenciada ao conjunto de regras elaboradas conscientemente pela cultura. É estrutura, construção, tempo, espaço, mas sobretudo lugar e oportunidade. E no fundo, Kahn com este projeto revela que a verdadeira arquitetura é tudo aquilo que a natureza não pode construir.

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

De 28 de junho a 4 de julho de 2021


O pequeno livro “O Essencial sobre Raul Brandão” de António M. B. Machado Pires (INCM. 1997) é um precioso repositório sobre um dos escritores portugueses mais fecundos do século XX, que abre horizontes para a grande literatura mundial.

 

 

NECESSIDADE DO DESCONHECIDO
“Singulares criaturas devem nascer por este fim de século, em que a metafísica de novo predomina e a asa do Sonho outra vez toca os espíritos, deixando-os alheados e absortos. A necessidade do desconhecido de novo se estabelece” – assim se exprimiu o autor de “Humus”, definindo em síntese o que caracteriza a geração de 1890, que une Camilo Pessanha, Eugénio de Castro, António Nobre ou Francisco de Lacerda. São os símbolos que se impõem, numa visão trágica do tempo. E assim afirma em “Os Pescadores”, sob a luz doirada e o azul do céu, da Foz do Douro, com o negrume do luto pelo mar agreste: “essa Foz reduz-se cada vez mais na minha alma a um cantinho (…) que retenho na memória com raízes cada vez mais fundas na saudade, e mais vivas à medida que me entranho na morte”. E é a seu avô, “morto no mar”, que Raul Brandão (1867-1930) dedica essa fantástica biografia do mar português. Militar de profissão, sem entusiasmo, leitor insaciável, cronista, polígrafo, pintor por amadorismo, o que lhe permitiu ser um extraordinário escritor de paisagens e da natureza, torna-se um sedentário. Uma vez reformado do Exército, fixa-se na casa de Nespereira nos arredores de Guimarães, com sua mulher Maria Angelina, preciosa ajuda. Aí cultiva o amor à natureza e às árvores, “verdadeiro paradigma do mistério da vida”, permanecendo sempre durante as vindimas, vindo só depois para Lisboa, onde residiu na “York House”, antes de ter uma casa própria. 


ESCRITA ARDUAMENTE TRABALHADA

A sua escrita, arduamente trabalhada, segundo um humanismo panteísta, exerce influência significativa nos autores mais marcantes do século XX, como Torga, Régio, Nemésio, Branquinho da Fonseca, Irene Lisboa, José Gomes Ferreira, Rodrigues Miguéis, Agustina, Almeida Faria ou Luísa Dacosta… Pode, aliás, dizer-se que é maior a sua influência do que à primeira vista poderia parecer – sendo um indiscutível mediador relativamente à presença de Dostoievsky na literatura portuguesa. Brandão levou, assim, à leitura do autor de “Crime e Castigo”, mas igualmente foi ele mesmo portador dos ecos dessa influência. Homem de meditação e não de ação, o escritor centra-se no “seu buraco a cismar”. Machado Pires fala, por isso, de duas faces: a do mundo da Dor e do Sonho recalcado e a da escrita das viagens, das paisagens de luz e cor… Cinco palavras marcam a sua literatura: Sonho, Dor, Tempo, Morte e Luz. “A verdadeira existência, a que nos custa a deixar, é essa que nos parece quimérica. É até se me não engano, a única que existe. Às vezes morre, dilui-se: a alma já não exala sonho, e o corpo continua a viver – mas em verdade vos digo que o homem a quem isto suceda não passa de um cadáver” (“A Farsa”, 1903). Se nos lembrarmos das obras históricas de Brandão, percebemos que é menos o acontecimento que lhe importa e muito mais o drama e as contradições humanas. “É difícil de concluir se os homens é que fazem a História ou se é a História que faz os homens”. Sobre El-Rei Junot ou sobre Gomes Freire, o que encontramos são intuições, simpatias, impulsos, quase totalmente espontâneos. Vitorino Nemésio, quando o visita em Nespereira, descobre uma gravura que representa o Remexido, rebelde da serra algarvia, defensor de D. Miguel, símbolo do povo descamisado. É a sua paixão pela adversidade… 


UMA OBRA INCLASSIFICÁVEL

Raul Brandão procura mergulhar no íntimo do ser humano. Esse desígnio é evidente em “Humus”, que Régio considera difícil de classificar, mas que David Mourão-Ferreira entende como precursor do “nouveau-roman” e que Jacinto do Prado Coelho julga ser um anti-romance. Há a projeção de um mundo dostoievskiano marcado pelos grandes conflitos da alma humana, que reúnem sentimentos e espontaneidade. A aparente desordem expositiva revela, assim, a necessidade de compreender os limites. “O importante neste mundo talvez não seja procurar a verdade – talvez seja amar. E amar não consiste em fazeres o teu dever – nem mesmo em te despires pelos outros – amar é uma irradiação. Amar é um estado de graça. Poder amar é quase ser Deus” (“O Pobre de Pedir”, 1931).  Em “Jesus Cristo em Lisboa” (1927), escrito com Teixeira de Pascoaes, mas sobretudo marcado pelo próprio Raul Brandão, torna-se evidente o eco de Dostoievski: o cristianismo do século XX defronta-se com a incompreensão do exemplo de Cristo, que se vê rodeado de ambiciosos e corruptos, o que exige uma nova luz, franciscana e idealista, dando voz aos desgraçados, aos visionários, aos pobres e aos poetas. É o retrato – di-lo A.M. Machado Pires - da “Vida em todos os seus incompreensíveis e brutais contrastes, o idílico e o prosaico, o extase e a dor, a ternura (…) e a brutalidade, o efémero e o eterno, a avidez e a fugacidade, a trágica consciência da irreversível corrida para a morte, mas também a paixão perante o egoísmo, a humildade no pecado, que vale mais do que o orgulho na virtude (…), o fantasma que existe em nós, as misérias ‘fundo de poço’ escondidas pelo eu imagem-para-os-outros ou ainda a História do historiador perante a História do Homem – a Dor, lei eterna e motor da História”. 

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:


   Quando, há anos atrás, me arrisquei a traduzir cartas do Marquês de Sarolea à Minha (sua, dele) Princesa de mim (dele), nem sonhava com meter-me nesta alhada de lhe continuar o hábito epistolar e acabar indefinidamente escrevendo cartas a esta (tu mesma) indefinida Princesa de mim. Talvez deva esclarecer melhor o assunto, já que tanto insistes em limpar o teu nome e seres absolvida de qualquer eventual responsabilidade pelos meus devaneios senis... E já o fiz, sabes bem que sim, mas repeti-lo-ei ao editar em papel de livro, como tantos insistem, as cartas da minha crise. Por agora, vou dormindo sestas, e escutando-me. Sem disfarce nem traduções, escrevo-te umas cartas, relatos simples do meu pensarsentir. É sempre bom partilhar.


   E falando de partilha, deixo-te agora esta mensagem tão linda que recebi de velho amigo, feliz com a dádiva de neto seu: hoje o Rodrigo (tem sete anitos) ficou em casa, doente, e para não ser só TV mandei-o para o quarto fazer uma cópia. Assim foi, mas apareceu também com uma oração que escreveu (juro que não lhe pedi para escrever nem ajudei com nada!):


   Oração de Jesus: A vida é a melhor coisa que nos aconteceu. A vida é tudo para nós. A vida tem que ser bem aproveitada. A vida fez um favor e nós temos que retribuir esse favor. Nós agradecemos a graça e a bondade da vida.


  
Sem querer meter-nos em filosofias, nem fazer epistemologia (ou seja, evitando irritar-te!...), lembro o famoso dito cartesiano: penso, logo existo. Talvez nem seja preciso pensar muito, a vida é um dado, não só no sentido de estar aí sem que eu tenha feito por isso, mas como dádiva... Assim escreveu o Rodrigo: A vida fez um favor e nós temos que retribuir esse favor.  Drogado em leituras, pensamentos e lembranças, ocorre-me um passo das Obras de António Mora (Fernando Pessoa), quando se refere ao paganismo do heterónimo Alberto Caeiro: Como o que está na inteligência tem de estar primeiro nos sentidos (aqui dito sem inútil filosofia, mas apontando apenas o facto material), o paganismo tinha que ser instintivo, de sensibilidade, antes de poder ser novamente uma ideia formada e consciente. Era preciso, para que pudesse renascer o paganismo, que começasse por aparecer um pagão. Digo-te eu: para que nasça a vida é só preciso que haja vida. Neste sentido, a vida humana é a consciência inata dela própria: vivemos e sabemos que vivemos, simplesmente porque estamos vivos. E creio que o paraíso eterno mais não é do que viver com o Deus dos vivos. O inferno não terá fogueiras nem gemidos, será simplesmente o esquecimento da vida, o nenhures dos mortos, nada.


   Todos nós conhecemos pessoas que padecem de síndromas estranhos, malefícios esquisitos, que desde meninas as retiram da vivacidade de qualquer convívio social. Não lhes falamos nem as escutamos, mas, mesmo assim, comungamos com elas na vida. Respeitamo-las, quiçá com mais sentido e cuidadoso carinho, por nelas reconhecermos a vida que nós próprios somos, porque, diz o Rodrigo, a vida é a melhor coisa que nos aconteceu, a vida é tudo para nós. A atenção ao outro, o cuidar dele, é o nosso único modo possível de, como lembra o Rodrigo, nós agradecermos a graça e a bondade da vida. Arrisco-me a dizer-te, Princesa de mim, que a alegria da vida é sempre necessariamente recíproca: na vida dos outros reconhecemos, como num espelho, a nossa própria vida. Pensossinto, mesmo, que esse é o nosso modo comum de sermos todos Mãe, essa cuja vida, apesar dos incómodos, enjoos e cuidados, se alegra na felicidade que sente vibrar no seu ventre.


   Assim termino esta carta, bem mais jovem do que quando a comecei. É certo que a doença, sofrimento e morte de tantos amigos, recentemente, me abalaram, sobretudo por me doer a dor deles, e por me faltarem, repentinamente, memórias e marcos do meu percurso nesta terra. Mas, afinal, o miúdo Rodrigo, profeticamente, veio lembrar-me de que todos temos uma única referência comum, que é a vida. Essa que, diz São João na sua epístola, se manifestou: vimo-la, damos testemunho dela e anunciamo-vos essa Vida eterna...  ...para que também vós estejais em comunhão connosco...  ...Tudo isto vo-lo escrevemos, para que a nossa alegria seja completa.

                         

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 04.03.2016 neste blogue.

BREVE EVOCAÇÃO DE FIAMA DRAMATURGA

 

Em 1961, portanto há exatos 60 anos, é publicada uma antologia de peças de autores, nessa época iniciáticos, que dedicavam precisamente ao teatro uma recolha, ela própria também genericamente iniciática, de peças de teatro.


Tratava-se de uma afirmação em si mesma significativa de renovadores da arte dramática, para alguns deles não prosseguida mas significativa, da relevância crítica que o teatro ia manifestando, numa época e numa fase mais significativa na criação e na publicação do que na consagração de espetáculo, como bem se entende.


E podem então citar-se peças por vezes esporádicas de autores hoje consagrados na literatura em geral: peças de Yvette Centeno, de Rui Mesquita, de Artur Portela Filho, de Fonseca Lobo, de Augusto Sobral, de Salazar Sampaio e de mais escritores que de uma forma ou de outra marcaram e não poucos continuam a marcar  a criação dramatúrgica  da época e (alguns menos ou bem menos…) de hoje.


Sendo certo que, para muitos, o teatro surge como uma espécie de complementaridade da criação literária e poética, numa época em que era difícil, por razões políticas e económicas generalizadas, levar à cena, e portanto complementarizar a criação dramática em termos de espetáculo, o que em si mesmo não era nada estimulante!...


E nesse aspeto é muito interessante esta reedição fac-similada da peça publicada no corrente ano (“Público”), assinalada por um carimbo datado de 9 de setembro de 1963, de reprovação pela censura, emitido pela então determinante Inspeção dos Espetáculos nesse tipo de intervenções.


Fiama Hasse Paes Brandão publicara em 1958 a peça “Em Cada Pedra um Vão Imóvel” a que se seguiu em 1960 “O Serão”. Em 1963, tal como referi na “História do Teatro Português”, surge “O Museu”, este publicado numa recolha coletiva, intitulado “Novíssimo Teatro Português”, juntamente com peças de Augusto Sobral, José Sasportes, Artur Portela Filho e Maria Teresa Horta. E aí cito ainda outras peças relevantes de Fiama: “O Cais” e “A  Casa”, ambas dos anos 60, “Os Chapéus de Chuva”, “O Testamento” (1962), “O Golpe de Estado” (1962),  “A Campanha” (1963), “Auto de Família” (1964), “Quem Move as Árvores” (1970).


Acresce Luis Francisco Rebello uma intervenção muito concreta da estética teatral ideológica do conjunto de peças de Fiama. Refere os problemas com a censura teatral dominante na época. E acrescenta a renovação da sua obra.


Escreve então Rebello que “da revolta anárquica, surrealizante, das suas primeiras obras («Os Guarda-Chuvas», 1962; «O Testemunho»,1963) evolui para um didatismo” que lembra Brecht.


E mais: “transportando para o palco personagens, episódios e mitos da história nacional – os amores de Pedro e Inês de Castro, os processos da Inquisição, as guerras liberais, as revoltas populares -, nenhuma destas peças tem a estulta pretensão , a que românticos e neo-românticos  cederam, de reconstituir um passado irresistível, mas sim submete-lo a um olhar novo (como diria Brecht a propósito do seu «Galileu») que nos restitui um passado irresistível, mas sim submetê-lo a um olhar novo (como diria Brecht)”… Assim mesmo!


 Veremos ainda outra peça de Fiama: “O Testamento”.

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


78. CULTURA E TOTALITARISMOS

I - COMUNISMO

Nos Estados totalitários, seja qual for a sua ideologia, de direita ou de esquerda, o Estado toma a seu cargo e vigilância a definição de normas a que a arte, artistas e intelectuais se devem submeter. É obrigatório que a cultura obedeça a imperativos ideológicos que se integrem na norma vigente. Em substituição da perigosa liberdade de expressão e de pensamento, e da liberdade individual dos criadores, sobressai a imposição de uma arte oficial. São seus exemplos o comunismo e o fascismo (no fascismo, com especial destaque para o nazismo ou nazifascismo).  


Para Lenine, na antiga União Soviética, a arte ocidental era decadente, burguesa, reacionária e capitalista. A arte deveria ter um fim inteligível, servindo as necessidades do povo e do regime.    


Era imperativo construir um homem novo, diferente do modelo das democracias liberais burguesas e capitalistas.   


Na nova Rússia Soviética o homem novo é o proletário, a classe do proletariado, que triunfou do capitalismo.      


Se inicialmente os artistas estavam com o sistema, proporcionando um ideal utópico idealizado do comunismo, foram sendo censurados, exilados, acusados,  condenados, presos, torturados, coagidos a trabalhos forçados, assassinados, ostracizados, difamados, perseguidos, obrigados a emigrar, numa progressiva centralização e controlo da produção cultural, impondo a arte oficial por expulsões, intolerâncias, marginalizações, nacionalização de museus, de coleções de arte privada, proibição de livros, filmes, imprensa e editoras independentes, purgas em bibliotecas e perseguições de intelectuais tidos por individualistas, pequeno-burgueses, inimigos do povo, sabotadores e traidores. Tudo apoiado numa propagando ao serviço de uma nova arte.   


Esse endurecimento na política cultural foi mais sentido com o estalinismo, através do realismo socialista, obrigando os que queriam trabalhar a pertencer à União dos Artistas Soviéticos, que tinha o monopólio da distribuição dos recursos materiais e dos instrumentos de trabalho. 


Artistas e cidadãos são compelidos a apoiar e a construir o realismo socialista, nomeadamente aquando da chegada ao poder de Estaline, em 1925. 


Malevitch, pai do suprematismo, denunciado, em 1929, de “subjetivismo”, atacado pela imprensa, preso, torturado, proibido de dar aulas e acusado de espionagem, morreu pobre e abandonado.     


Tatlin, um dos fundadores do construtivismo, foi esquecido e marginalizado após o desinteresse político pelas obras de vanguarda, acabando por se acomodar e ser obrigado, em fim de vida, às regras de criação artística impostas pelo estalinismo.


Maiakovski, escritor, poeta e desenhador, ter-se-á suicidado, na versão oficial, subsistindo até hoje a hipótese de ser assassinado por razões políticas.    


Pavel Filonov, teorizador a autor da arte analítica, recusou o realismo socialista, foi dado como traidor e inimigo do povo, morrendo na penúria.  


Boris Pasternak, tido como “subjetivista”, foi impedido, por razões políticas, de receber o Nobel da literatura, em 1958, pela sua obra Doutor Jivago.  


Alexander Soljenítsin, romancista, dramaturgo e historiador, preso, exilado e condenado a trabalhos forçados, autor de O Arquipélago de Gulag, Nobel da literatura em 1970, acabou por ser expulso do país, perdendo a nacionalidade.


Andrei Sakarov, físico e defensor dos direitos humanos, forçado a residência fixa, foi premiado com o Nobel da paz, em 1975, que foi proibido de receber, por razões políticas. 


Rudolf Nureyev, um dos mais aclamados bailarinos de sempre, pediu asilo no ocidente, em 1961, quando em turnê com o Kirov, em Paris, preferindo uma vida em liberdade à de conforto e glória na URSS, sendo julgado à revelia, condenado e só reabilitado em 1997, após a queda do muro de Berlim. 


Eisenstein, cineasta, foi asfixiado e dificultado na sua criatividade, cuja liberdade defendia.    


Outros, como Wassily Kandinsk e Marc Chagall, emigraram.


Em toda a Europa de Leste, e não só, restava ao cidadão comum e artistas descontentes a resignação, serem apolíticos. Se manifestassem um descontentamento aberto, havia a dissidência, com os inerentes riscos: perda de direitos cívicos e de cidadania, fixação de residência, internamento psiquiátrico, prisão, tortura, morte, exílio, retaliações, intimidações à família e amigos, extensivos a outros regimes comunistas, como em Cuba (Reinaldo Arenas, Guillermo Cabrera Infante, Jesús Díaz, Roberto San Martín, Herberto Padilha), China (escritora Ding Ling, Campanha das Cem Flores), Polónia (Adam Michnik), Hungria (George Konrad), Checoslováquia (Vaclav Habel, Milan Kundera, Jan Patocka), Roménia (Paul Goma). Mesmo depois de conhecido o relatório Krustchov, em 1958, sobre os crimes do estalinismo, como o Holodomor. 


É fácil ser-se comunista numa sociedade e num Estado onde haja liberdade de expressão e física, mas irrealizável ser-se livre numa sociedade e num Estado comunista.

 

25.06.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

VICTORIA CAMPS - CUIDADOS: UMA OBRIGAÇÃO DE TODOS (II)

 

“Debemos recuperar el valor del cuidado y construir entre todos una sociedad más humana y solidaria”


Se é certo que o ser humano sente necessidade de ter em conta a outra pessoa e o seu sofrimento, todavia, os hábitos sociais que temos vindo a aceitar nos últimos tempos foram criando raízes na ideia de que os cuidados são da responsabilidade das instituições e não do mundo emotivo de cada um, o que levou a um despreendimento da vontade de cuidar, mesmo que se não interponham razões de saúde da parte do cuidador, ou mesmo razões de emprego ou outras que nunca deveriam recusar a ternura do cuidar que, enfim, de muitos modos se pode expor.


Envelhecer e morrer em lares em vez de nos encontrarmos nos locais a que pertencemos uma vida, acontece sobretudo por termos permitido que os lares fossem os profissionais lugares para onde se devem dirigir os que perturbam a regularidade das vidas normais, tão normais que se esqueceram da luta por uma sociedade inclusiva dos mais idosos.


A desresponsabilização da comunidade face a esta situação perdeu a ética do cuidar já que esta passou a ser uma razão e nunca uma emoção.


Viver o sofrimento dos nossos próximos é entender a paz que lhes damos e a que receberemos a seu tempo.


A vulnerabilidade surge paralela ao perder da autonomia, e, se o nosso pensar, encarar com naturalidade as situações da vida que englobam a fragilidade e a vulnerabilidade, então, a interdependência que um dia surgirá poderá não ser tão dramática, antes uma consequência do entendimento do percorrer a vida, o que nos acontecerá e nos unirá.


Alerta-nos a catedrática em filosofia Victoria Camps, que se não recuperarmos o superior valor do cuidar e de sermos cuidados, também como uma virtude fundamental da vida, nem as instituições públicas alguma vez entenderão a base das instituições cuidadoras e o envolvimento das emoções de todos nós face a quem sofre, único modo de provocar o nascimento da empatia que reside no cuidado de viver o sofrimento dos demais.


Um dia será a nossa vez de ser cuidado e que esse dia seja já fruto da luta incansável por um novo contrato social.


Há que saber onde esteve o limite.

 

Teresa Bracinha Vieira

ABUSOS DE MENORES NO CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO

 

1. O Evangelho é duríssimo. Nele, diz-se: “Deixai vir a mim as criancinhas”, mas também se diz: “Ai de quem escandalizar uma criança! Era melhor atar-lhe uma mó de moinho ao pescoço e lançá-lo ao mar”. O que tem acontecido na Igreja quanto aos abusos de menores é pura e simplesmente execrável.


Em 2019, Francisco tomou uma iniciativa histórica, convocando uma Cimeira para o Vaticano, com 190 participantes, entre os quais 114 Presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo, bispos representando as Igrejas católicas orientais, alguns membros da Cúria, representantes dos superiores e das superioras gerais de ordens e congregações religiosas, alguns peritos e leigos. Os três dias estiveram sob o lema: “responsabilidade”, “prestação de contas”, “transparência”. O Papa quer — não se trata de mero desejo — implantar “tolerância zero”.


2. Para implantar essa “tolerância zero” e pôr fim a esta catástrofe na Igreja, publicou o Motu ProprioVos estis lux mundi” (Vós sois a luz do mundo), decretando medidas concretas contra a pedofilia na Igreja.


Estas normas contra os abusadores e os encobridores impõem-se, porque, escreveu Francisco, “o delito de abuso sexual ofende Nosso Senhor, causa danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e prejudica a comunidade dos fiéis.”


Os clérigos e religiosos ficaram obrigados (não se trata de mera obrigação moral, mas legal) a denunciar os abusos aos superiores, bem como a informá-los sobre as omissões e encobrimentos na sua gestão. Todas as Dioceses do mundo têm a obrigação de criar no prazo de um ano ou mais sistemas estáveis e de fácil acesso ao público, para que, com facilidade, todos possam apresentar informações sobre abusos sexuais cometidos por clérigos e religiosos e o seu encobrimento. O documento ratifica a obrigação de colaborar com a justiça civil dos países. Aliás, “estas normas aplicam-se sem prejuízo dos direitos e obrigações estabelecidos em cada lugar por leis do Estado, em particular as relativas a eventuais obrigações de informar as autoridades civis competentes”. Para lá do assédio e da violência contra menores (menos de 18 anos) e adultos vulneráveis, o texto inclui a violência sexual e o assédio que provêm do abuso de autoridade, bem como a posse de pornografia infantil e qualquer caso de violência contra as religiosas por parte de clérigos e ainda os casos de assédio a seminaristas ou noviços maiores de idade. Impõe a protecção dos denunciantes e das vítimas: quem denuncia abusos não pode ser objecto de represálias ou discriminação por ter informado; as vítimas e suas famílias serão tratadas com dignidade e respeito e devem receber a devida e adequada assistência espiritual, médica e psicológica; é preciso atender também ao problema das vítimas que no passado foram reduzidas ao silêncio. Estas normas aplicam-se à Igreja universal. Solicita-se vivamente a colaboração dos leigos, que podem ter capacidades e competências que os clérigos não dominam. Evidentemente, reafirma-se o princípio da presunção de inocência da pessoa acusada e o segredo da confissão deve manter-se como inviolável. Como escreve o Papa, “para que estes casos, em todas as suas formas, nunca mais aconteçam, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por acções concretas que envolvam todos os membros da Igreja.”


3. Francisco acaba de ir mais longe ao incorporar no Código de Direito Canónico a legislação contra os abusos sexuais de menores e adultos vulneráveis (“pessoas que habitualmente têm um uso imperfeito da razão”), agravando-a. No Código anterior, estes delitos apareciam no capítulo “Delitos contra as obrigações especiais dos clérigos”. Agora, passam para o capítulo “Delitos contra a vida, a dignidade e a liberdade da pessoa”. E trata-se de delitos cometidos não só por clérigos mas também por membros de institutos de vida consagrada e outros fiéis, nomeadamente leigos que ocupem determinadas funções na Igreja.


Há o endurecimento das penas, dilata-se o tempo da prescrição. O novo cânone 1398 dispõe que “seja punido com a privação do ofício e com outras penas justas, sem excluir, se o caso o requerer, a expulsão do estado clerical”, o clérigo  que “comete um delito contra o sexto mandamento do Decálogo com um menor ou com pessoa que habitualmente tem um uso imperfeito da razão ou a que o direito reconhece igual tutela.”


É igualmente punido quem “recrutar ou induzir um menor ou uma pessoa que habitualmente tem um uso imperfeito da razão para que se exponha pornograficamente ou para particpar em exibições pornográficas, tanto verdadeiras como simuladas” ou quem “imoralmnete adquire, conserva, exibe ou divulga, por qualquer forma ou através de qualquer instrumento, imagens pornográficas de menores ou de pessoas que habitualmente têm um uso imperfeito da razão.”


As alterações no Direito Penal da Igreja também prevêem novos delitos no domínio económico e financeiro. Assim, “penaliza-se os abusos de autoridade, a corrupção, tanto do corrupto como do corruptor, a má gestão do património eclesiástico”. Francisco ataca “o diabo que entra pelos bolsos”,  impondo “transparência” no domínio da gestão do património da Igreja.


4. Francisco refere a necessidade da prevenção. Quanto aos abusos de menores, penso que ela deve implicar também o fim do celibato obrigatório para os padres e o acesso das mulheres a todos os cargos da Igreja, sem discriminação.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 JUNHO 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR


O cinema reproduz a realidade e a arquitetura é a construção da realidade.


“Inversement, la nature nue est d’un maigre charme, si nous refusons d’y deviner la main d’un Architecte de l’univers.” (Rohmer 2010, 931)


No filme Le Celluloïde et Le Marbre (1965) o arquiteto e urbanista Georges Candilis afirma que o cinema tem a capacidade de reproduzir a realidade e a arquitetura tem a capacidade de construir essa realidade.


Na sua opinião, tanto o cinema quanto a arquitetura dizem respeito à vida e devem expressar o mesmo desejo de mudança. Para Candilis, o cinema consegue dar um enquadramento muito amplo e completo da realidade. E por vezes através do cinema é possível descobrir arquitetura mesmo em filmes que nada têm a ver com arquitetura. Para Candilis, a grande lição do cinema é a possibilidade de compreensão da totalidade da vida, que está dentro das casas e até por trás da arquitetura mais austera.


O cinema apresenta sempre dois pontos de vista muito precisos e úteis - o longe e o muito perto. Há vida em todo o lado. Através do cinema apercebemo-nos de que a arquitetura é o contrário de dureza e de rigidez. Principalmente a arquitetura moderna, porque está sempre em mudança e está sempre pronta a desaparecer - é mutante, é transitória e etérea. Porém Candilis não acredita na tábula rasa, que só leva à destruição porque o passado é constantemente necessário para que consigamos perceber o presente.


O cinema é um dos elementos da modernidade, já faz parte integrante da nossa vida. Responde às necessidades do ser humano moderno - fragmenta e desdobra a realidade quotidiana. O cinema aprofunda, completa, torna visível, multiplica, é a sombra e o desejo de uma outra vida. É uma maneira de ver o mundo de forma muito próxima e real. Tudo tem um significado está associado a sentimentos precisos. É por isso que, para Candilis, o cinema é uma arte que pertence a todos.


Ora, Claude Parent e Paul Virilio, também no filme Le Celluloïde et Le Marbre, acreditam que a arquitetura e o cinema têm em comum o movimento do espaço, a sucessão dos planos, o desejo de continuidade, o fascínio pela viagem, a vontade de concretizar percursos e a cronologia do tempo. Ambas dizem respeito à apreensão do espaço e à deslocação do utilizador e por isso lidam com o problema do espaço-tempo.


Na opinião de Virilio a arquitetura não diz só respeito ao objeto arquitetural mas sim e sobretudo diz respeito ao urbanismo e a um desejo de fluidez e continuidade no tempo e no espaço. E a cidade, tal como o cinema, tem a grande capacidade de tudo conter - a continuidade do passado no presente, a permeabilidade entre os diversos lugares, a junção de deslocações contraditórias, a procura pela evasão, o desejo de centralidade. Tanto a cidade como o cinema respondem a essa vontade de totalidade, a essa ânsia de escapar à incompletude.

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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   De 21 a 27 de junho de 2021

 

Daniel Innerarity acaba de dar à estampa entre nós Uma Teoria da Democracia Complexa – Governar no Século XXI (Ideias de Ler, 2021), onde equaciona as questões fundamentais respeitantes aos desafios da legitimidade democrática nos dias de hoje.

 

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DEMOCRACIA PARA TODAS AS ESTAÇÕES

A emergência inesperada da pandemia Covid-19 serviu para demonstrar como estavam enganados aqueles que entendiam que a democracia se limitaria a funcionar em épocas de prosperidade e estabilidade, devendo ser considerada incompatível com a incerteza, a complexidade e as crises. A evolução dos acontecimentos tem demonstrado que, ao contrário, o sistema mais apto a governar a complexidade é a legitimidade democrática – uma vez que assenta na diversidade e na imperfeição, considerando que a complexidade representa uma oportunidade de aprofundamento da cidadania e da governação democrática. Ao longo do desenvolvimento da crise pandémica fomos percebendo como as soluções simplistas e demagógicas tiveram consequências desastrosas na gestão de um problema tão inesperado, em que os próprios cientistas se defrontaram com dúvidas perturbadoras e em que os governos se depararam com um conjunto diversificado de fatores e soluções de consequências contraditórias. Os preconceitos, as soluções ideológicas, a recusa do método da tentativa e do erro, o dogmatismo e a sobranceria resultaram em efeitos dramáticos, com muitas vítimas, que só o método democrático pôde salvar, mercê da humildade de reconhecer que ninguém tinha solução, sendo necessário entender a governação dos povos como algo que tem de colocar a vida como prioridade, num mundo em que a informação, o conhecimento e a sabedoria têm de ser considerados. Daniel Innerarity, catedrático de Filosofia Política e Social na Universidade do País Basco, publicou em 2019 Uma Teoria da Democracia Complexa – Governar no Século XXI, imediatamente antes do início da crise pandémica, onde, com assinalável presciência, coloca-nos perante os problemas novos com que nos confrontámos a partir de 2020. A edição portuguesa acaba de ser dada à estampa pela “Ideias de Ler” (2021) e a sua leitura é indispensável, uma vez que aí se encontram as pistas essenciais ditadas pela nova emergência. De facto, o que estamos a sofrer com a pandemia corresponde a uma situação com que as democracias se vão confrontar, não só pela continuidade das situações epidémicas, relacionadas ou não com esta crise, mas também em virtude das novas situações ligadas à situação ecológica e ambiental e aos seus efeitos. De facto, para Innenarity, a complexidade pode ser um fator de democratização, uma vez que a transformação da democracia vai depender da capacidade de introduzir no processo de formação da vontade política ideias, experiências, perspetivas e inovações descentralizadas, nas quais os procedimentos hierárquicos se revelam insuficientes ou desadequados. E veja-se o que ocorre agora quanto aos desconfinamentos descentralizados e diferenciados, de modo a obter maior eficiência do combate à pandemia. Com efeito, a democracia deve ser entendida como o regime da complexidade, cultivando a discordância, protegendo a diversidade e a heterogeneidade e privilegiando a gestão da complexidade em lugar da sua repressão. De facto, só a democracia está apta a lidar com a crescente complexidade e incerteza das sociedades globais de conhecimento. “Mais democracia significa mais complexidade, e mais complexidade significa mais democracia” (Czerwick). Eis por que razão o método correto é o de considerar as deficiências do sistema corrigindo-as permanentemente, de modo que a democracia não seja insuficientemente representativa. A tentação de dar saltos no escuro com mecanismos diretos não testados e sujeitos ao espontaneísmo revela-se perigosa e negativa. E assim o futuro da democracia depende da capacidade que esta tiver de interligar a diversidade e a incerteza com o desenvolvimento de formas de gestão menos dependentes da exclusiva dimensão nacional, uma vez que os novos riscos e desafios têm a ver com a difícil complementaridade entre o local e o global. O Estado-nação não perdeu importância, mas deixou de ser o alfa e o ómega da vida política, devendo ser mediador entre os diferentes níveis de decisão - considerando a interdependência e a policentralidade, tornando-se garante ou cooperativo, transitando da hierarquia para a heterarquia, da heteronomia para a autonomia, do controlo unilateral para a compreensão do contexto plural… A subsidiariedade tanto considera a proximidade local como as soluções supranacionais, em domínios para os quais as soluções ultrapassam as fronteiras. Urge compreender que a obtenção de resultados pela democracia (ter menos mortes e internamentos, na pandemia, por exemplo) é tão essencial como fazer com que os cidadãos se sintam envolvidos e representados na vida cívica e comunitária.

 

OUTRO MODO DE PENSAR…

A modernidade legou-nos a ideia de prevalência da ciência mecânica, por contraponto ao meio natural, mas “as transformações da ciência contemporânea convidam-nos a considerar a possibilidade de outro modo de pensar a vida social e o seu governo, menos mecanicista, com base no modelo da complexidade biológica”. Em lugar do determinismo ou das projeções lineares, de que a ciência económica se vai libertando, importa considerar as relações e interações. Como acontece na biologia evolutiva ou na neurologia, não basta entendermos as componentes, se não estudarmos como interagem entre si. Por outro lado, importa não esquecer a causalidade circular: por exemplo, se tentamos diminuir a dívida pública com austeridade, reduzimos a atividade económica e o consumo, obtendo resultados contrários aos pretendidos no tocante ao crescimento económico e aos impostos… Daí a necessidade de uma atitude equilibrada sóbria e sustentável. Edgar Morin salienta a importância da noção de metamorfose em lugar da mera transformação. Os sistemas ecológicos tendem a apresentar “desequilíbrios estáveis” ou “harmonias discordantes” – e Ulrich Beck insistia na ideia de “modernidade reflexiva”, por contraponto a uma natureza vista como radicalmente exterior, ignorando as consequências do desenvolvimento tecnológico. A construção de uma vontade geral e a defesa do interesse comum exigem compromisso entre diferentes atores, instituições, culturas e valores. Longe da exclusão do diferente ou da mera lógica amigo/inimigo, importa considerar a administração da heterogeneidade. Daí a exigência de vários poderes, de freios e contrapesos, da mediação de corpos intermédios (Montesquieu), de uma poliarquia (Robert Dahl e Schumpeter) enquanto pluralidade de grupos que competem eleitoralmente, no contexto de uma “indeterminação final quanto ao fundamento do poder, da lei e do saber” (Claude Lefort). Assim, se uma maioria toma decisões, o certo é que a democracia impede que estas impliquem uma imposição sobre as minorias. Eis por que razão a legitimidade do voto tem de ser completada pela legitimidade do exercício, obrigando que as medidas de longo prazo devam ser consensualizadas com as minorias ou envolver maiorias qualificadas, para impedir que as alternâncias eleitorais ponham em causa as medidas duráveis. Só a democracia apresenta virtualidades que não podemos menosprezar…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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