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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

Reiniciaremos a 1 de agosto o folhetim de Verão que intitulámos este ano de 2021 “Mais 30 Boas Razões para Portugal”. Já tínhamos verificado que havia muito mais do que 30 boas razões para um Amor Português. Mesmo assim já conseguimos reunir algumas razões evidentes, que agora serão completadas. Falámos de episódios históricos, agora referiremos também exemplos do património imaterial. E recordamos o que dissemos há um ano: “o leitor dileto perguntará se só vemos boas razões. Não. Mas o motivo fundamental deste folhetim são as razões que nos levam a ter saudades de Portugal quando estamos longe, e a procurarmos o que nos liga a uma identidade tão especial, que morre e estiola quando se fecha e que tem tanto a ver com a abertura e o cosmopolitismo. E a língua que falamos expandiu-se mundo afora. De facto, temos mil defeitos, cultivamos o escárnio e o maldizer, temos a tendência para a boa anedota e o picaresco, mas temos características que conhecer, para podermos ser melhores”. 


Olhemos a nossa criação popular. Lembremo-nos de canções como a da “linda falua que lá vem lá vem” ou a do “jardim celeste”. E no próximo capítulo falaremos da “Nau Catrineta”, que é um verdadeiro romance de encontro entre Deus e o Diabo, entre o lirismo e a tragédia… A costa ocidental portuguesa é uma razão fundamental para a nossa longa independência e liga-nos profundamente ao mar. E assim vivemos a coexistência entre o perigo e a beleza. O mar encerra a estabilidade e a instabilidade, a incerteza e o infinito, a matéria e o espírito. Isso mesmo nos separou de Leão e Castela. A Senhora do Almortão olha para o mar, porque essa orientação é natural, e não há ressentimento. O horizonte marítimo onde a terra se acaba e o mar começa revela-nos o nosso maior segredo – de que D. Fuas Roupinho, primeiro Almirante dos Mares, é símbolo no limite da terra e no começo dos oceanos. “Senhor barqueiro deixe-me passar, tenho filhos pequeninos, não os posso sustentar”… É a grande metáfora do juízo final que aqui se representa, pondo a vida passageira em contacto com a eternidade. 


E lemos igualmente o Auto das Barcas de Gil Vicente, versão popular da grande viagem de Dante com Virgílio e Beatriz. Compreendemos a imperfeição e, por isso, Miguel de Unamuno admirava-se pelo culto lusitano das almas do Purgatório. No fundo, é a imperfeição que está em causa e a necessidade de caminharmos no sentido de podermos ser melhores… Recorde-se o Jardim Celeste (e não da Celeste, como por vezes se ouve erradamente). O que está em causa é o caminho difícil do Paraíso. E que nos diz a cantilena? “O que foste lá fazer, giroflé, giroflá”.  Fui colher uma flor, e a lista é interminável, para que as identifiquemos, às flores que animam a primavera. Contudo, o essencial não é essa lista pedagógica, mas o ato generoso de procurar alguém, em nome do dom da amizade. É a viagem antecipada ao paraíso celeste que aí se invoca. O Jardim Celeste é, no fundo, a última parte da “Divina Comédia” em dança de roda.   E volto ao texto de há um ano: “Somos um país de nove séculos porque persistimos e não pelo que desistimos. Mas não somos um povo eleito, apesar de termos razões para nos gostarmos. Não somos nem melhores nem piores que outros. Temos muito para fazer, para construir. Veja-se, quando encontramos, em toda a parte, um português, viajante do mundo. E percebemos logo que tem a ver connosco, mesmo que seja muito diferente de nós”. 


Num mundo global, as identidades nacionais ou específicas constituem fatores de coesão e de confiança e não elementos de fechamento ou de autossuficiência. O patriotismo prospetivo nada tem de saudosismo ou de ilusão glorificadora. A valorização das diferenças tem de corresponder, assim, a um enriquecimento mútuo o que permite afirmar que só as especificidades partilhadas poderão reverter em favor de todos. A noção de “capital social” corresponde, aliás, a este entendimento, considerando os fatores culturais diferenciadores como elementos cruciais de enriquecimento do desenvolvimento humano. Em notas diárias de cerca de 2 mil caracteres procuraremos pôr a ênfase na necessidade de partir de uma melhor compreensão do que somos para responder aos complexos desafios perante os quais nos encontramos.

GOM

EVOCAÇÃO DE UM AUTO HÁ 620 ANOS

 

Seja-nos permitida esta breve evocação de um auto realizado no Mosteiro da Batalha há exatos 620 anos, para assinalar a sagração do Mosteiro. Tal como referi na “História do Teatro Português” está-se a um século do “Auto da Visitação” de Gil Vicente, considerado iniciático na História do nosso Teatro.


Mas interessa então evocar o que Alexandre Herculano escreveu nas “Lendas e Narrativas” acerca desse espetáculo realizado no Mosteiro em 1401:


«Pela porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.


Estas primeiras figuras eram seis formando uma espécie de prólogo ao auto. Três que vinham adiante representavam a Fé, a esperança e a Caridade; após elas vinham a Idolatria, o Diabo e a Soberba, todas com as suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enleava os olhos da grande multidão dos espetadores era o Diabo, vestido de pele de cabra, com um rabo que se arrastava pelo tablado e seu forcado na mão, mui vistoso e bem posto.


Feitas as vénias a El-Rei, a Idolatria começou o seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o género humano, ao que a Fé acudia com dizer que ao início estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia acabar e que ela Fé não era culpada de ter chegado tão asinha esse dia.


Então o Diabo vinha, lamentando-se de que a Esperança começasse a entrar no coração dos homens que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e, com isto, carateava, com tais momos e trejeitos, que o povo ria e rebentava o mais devotamente que era possível».


 Assim mesmo!...


Ora bem: apraz-nos agora citar a projeção que Teófilo Braga faz do que denomina “Escola de Gil Vicente” e que agrupa em continuidades ligadas a uma expressão geográfica-cultural. Agrupa os dramaturgos também de acordo com afinidades geográfico-culturais. E nesse aspeto, tal como já referimos, as afinidades geográficas dos dramaturgos da época refletem a origem cultural subjacente.


Assim, a partir do que tradicionalmente se qualifica como a “Escola de Gil Vicente”, expressão usada por Teófilo Braga, teríamos uma ligação clara às origens geográficas: Escola de Gil Vicente em Évora com Afonso Álvares e António Ribeiro Chiado, em Lisboa com Baltasar Dias, Camões, Gil Vicente de Almeida, Jorge Pinto, Henrique Soares e Jerónimo Ribeiro, Santarém Coimbra com António Prestes, Simão Machado e Baltasar Estaço: e esta tradição cultural estende-se pelo menos até ao Brasil…


A verdade é que a chamada Escola Vicentina em rigor chega aos nossos dias!...Podemos acrescentar, a esse respeito, a tradição de um “estilo vicentino” que, repita-se, em rigor chega aos nossos dias!...

 

DUARTE IVO CRUZ