VIRTUDE E VIRTUDES
1. Não me parece que a virtude tenha hoje grande cotação. O que actualmente parece ser mais valorizado tem a ver com o ter, o prazer e o poder, a qualquer preço. Daí que, quando se está minimamente atento, se veja o que se vê — apenas exemplos: a calamidade da corrupção; o estado da Justiça; bancos a afundar-se e os contribuintes a pagar; por mais apoios que cheguem da Europa, milhões, mais milhões, mais milhares de milhões, parece que caem num abismo sem fundo e o que é facto é que continuamos sempre na cauda (onde estão a organização e o investimento inteligente?); a irresponsabilidade pelos erros cometidos: alguém conhece alguém que se assuma como responsável (capaz de responder, que é isso que quer dizer responsável) por um erro ou mesmo um crime?...
Degraçadamente, a virtude ou uma pessoa virtuosa, de virtudes, parecem hoje associadas a beatice e menoridade. Mas isso não é de modo nenhum correcto, mesmo de um ponto de vista meramente etimológico. De facto, virtude — do latim vir, virtute —, é, como pode ler-se no Dicionário de Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, “o conjunto das qualidades que dão valor ao Homem, moral e fisicamente; carácter distinto do Homem, mérito essencial, valor característico, virtude, qualidades morais; qualidades viris, vigor moral, energia, coragem, valentia; a virtude, a perfeição moral.”
Virtude é uma força ou energia que actuam, potência activa, capacidade ou poder de agir. Mas, entenda-se, para evitar equívocos: esse poder é um poder específico, isto é, a qualidade própria de um ser: por exemplo, se o bom remédio é aquele que cura bem, bom veneno é aquele que mata bem. Através do exemplo do veneno, percebe-se que, como explica o filósofo André Comte-Sponville no seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, uma obra com assinalável êxito editorial, inclusivamente na tradução portuguesa, virtude é poder, e o poder basta à virtude: pedimos a alguém que nos desculpe pela nossa ausência, pois, em virtude de uma doença, não pudemos comparecer, e também é claro que uma faca excelente, nas mãos de uma pessoa má, continua excelente; mas não faz excelente a pessoa nem a moral. Porquê? A virtude de uma pessoa é o que a realiza humanamente, é o poder que afirma a sua qualidade própria, isto é, a sua humanidade, como dizia Montaigne: “Nada existe de tão belo e legítimo como ser Homem bem e devidamente”. A virtude é a capacidade para agir segundo a exigência de humanidade: “é o que também chamamos as virtudes morais, pelas quais uma pessoa parece mais humana ou dotada de mais qualidades”, a ponto de, sem elas, ser qualificada de inumana. Numa palavra, praticar a virtude é estar de acordo com a humanidade em nós e dignificá-la.
No sentido mais estrito, as virtudes são as potências activas propriamente humanas, que precisam de ser exercitadas para se tornarem um hábito operacional que as capacite para a acção recta e perfeita, ajustada às exigências mais profundas da natureza humana e tornando o Homem bom pura e simplesmente. As virtudes enquanto inclinação adquirida para o bem ou hábitos operativos bons formam como que uma segunda natureza no Homem, e vão ao encontro da definiçãio clássica proposta por Aristóteles: “Virtude é aquilo que torna bom aquele que a possui e torna boas as suas obras”.
Remando contra a corrente — repito: quem é que se atreve hoje a falar da virtude e em virtudes? —, A. Comte-Sponville viaja por dezoito virtudes: a polidez, a fidelidadade, a prudência, a temperança, a coragem, a justiça, a generosidade, a compaixão, a misericórdia, a gratidão, a humildade, a simplicidade, a tolerância, a pureza, a doçura, a boa-fé, o humor, o amor. Ah, que falta fazem elas todas! Como espinosista consequente, A. Comte-Sponville não fala da esperança — não dizia Espinosa que a esperança, por ser carência (ainda não se tem o que se espera), é inquietação, ignorância e impotência?
O cume da virtude é o amor, porque aí se manifesta a força máxima da alegria de ser e do ser. Claro que, se se ficasse no eros, não se superaria o perigo da armadilha permanente e consequente tristeza que reside na identificação de sexo e amor — por isso, a castidade também é uma virtude, na medida em que o abuso da sexualidade é condenável. Há eros, mas há também a philia (amizade), que se define por três substantivos: benevolência, beneficência e, sobretudo, confidência, e agapê (o amor para lá do eros e da philia, amor universal e desinteressado, que ama os próprios inimigos). Deus é Amor, pois é a identidade da Vontade infinita e do Bem infinito. Que alegria maior para o Homem do que estar de acordo com o ser, querer que exista tudo quanto existe, regozijar-se com a existência de tudo quanto é, fruir a sua bondade? Não constitui uma bênção ouvir alguém dizer: “Sou feliz porque existes, é bom que existas”? O que seria a minha vida sem ti? Em última análise, a fé cristã em Deus baseia-se na experiência de que, em última análise, é Ele que justifica a nossa existência: valemos para Ele, Ele reconhece-nos, dá-nos valor.
Que outra coisa é o amor senão esta bênção, esta alegria? Embora exigentes, a virtude e as virtudes não são um fardo e um constrangimento. Pelo contrário, quando se pensa adequadamente, vê-se claramente que são qualidades, valores morais vividos e encarnados, cujo fruto é a alegria, o contrário da tristeza. Como escreveu Espinosa, a virtude só pode ser força de espírito e, assim, sempre alegre!
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 26 JUNHO 2021