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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:


   Dizes-me que tens estranhado o meu silêncio, melhor dirias o apagão da minha escrita... Ando apagado, sim, porque me estranho. Quiçá a mudança de habitação, a troca de um meio urbano pelo sossego isolado do campo, envolto em silêncio, me tenha disposto a ensimesmar-me. E nesta minha idade, qualquer encontro a sós comigo, fatalmente me remete para a proximidade desse muro que só transporemos como fantasmas atravessam paredes. Talvez também por não me sentir saudoso, ainda que habitado por muitas lembranças, sobretudo agora, quando o abrir de tantas caixas me confronta com o destino atual de muitas coisas passadas. Calhou-me abrir e reler um opúsculo do José Ortega e Gasset, escrito em 1943, creio que no Estoril, esboço de uma hipótese sobre a saudade, mito e segredo lusitano. Cito-te um trecho que se atém ao que te venho dizendo: Las circunstancias del mundo me han traído aquí y las razones por las que aquí estoy me aconsejan la vida retirada. Mas aunque nada de esto fuese, causas personales me impedirían ya de entrar en la intimidad de Portugal.  Ésta solo puede ser vista desde dentro de ella, como la fisiognomía es visión desde fuera. Y "entrar" en un pueblo es lisa y llanamente no solo estar en sus calles sino vivir en él, ser en él. Ahora bien, es aquí donde he empezado a sentir que soy viejo y ser viejo es para el hombre la manera normal de ir dejando de ser, de vivir. A cierta edad el hombre se va volviendo "ausente" allí mismo donde está,se va alejando de las cosas y éstas comienzan a non serle. Es la iniciación de un proceso que termina en el "espectro", idea ésta muy profunda que los primitivos tenían del muerto. La muerte que ellos no concebían (por supuesto, nosotros tampoco) se les representaba como una pervivencia en nueva forma. Los muertos siguen viviendo una "vida espectral". 


  
Ortega y Gasset, o mesmo que dizia que a filosofia é a forma que toma a juventude ao florescer e amadurecer no homem velho, escreve no tal esboço de ensaio que te lembro: La Saudade no es un tema portugués, sino el tema portugués por excelência. Si algún otro pude situar-se a su vera es, acaso, la "Descoberta". Ambos polarizan la realidade histórica que es Portugal. Y resulta que son una contraposición: la "Descoberta" es el ansia de irse, la "Saudade" el ansia de volver. La ex-patriación (una vez) y la re-patriación permanente: antes e después de la Descoberta. Portugal es el "hijo pródigo" de si mismo. Qué es en él lo más autentico, el irse o el volver? Aquéllo lo hizo una vez: esto lo há hecho y lo está haciendo siempre. Cada dia, cada hora, el português vuelve a si.


  
Aqui tens, Princesa, como entre eu e mim me sinto agora. Sabendo ainda que tudo o que disse, diga ou hoje possa dizer, outros já disseram ou dirão melhor. Neste momento, sobretudo pensossinto que uma súbita mudança das referências do meu quotidiano - do próprio quadro físico da minha vida - logo me tornou, sozinho, na alcançável (?) referência de mim. Em novos ares, só em mim poderei reconhecer-me, procuro encontrar-me não com o que fui, mas com um ser familiar e simultaneamente estranho, e nesse sentido sou o filho pródigo de mim.


   Quiçá tal seja uma conversão, sou como Saulo derrubado, que se levanta e já é Paulo. Ou como Mateus, no quadro do Caravaggio, que Cristo aponta e um raio de luz toca no peito, Mateus que leva a mão ao próprio coração que se pergunta: Eu, Senhor? Assim este Advento me vem trazendo outro Natal: sempre me fascinou no cristianismo essa nova de Deus ter tornado humana a sua transcendência. O Mistério da Encarnação é, desse modo, a contemplação de uma incógnita: qual é a relação ontológica de Deus com o homem, o mundo, a história? Por este Natal de 2016, ocorre-me um caudal largo e sereno de questões que, no decurso da minha vida, sempre vieram bater a uma qualquer porta bem dentro de mim: onde está Deus? poderei encontra-lo? E, ao longo dos anos, vou sentindo e pensando que cresce em mim essa torrente invisível do meu renascimento no perpétuo Natal do cosmos.


   Por isso mesmo sempre digo e desejo FELIZ NATAL! - seja feliz o vir à luz do nosso livramento. O Reino de Deus começa por uma criança que nunca envelhece. Repito: desejo-te - a ti e a todos os que lerem esta carta - a continuação de um Feliz Natal!

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 18.12.2016 neste blogue.