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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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  EPÍLOGO

 

E eis-nos chegados ao epílogo deste nosso Folhetim de Verão, de 2021. A última imagem que deixamos é a da cerimónia de inauguração, da primeira linha de caminho de ferro portuguesa, entre Lisboa e o Carregado, reinava Sua Majestade o Rei D. Pedro V de saudosíssima memória. É uma referência simbólica, que recorda um tema que ciclicamente se torna atual. O desenho é de Bernardo Marques e pretende apenas dizer que as trinta boas razões que encontrámos adicionalmente às de há um ano para gostarmos de Portugal pressupõem uma ligação permantente entre o passado que recebemos e o futuro que preparamos.

E lembrei-me neste cenário de um saudoso amigo queiroziano dos quatro costados que um dia me fez entrar numa narrativa meio policial, que se iniciava num almoço nas imediações do Passeio Público e numa minha descoberta, para mal dos meus pecados, do fantasma de Carlos Fradique Mendes, que, para surpresa de muitos, continuava vivo a deambular pela cidade. O resultado foi incómodo. Descobri-o, e ele não me perdoou e jurou vingança. Essa sanha foi, porém, passando com o tempo, e a verdade é que o redescobri, há dias, de novo nas imediações do Salitre, junto da estátua romântica da morgadinha de Valflor, sempre igual a si mesmo – um verdadeiro dandy, com a sua cultura flamante de sempre.

Se há um ano encerrei a prosa do folhetim com o inefável Oliveira da Figueira, que nos irá visitar em breve, vindo do universo de Hergé e do Tintin, hoje fecho portas com esta derradeira conversa com Fradique.

De que falámos? Recordámos o amigo comum Zé Fernandes e, com ele, a revelação do poeta sublime nas páginas da “Revolução de Setembro”, afilhado de Antero e Jaime Batalha Reis. Depois fomos até ao capítulo XXX de O Mistério da Estrada de Sintra, de Eça e da Ramalhal figura, publicado em folhetins no “Diário de Notícias”: “sentado no sofá com um abandono asiático”, “verdadeiramente original e superior”, “um excêntrico, distinto”, de “caráter impecável”, “originalidade violenta, quase cruel”, “amigo de Baudelaire” – que “tocava admiravelmente violoncelo, era um notável jogador de wist, tinha viajado no Oriente, estivera na Meca e contava que fora corsário grego”…

Mas então queixou-se-me. De quem? Do nosso José Maria Eça de Queiroz, do próprio, por este se ter apoderado da sua figura. O certo é deixou de ser um mero símbolo, algo marginal na obra de uma geração, tornando-se marca da sua própria identidade. E assim deixou o anonimato e tornou-se uma figura central, base de um verdadeiro romance epistolar – ao lado de Amaro, Basílio, Carlos da Maia, João da Ega, Jacinto, Zé Fernandes ou Gonçalo Mendes Ramires. E confessou-me que a celebridade o perturba. Em bom rigor, é uma personagem multifacetada, capaz de gerar fascinação e de se constituir em voz de um tempo singularíssimo, mas preferiria manter-se na sombra. Então reli-lhe o que José Maria escreveu. “A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa – justamente na semana em que ele regressara da África Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admirável datava de Lisboa, do ano remoto de 1867. Foi no Verão desse ano, numa tarde, no Café Martinho, que encontrei num número já amarrotado da ‘Revolução de Setembro’, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam”… Os versos significavam uma definição nova, muito mais do que um estilo inolvidável. Este estava representado pela própria personagem, que se tornou símbolo de uma geração, de uma obra, de uma força crítica. Carlos pertencia a uma velha e rica família dos Açores. Descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes. E surpreendeu-se que eu soubesse um conjunto de pormenores sobre tal figura recôndita. Julgo ter sido esse o ponto que permitiu voltarmos à paz na nossa relação tempestuosa…

“Com o ímpeto de ave solta”, viajou por todo o mundo, “a todos os sopros do vento, desde Chicago até Jerusalém, desde a Islândia até ao Sara. Nestas jornadas sempre empreendidas por uma solicitação da inteligência ou por ânsia de emoções, achara-se envolvido em feitos históricos e tratara altas personalidades do século”. A geografia era o seu domínio preferido para continuar uma conversa. E a sua qualidade única de ser longevo e ubíquo levavam-no a falar-me com numa ciência exata nos grandes mistérios contemporâneos da Síria, do Líbano ou do Afeganistão. Tudo se explicaria pela cegueira e pela ganância. Os factos contemporâneos tinham explicações claras, que ele conhecia perfeitamente…

Mas antes de nos separarmos neste último encontro em que ele desejou mesmo desvanecer-se sem que eu pudesse voltar a vislumbrá-lo citou-me o meu velho e saudoso amigo Zé Fernandes: “É curioso que o José Maria, com a sua perspicácia crítica, nunca tenha posto suficientemente em relevo esse meu lado negativo como ser social, suficiente também para diminuir, se não para ofuscar de todo a valia dos meus supostos talentos”… (José Pedro Fernandes, Autobiografia de Carlos Fradique Mendes, Editorial Notícias, 2002). E não perdoou a Ramalho Ortigão o excesso: “Fradique marcha cinco léguas sem parar, bate ao remo os melhores remadores de Oxford, mete-se sozinho no deserto a caçar o tigre, arremete com um chicote na mão contra um troço de lanças abissínios”. Puro exagero! Puro exagero! E nisto, não sei por que fas ou porque nefas, Carlos desvaneceu-se subitamente. Com se tivesse voado ou tivesse feito um genial número de prestidigitação… Desconfio que não voltarei a reencontrá-lo. Sei o seu segredo essencial, mas não sei onde se esconde verdadeiramente. Mas ao menos ficámos em paz… E fui Avenida abaixo, qual Borda d’Água sem companheiro. Chegado ao fim Agosto, é tempo de eu voar com o ímpeto da ave solta.

GOM

 

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MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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  (XXX) MANOEL DE OLIVEIRA, INESQUECÍVEL

 

Quase a acabar o nosso folhetim, vamos ao Porto e encontramos Manoel de Oliveira (1908-2015), e terminamos na Arrábida, sempre a Arrábida… A começar, um delicioso relato feito pelo jovem poeta Carlos Queirós de uma conversa com o grande Luigi Pirandello, numa viagem de táxi entre os Restauradores e o Hotel Palácio do Estoril. O Mestre estava fatigado e escusara-se a ir a Alfama a uma festa popular organizada por António Ferro. Tinham acabado de ver a exibição do documentário «Douro Faina Fluvial» do jovem Manoel de Oliveira. Carlos Queirós conta o ocorrido: «Durante a exibição do filme – que o crítico francês Vuillermoz declarou ter sido, como realização, a estreia mais auspiciosa que tinha visto. Contudo, alguns espectadores ameaçaram patear. Pirandello, inclinando-se para trás, perguntou a um dos portugueses que o acompanhavam no camarote: “Porque estão a bater com os pés? – Porque não gostam. – Mas o filme é muito bom! – É verdade, mas não gostam… E Pirandello, com ar de quem acaba de reconhecer uma classe (talvez a lembrar-se do que aconteceu a algumas das suas melhores peças): – Ah! São os idiotas!…». E, entre dentes: de facto, confundem os pés com as mãos… Estava tudo dito. Sabemos que Oliveira estava suficientemente seguro de si, inspirado por Walter Ruttmann, e agora contava com o veredicto absoluto de Pirandello. José Régio disse, aliás, de «Douro», na «Presença»: «Realizado num mínimo de condições favoráveis, é, além duma surpresa e duma audácia, um milagre de apaixonada persistência» e Adolfo Casais Monteiro foi perentório: o filme «inaugurava em Portugal uma nova época».

De facto, um grande autor anunciava-se. Não falaremos hoje de tantas obras que nos encantaram, como “Aniki-Bobó” até “Amor de Perdição” (que o tempo apenas valorizou) ou “Palavra e Utopia”. Falaremos apenas de “O Convento” (1995), baseado na novela de Agustina “As Terras do Risco”. O romance decorre na Arrábida, onde há muitos séculos o homem conhece a confrontação com a sua própria obscuridade, dando-lhe às vezes o nome de Deus, outras de rei ou de poderes telúricos, terramotos e tempestades. A trama desenrola-se no misterioso convento, isolado na serra da Arrábida. Michel Padovic, investigador americano (John Malkovich) está apaixonado pela busca de uma pista histórica inédita e procura indícios de que William Shakespeare era um Judeu espanhol, descendente de gente expulsa da Península Ibérica, que teria partido para Florença e daí para Inglaterra. Acompanhado pela mulher, Helène (Catherine Deneuve), Michel trabalha na Arrábida. E deparamos com a releitura do mito universal de “Fausto” – entre Shakespeare e Goethe. Alguém vende a alma ao demónio em troca do conhecimento. E Manoel de Oliveira trabalha o mito, demonstrando que Fausto existe em todo o tempo. Mas é por Hélène que se interessa o guardião do local, a figura algo sinistra de Baltar (Luís Miguel Cintra), que vive com Piedade (Leonor Silveira). Há vários tempos sobrepostos: o presente, a Idade Média e a Antiguidade clássica, já que Hélène se transfigura em Helena de Troia.

João Bénard da Costa está  muito ligado a este filme. Conhecia a serra como ninguém. Manoel de Oliveira pediu-lhe ajuda para fazer um levantamento das histórias da Arrábida. “Numa das cenas, eu devia contar (disse João) à Catherine Deneuve a história do Convento Velho, que eu contei tantas vezes a tanta gente ao longo da minha vida. Lembro-me perfeitamente de ter pensado, naquele momento, que sentia estar a viver um sonho. Um ano antes, naquele mesmo sítio onde vou tantas vezes, até poderia ter imaginado esta cena, rido com ela e pensado que ela era um sonho. Mas não. Estava ali, com a Catherine Deneuve, a contar uma história da Arrábida. (…) A verdade é que tenho vivido coisas que nunca pensei viver, que parecem fazer parte da dimensão do sonho, da dimensão do cinema. Nesse sentido, sou um homem privilegiado”. De facto, todo o carácter mágico que rodeia “O Convento” estava bem patente nos vários planos apresentados. Agustina, por sugestão do seu amigo, começa a escrever “Pedra de Toque”, sobre um dos lugares mais mágicos de Portugal. No entanto, demorou-se na escrita, mais do que o realizador necessitaria. Então este falou a Agustina para que ela resumisse o enredo. Assim foi, e Oliveira elaborou um guião próprio, dando início à concretização do filme. E apresentou o filme como “inspirado na ideia original de Agustina Bessa-Luís”. Resultado? Agustina não gostou. Recusou-se a ver o filme e qualificou o episódio como “desencontro total” e “colaboração falhada”. A zanga foi séria, mas o tempo aplainaria esse acidentado episódio. Agustina seguira uma via algo diferente da de Oliveira. Teria preferido a obsessão do investigador tão concentrado no seu estudo, correndo o risco de se confundir com ele. Pelo contrário o cineasta optara por enfatizar a história dos ciúmes entre duas mulheres. E, como bem sabemos, Agustina sempre repetiu que “o Manoel de Oliveira filma filmes de amor, e o amor não entra nos meus romances”. A verdade é que não podia ser durável a zanga, por várias razões – de facto o que houve com “Pedra de Toque”, que depois se tornou “Terras do Risco”, por maior fidelidade à Arrábida, que passou à tela como “O Convento”, foi um mero equívoco, gerado pela pressa de Oliveira e pela falta de um real acerto de ideias quanto ao projeto. Quando vemos o filme, percebemos que poderia ter sido ela a principal responsável pelas ideias, com mais ou menos ciúmes e desencontros. Talvez tenha existido no cineasta um excesso de confiança no exercício de seguir o que a autora teria feito. Passada a tempestade, no ano seguinte, Oliveira voltou a lançar a Agustina o desafio para escrever sobre mulheres e homens, num cenário em que dois casais, um mais novo e outro mais velho, se encontram nos Açores. E assim o filme “Party” (1996) vai marcar uma rápida reconciliação – sendo curiosa a forma como Agustina vai aos Açores para conhecer pessoalmente Michel Piccoli e Irene Papas, que contracenam com Rogério Samora e Leonor Silveira. Surpreendida, a escritora depara-se com a filmagem de uma garden party em plena tempestade – com chuva, neblina e vento forte… E Agustina concluiria que a nova colaboração cinematográfica foi interessante.

GOM

 

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 30 de agosto a 5 de setembro de 2021

 

“A Intimidade de Um Intelectual Indomável” é o subtítulo da Fotobiografia de António José Saraiva, da autoria de António Manuel P. Saraiva, José António Saraiva e Pedro António P. Saraiva (Gradiva, 2021).

 

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A MARCA DO INCONFORMISMO

O percurso de um dos intelectuais mais importantes da segunda metade do século XX português constitui excelente oportunidade para conhecermos um pensamento complexo, cuja coerência significa uma permanente busca de razões de ser para a história portuguesa, com recusa de conclusões adquiridas. O inconformismo é uma marca indelével que, longe de significar hesitação, representa a clara compreensão de que os factos históricos não têm explicações unívocas, resultando sempre de uma confluência de fatores contraditórios e heterogéneos. Deste modo, percebemos que o caminho de António José Saraiva é de permanente exigência, com aproximações e distanciamentos relativamente a autores e explicações, em resultado de um sentido crítico apurado, essência do fenómeno cultural e da sua compreensão. Ser “intelectual indomável” significa, assim, colocar o pensamento como bussola para uma caminhada capaz de conciliar a liberdade de espírito e o rigor na análise dos acontecimentos. E o irmão, José Hermano Saraiva, revela-nos uma explicação: “a ideia que ele escreveu na minha fita de formatura: quando tiveres encontrado enfim uma verdade, rasga-a e procura outra verdade melhor”. Ao seguirmos a obra de António José Saraiva, encontramos na dissertação de licenciatura o tema da poesia de Bernardim Ribeiro (1938) e no doutoramento em Filologia Românica a referência a Gil Vicente e ao fim do teatro medieval (1942) e em ambos encontramos a originalidade e a relevância das considerações do jovem investigador, em temas cruciais na afirmação da cultura portuguesa. No Liceu Gil Vicente fora aluno de Fidelino de Figueiredo e em 1940 travara conhecimento com Óscar Lopes, seu companheiro na empresa referencial da “História da Literatura Portuguesa”, a partir de 1949 – “vademécum” de muitas gerações na compreensão da nossa identidade literária. Quando hoje lemos textos de 1946 como “As Ideias de Eça de Queirós” ou “Para a História da Cultura Portugal” notamos já uma evidente maturidade, que prossegue não só em “A Escola, Problema Central da Nação”, mas igualmente em “A Evolução do Teatro de Garrett”, em “A Obra de Júlio Dinis e a sua Época” e sobretudo no fundamental “Herculano e o Liberalismo em Portugal – Os Problemas morais e culturais da instauração do regime”. Seguir a produção intelectual do jovem professor é, desta forma, extremamente atraente, uma vez que, apesar das referências ideológicas, nunca perdemos o extremo rigor no lidar com os acontecimentos e a consideração de uma rica dialética crítica, que recusa as explicações unívocas ou simplificadoras. Aliás, a perenidade da obra fica a dever-se a esse permanente viés crítico que tantas vezes corrige as naturais tentações simplificadoras. Dir-se-ia que a fidelidade ao mestre Herculano constitui uma marca que dá atualidade e coerência ao historiador e ao pensador. Quando lemos “O Caprichismo Polémico do Senhor António Sérgio” notamos, é certo, o espírito do tempo e a circunstância política, mas o tempo veio a corrigir a influência ideológica, de que Saraiva ao longo do tempo se soube libertar, como confessará no final da vida. É muito rica a lista dos temas que ocupam o cientista social e o pedagogo, cujo percurso é afetado pelas opções políticas – militância partidária na oposição, apoio à candidatura de Norton de Matos, proibição de ensinar no ensino oficial e prisão por motivos políticos.

 

TEMAS APAIXONANTES

Os temas estudados não são neutros. A Idade Média portuguesa até à crise social do século XIV, a importância de Fernão Lopes, a Inquisição em Portugal, Fernão Mendes Pinto ou a Sátira Picaresca da Ideologia Senhorial, Luís de Camões, a Ressaca do Renascimento, o “Dicionário Crítico da Algumas Ideias e Palavras Correntes” constituem reflexões ricas, nas quais se nota a preocupação pela prevalência de uma opção de independência e liberdade, nem sempre corretamente compreendidas. Impedido de ensinar em Portugal, exila-se em França no final dos anos cinquenta, integrando a equipa de Marcel Bataillon, e chega a preparar a ida para o Brasil, o que se torna impossível em virtude da ocorrência do golpe militar de 1964. Em 1966 retoma o estatuto de investigador em Paris, no CNRS, por proposta de Fernand Braudel, assistindo aos acontecimentos de maio de 1968, que merecem a sua análise, em muitos pontos se revelará premonitória. Quando obtém um lugar na Universidade de Amesterdão (1970) publica “Maio e a Crise da Civilização Burguesa”, que suscita acesa polémica. Regressado a Portugal em 1975, assume funções na Universidade Nova de Lisboa e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, prosseguindo uma muito ativa intervenção literária: “Épica Medieval” (1979), “O Discurso Engenhoso – Estudos sobre Vieira e Outros Autores Barrocos”, “Filhos de Saturno – Escritos sobre o Tempo que Passa” (1980), “A Cultura em Portugal” (2 volumes) e “O Crepúsculo da Idade Média” (1988).

 

PENSAMENTO INDOMÁVEL

Fiel ao pensamento indomável, conheci pessoalmente António José Saraiva, quando escreveu e publicou “A Tertúlia Ocidental” (1990), obra de maturidade, de quem tão bem conhecia os homens de 1870, a ponto de poder escrever sobre eles um genial romance. E um dia disse-me que, sem demonstração histórica, era mais cinematográfico que tenha sido José Fontana a apresentar Oliveira Martins a Antero. Por outro lado, a chave da “Ilustre Casa” não era o colonialismo, mas a atração pelo desconhecido. E recordava «As Minas de Salomão», onde Gonçalo foi buscar motivo de inspiração. Ao contrário de Fradique, a geração coimbrã de Antero e dos seus acreditava numa outra relação entre a liberdade e a igualdade, diferente da romântica. A. J. Saraiva considerara em “As Ideias de E.Q.”, o fradiquismo como «uma desistência de agir sobre o meio e as condições sociais». Eça deparar-se-ia com a dificuldade de combater a mediocridade e a plutocracia. E ter-se-ia desinteressado. O próprio «esforçado Oliveira Martins» acabaria a cultivar a «flor da arte» ou outras flores. Seria uma evasão… Os anos passaram, o ensaísta continuou a estudar e a pensar, como inesgotável crítico. E em «A Tertúlia» recusou «uma súmula de clichés então reinantes» sobre a geração de 1870. O certo é que importaria dar uma especial atenção à afirmação de Eça no prefácio a «Azulejos» de Bernardo Pindela: «A arte é tudo, e tudo o mais é nada». O perigo da ilusão perturbava quem ainda acreditava na ação e na política. É certo que Eça dissera a Luís de Magalhães: «Não se deixe levar pelas teorias abomináveis do amigo Oliveira Martins sobre a sinceridade da emoção». Não poderia esquecer-se a fórmula «sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia». O paradoxo tinha como polos não apenas a ação e a indiferença, mas também a vontade e a arte. E Saraiva concluía: «Hoje as ideias de Eça de Queiroz (que não são exatamente as que lhe atribuímos em 1945) aparecem-nos principalmente como temas de arte, tal como na “Correspondência de Fradique Mendes” são pretextos para cartas».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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  (XXIX) RUY BELO, HOMEM DE PALAVRA(S)

 

Para Ruy Belo (1933-1978), “a poesia não constitui um fenómeno isolado no contexto cultural. Poesia é fundamentalmente a linguagem, e a língua, sendo em si mesma um facto de cultura, permite a fixação e a transmissão de toda a cultura. A poesia enquadra-se na arte e distingue-se das outras artes quanto ao ‘meio’ (o termo aqui, embora, claramente insuficiente, é aplicado na sua aceção vulgar) de expressão”. E é esta circunstância que a autonomiza e distingue. De facto, o poeta compreende, melhor que ninguém, que cada palavra é um infinito, “que exerce o sortilégio que o poder mágico lhe permite”. E recordámos, de modo insuspeito, Alexandre O’Neill a dizer que é bom termos o infinito entre nós, sem quaisquer ilusões. E Ruy Belo, no seu permanente repensamento, foi suficientemente claro: “Não há bem mais humano do que a palavra, de tal maneira que ela até compromete na inteligência do homem toda ou quase toda a sua existência. Ela ajuda a criar, e participa da história do homem. Daí que pô-la em jogo seja movimentar o universo”. E se a palavra é humana, naturalmente que se torna social, comprometida, responsável. Abre diversas relações com outras palavras, mas sobretudo com pessoas. A poesia é o lugar “onde convivem umas com as outras as palavras”. Teresa Belo recordava, por isso, os exercícios intermináveis que o poeta dedicava aos encontros e desencontros de palavras. Mas “O Guardador de Rebanhos” veio de um só jacto. E foi na leitura de Homero que se educaram os atenienses, mas Platão preconizava a expulsão dos poetas da cidade pelo perigo que representavam. Hölderlin reconhecia a inocência da palavra, mas considerava-a o mais perigoso dos bens. “A vida não se compadece com ideologias vãs / a vida pede pouco mais que vida / Para sabedoria não existe idade / mas a felicidade existe um só momento…”  

A esta luz Ruy Belo pensou Portugal. Contra a ideia de fatalismo do insucesso ou do atraso, e sem dó nem piedade no sentido crítico, as gerações da “Vida Nova” e de “O Tempo e o Modo” assumiram plenamente a dureza da denúncia e a aventura das propostas audaciosas. O atraso recusa-se. E a leitura de “Portugal Futuro” obriga-nos a não baixar os braços e a renovar o ânimo crítico. Uma cultura acomodatícia ou conformista tende a tornar-se frágil. A clareza crítica contrapõe-se à cacofonia… Daí a necessidade de uma visão dialógica de diferentes culturas, não como amálgama em que ninguém se entende. Eis como é importante a tradição de D. Pedro das Sete Partidas, mas também de Pedro Nunes, Garcia de Orta, D. João de Castro – de Camões, de Fernão Mendes Pinto e de Vieira… E esse cosmopolitismo liga-se à diversidade das culturas da língua portuguesa – da saudade até à morabeza… Haverá melhor definição de património vivo? «O portugal futuro é um país / aonde o puro pássaro é possível / e sobre o leito negro do asfalto da estrada / as profundas crianças desenharão a giz /esse peixe da infância que vem na enxurrada / e me parece que se chama sável / Mas desenhem elas o que desenharem / é essa a forma do meu país / e chamem elas o que lhe chamarem / portugal será e lá serei feliz / Poderá ser pequeno como este / ter a oeste o mar e a espanha a leste / tudo nele será novo desde os ramos à raiz / À sombra dos plátanos as crianças dançarão / e na avenida que houver à beira-mar / pode o tempo mudar será verão / Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz / mas isso era o passado e podia ser duro /edificar sobre ele o portugal futuro» (in 'Homem de Palavra[s]').

GOM

 

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

  Minha Princesa de mim:

 

   Há semanas que não te escrevo. Além de distraído por outras cismas, tenho sofrido repetidas cargas das minhas maleitas álgicas, perco sono e fico prostrado pelo cansaço. Vale-me o amparo de alguma música, desta feita - e curiosamente - a de compositores da última década do século XIX e primeiras do XX, de Debussy e Satie a Ravel e Stravinsky, sem esquecer a escola de Viena... E vou navegando por mares poéticos, por Paul Claudel e os japoneses, e ainda - talvez sobretudo - pelo imenso e forte oceano do nosso frei José Augusto Mourão, cuja poesia é, ela própria, uma liturgia da Palavra que o sopro do Espírito vai enfunando em nós. Tornando-nos sempre bem presente a saudade vital que é o fado da nossa humana condição. Citando um dos títulos da obra de frei José Augusto, afirmo que a sua poesia é Dizer Deus ao (des)abrigo do nome.

 

   Topamos  por aí com "poetas" medíocres, carreiristas de encómios, que vão encobrindo a indigência dos seus escritos e discursos com citações frequentemente deslocadas do seu sentido próprio, para apenas decorarem a moldura do retrato em que se miram ao espelho do charco sobre que se debruçam com alguma "flor de cultura". Talvez distraídos daqueles versos  de J. A. Mourão, insertos no seu protestatio et confessio:

 

          à banalização do mal eu digo não
          à tecnologia das próteses e ao mercado
          que conforta em nós Narciso, digo não

 

   Afinal, o Poeta mesmo, aquele que vive como dom, como promessa e espera, a liturgia essencial da Palavra sabe as horas  pelos relógios da fé: 

    

          A nós que agora vemos em espelho
          aguardando o face a face do teu Dia
          que o fogo do mal não nos devore os olhos
          nem a ira queime a compaixão que falta
          mas que a tua paz nos mostre o possível do mundo
          o amanhecer da graça e da beleza

 

          que não recuemos diante da tua sombra
          nem nos contem as horas os relógios da fé

 

          dá a vigilância e o fervor à nossa vida
          a atenção ao escondido da esperança
          e a resistência às tentações da transparência
          para o instante e o agora do mundo

 

   Encontrei neste poema uma oração para todos os humanos em todos os dias deste tempo difícil e tão incerto. Bem hajas, frei José Augusto Mourão!

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 21.06.2020 neste blogue.

MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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  (XXVIII) O MUNDO DE JÚLIO POMAR

 

Helena Vaz da Silva terá sido porventura quem melhor entendeu a força e a diversidade do mundo de Júlio Pomar, num magistral diálogo que com ele teve. Pomar nasceu em 1926 em Lisboa. Frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e as Escolas de Belas-Artes de Lisboa e Porto. Em 1942 participou numa primeira mostra de grupo, em Lisboa. Realizou a primeira exposição individual em 1947, no Porto. Em virtude de atividades oposicionistas é preso durante quatro meses, com apreensão de um dos seus quadros pela polícia política (“Resistência”) e ocultação dos frescos realizados para o Cinema Batalha no Porto. É autor do célebre retrato de Norton de Matos, candidato oposicionista. Afirma a independência da criação artística, mas associa o trabalho de pintor ao combate político, dando prioridade à defesa da responsabilidade social na criação de uma arte acessível e interveniente. Em 1963 instala-se em Paris. Na expressão de José-Augusto França, Pomar pertence à terceira geração modernista com uma obra multifacetada que se prolonga por sete décadas, destacando-se depois de um período inicial, dito neo-realista (“O Almoço do Trolha” ou “O Gadanheiro”), e de uma transição marcada por “Maria da Fonte” (1957), as exposições «Tauromachies» e «Les Courses» (Galerie Lacloche, Paris, 1964 e 1965); a participação numa mostra dedicada ao quadro de Ingres “Le Bain Turc” no Louvre (1971); as séries de pinturas “Mai 68” e “Le Bain Turc” (Galeria 111); as exposições «L’Espace d’Eros» (La Différence, 1978); «Théâtre du Corps» (Galerie de Bellechasse, 1979) e «Tigres» (Galerie de Bellechasse e Galeria 111, 1981 e 1982). Refira-se ainda «Um ano de desenho – quatro poetas no Metropolitano de Lisboa» - Camões, Bocage, Pessoa e Almada (Estação Alto dos Moinhos) em 1984 no CAM - Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian - que já em 1978 promovera a sua primeira exposição retrospetiva; além de «Ellipses» (Galerie de Bellechasse, Paris, 1984) e «Mascarados de Pirenópolis» (Galeria 111, ARCO, Madrid, 1988).

No começo da década de noventa, na sequência de uma estada no Alto Xingú, na Amazónia, realiza em 1990 as exposições «Los Indios» (Galeria 111, ARCO, Madrid) e «Les Indiens» (Galerie Georges Lavrov, Paris), a que se sucede «Pomar/Brasil», antologia organizada também pelo CAM da Gulbenkian e apresentada em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Lisboa. O Ministério da Cultura francês convida Júlio Pomar a realizar um retrato de Claude Lévi-Strauss, que precede o do presidente Mário Soares para a galeria oficial do Palácio de Belém (1991). Seguem-se as exposições «Pomar et la Littérature» (Charleroi, 1991), «Fables et Portraits» (Galerie Piltzer, Paris, 1994). A temática ficcional é retomada em «O Paraíso e Outras Histórias» (Culturgest, 1994) e «L’Année du cochon ou les méfaits du tabac» (Galerie Piltzer, 1996). A presença da Amazónia reaparece em «Les Joies de Vivre» (Galerie Piltzer, 1997) e «Les Indiens – Xingú 1988-1997» (Festival de Biarritz), enquanto a série “La Chasse au Snark” é mostrada em Paris (Galerie Piltzer, 1999) e em Nova Iorque (Salander-O’Reilly Gallery, 2000).

Trata-se de uma atividade intensa e de um permanente desejo de diversificação temática, que encontramos na repetição exaustiva, exigente e transformadora. Pomar recusou sempre a facilidade da expressão plástica. Nas suas múltiplas obras encontramos tigres, chapéus de chuva, macacos, retratos, mais ou menos explícitos; sendo clara a vontade de buscar as raízes culturais como em “Lusitânia no Bairro Latino – retratos de Mário de Sá Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso” de 1985, do mesmo modo que procura temas em fontes literárias e em matéria mitológica.

Apresenta «Pinturas Recentes», inéditas em Portugal, no Centro de Congressos de Aveiro em 2000. Regressa à Galeria 111 com a exposição «Os Três Efes – Fábulas, Farsas e Fintas» (2002), a que se sucedem «Trois travaux d’Hercule et quelques chansons réalistes» e «Méridiennes –Mères Indiennes» (Galerie Patrice Trigano, Paris, 2002 e 2004); «Fables et Fictions», esculturas e suas fotografias por Gérard Castello-Lopes (Galerie Le Violon Bleu, Sidi Bou-Said, Tunísia, 2004), que se prolonga em «A Razão das Coisas», assemblages e bronzes, fotografados por José M. Rodrigues, Serralves, Porto (2009). Marcelin Pleynet comissaria a exposição antológica no Sintra Museu de Arte Moderna – Coleção Berardo, designada «Autobiografia» (2004). As décadas recentes da obra de Júlio Pomar foram antologiadas por Hellmut Wohl no Centro Cultural de Belém em «A Comédia Humana». O Museu de Serralves, no Porto, incluiu numerosas assemblages inéditas na mostra «Cadeia da Relação», comissariada por João Fernandes (2008). Em 2009 expôs «Nouvelles aventures de Don Quixote et Trois (4) Tristes Tigres» (Galerie Patrice Trigano), e em 2012-13 apresenta «Atirar a albarda ao ar» na Cooperativa Árvore e na Galeria 111, Lisboa. Júlio Pomar é autor de “Catch: thèmes et variations”; “Discours sur la cécité du peintre”; “Et la peinture?”  (Éditions de la Différence), tendo os dois últimos sido traduzidos por Pedro Tamen com os títulos “Da Cegueira dos Pintores” (IN) e “Então e a Pintura?” (Dom Quixote); com duas coletâneas de poesias “Alguns Eventos” e “TRATAdo DITO e FEITO” (Dom Quixote). Júlio Pomar criou em 2004 a Fundação com o seu nome, tendo sido inaugurado o Atelier-Museu Júlio Pomar, criado pela Câmara Municipal de Lisboa, no edifício na Rua do Vale n.º 7, Mercês, com o projeto arquitetónico de reabilitação da autoria de Álvaro Siza. (Texto baseado na biografia do Atelier-Museu Júlio Pomar).

GOM

 

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A RECUPERAÇÃO DO TEATRO VIRIATO DE VISEU

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Foi divulgado o início das obras de recuperação do velho Teatro Viriato de Viseu. Vale por isso a pena recordar o historial desta sala de espetáculos, sobre a qual já tivemos ocasião de diversas vezes aqui referir e também num dos nossos livros dedicados a antigas e modernas Salas e Centros de Espetáculos em Portugal. Muitas vezes citamos estes novos livros e arquivos: e neste caso a oportunidade mais que justifica precisamente o início das obras de recuperação.

Desde logo porque o Teatro Viriato, na sua expressão histórica, surge em 1883, então denominado Theatro Boa União. Mas logo passados meros 6 anos, adota a designação atual, Teatro Viriato, numa evocação histórica que durou mais do que a atividade da sala em si: pois efetivamente, a inauguração em 1921 de um Teatro Avenida, aliás esse demolido em 1970, prejudicou a atividade do mais velho Viriato. E o edifício é transformado em armazém: isto, num período em que os velhos teatros eram ou demolidos ou adaptados...

E decorrem 25 anos até que, precisamente em 1985, segundo já oportunamente escrevemos, o velho Teatro Viriato é recuperado com um espetáculo simultaneamente cultural-nacional e regional, digamos assim - uma montagem de textos de Aquilino Ribeiro, articulados e encenados por Ricardo Paes, com a designação dramática de "Teatro de Enormidades apenas criveis à luz elétrica", nada menos.

Aquilino Ribeiro (1885-1963) era natural de Viseu. Apesar de ter dedicado diretamente à cena apenas duas peças, ainda por cima separadas por mais de vinte anos, "O Manto de Nossa Senhora" (1920) e "Como no Inferno" (1964), isso não obsta a que para alem da especificidade exemplar da linguagem a expressão de espetáculo mereça referência.

Do mesmo ano 1885 a faculdade de arquitetura da universidade do porto efetuou um conjunto de estudos acerca da possível salvação do edifício.

Até que em 1986 a Câmara Municipal de Viseu adquiriu o Teatro Viriato e efetuou obras de reestruturação. As obras prosseguiram com intermitências e o Teatro é recuperado no final do século. Mas com limitações de espaço.

Em 1999 o teatro reiniciou atividade.

E agora anunciam-se novas obras de recuperação do Teatro Viriato, previstas para durar cerca de um ano. Nesse sentido, as declarações de Paula Garcia, então diretora do Teatro, são categóricas: O Teatro Viriato será um centro de cultura e de espetáculo em Viseu e no País.

 

Duarte Ivo Cruz

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  (XXVII) O TRAÇO DE ÁLVARO SIZA VIEIRA

 

Agora, o Porto, mas a pensar em Lisboa… Um contemporâneo acompanha-nos. Quando, na sequência do tremendo fogo do Chiado de 1988, houve que reconstruir o coração de Lisboa, foi lançado o desafio a Álvaro Siza Vieira o arquiteto aceitou, na condição de encontrar um novo conceito para o mais antigo dos lugares que formaram a Lisboa medieval. E houve quem se perguntasse: como seria possível a um portuense de gema ser chamado a reconstruir Lisboa? Sou testemunha da inteligência e do entusiasmo que animaram o arquiteto. Só quem não conhecia a história portuguesa, poderia duvidar desta solidariedade antiga entre as duas primeiras cidades portuguesas – aquele de onde houve nome Portugal e a capital dos Descobrimentos. Jaime Cortesão bem disse que o Porto é a nossa única cidade-estado e ao falar dos fatores democráticos na formação de Portugal lembrou que a revolução de 1383-1385 foi resultado de uma aliança forte e intrínseca entre as duas cidades, solidárias por natureza. Eis como fácil foi que o arquiteto do Porto tenha compreendido como ninguém a melhor estratégia para tornar viva de novo a cidade que a lenda diz ter sido fundada por Ulisses. E o resultado está bem à vista. O Chiado renasceu moderno e vivo, olhando para o futuro, graças ao traço de Siza.

 

Álvaro Siza Vieira nasceu em Matosinhos, à beira da Foz do Douro, filho do engenheiro Júlio Siza Vieira e de Cacilda Carneiro de Melo. Casou-se com a artista Maria Antónia Marinho Leite Siza Vieira (1940-1973), prematuramente falecida, tendo dois filhos. Entre 1949 e 1955 estudou na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, onde lecionou de 1966 a 1969 e depois de 1976. Adolf Loos, Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto e Le Corbusier são referências do percurso profissional e artístico de Siza Vieira, podendo dizer-se que procedeu por essa influência à criação do que se designa como modernismo arquitetónico português. O primeiro destaque é sem dúvida a Casa de Chá da Boa Nova em Leça da Palmeira que é uma das joias do património cultural português. A ligação ao arquiteto Fernando Távora, mestre de Álvaro Siza, merece especial menção, já que a Escola do Porto tem em ambos referências pioneiras, até pela respetiva capacidade inovadora, com consequência além-fronteiras. Lembremo-nos dos exemplos das Piscinas de Marés (Leça da Palmeira), do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, da Igreja de Marco de Canaveses, da Fundação Iberê Camargo (Porto Alegre). Além da América (Brasil e Estados Unidos) e da Ásia (Coreia do Sul), encontramos obras de Siza Vieira em Espanha, Países Baixos, Bélgica. São de sua autoria o Plano de Recuperação da Zona 5 de Schilderswijk (Haia), dos anos oitenta, os Blocos 6, 7 e 8 de Ceramique Terrain (Masstricht), o Centro Meteorológico da Vila Olímpica de Barcelona, o Centro Galego de Arte Contemporânea (Santiago de Compostela), o Café Moderno de Pontevedra, a Reitoria da Universidade de Alicante, o Pavilhão de Portugal na Expo-98 (Lisboa); o edifício Bounjour Tristesse (Berlim) ou a Fundação Nadir Afonso (Chaves). Não é possível dar uma lista completa das obras fundamentais do arquiteto português. Mas por exemplo sentimos especial emoção quando vemos o projeto Serpentine Pavillon em Kensington Park da autoria partilhada de Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura, onde encontramos a marca indiscutível da escola portuguesa da moderna arquitetura. A lista de prémios é impressionante, a começar no Prémio Pritzker da Fundação Hyatt pelo projeto de renovação da zona do Chiado e a continuar na medalha Alvar Aalto (1988), no Prémio de Arquitetura Contemporânea Mies van der Rohe, Prémio Nacional de Arquitetura (1993), Medalha de Ouro do Royal Institut of British Architects; Prémio Luso-espanhol de Arte e Cultura; Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza; Prémio Vida e Obra da Sociedade Portuguesa de Autores e Prémio Nacional de Arquitetura Espanhol.

O traço de Álvaro Siza é inconfundível. Não podemos falar da arquitetura contemporânea sem lembrar o seu caminho. A cidade e o património histórico encontram-se como projetos de perenidade!

GOM

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MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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  (XXVI) A IRONIA DE ALEXANDRE O’NEILL

 

Alexandre O’Neill (1924-1986) foi entre nós um dos mais dotados artífices da escrita do português do último século. Em Caixadòclos definiu o seu autorretrato com especial culto da ironia. António Tabucchi salientava, aliás, a importância da cultura portuguesa do picaresco, do chiste e do anedótico, que teve no poeta expressão superlativa: «– Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim? / – Que és o esticalarica que se vê. / – Público em geral, acaso o meu nome... / – Vai mas é vender banha de cobra! / – Lisboa, meu berço, tu que me conheces... / – Este é dos que fala sozinho na rua... / – Campdòrique, então, não dizes nada? / – Ai tão silvatávares que ele vem hoje! / – Rua do Jasmim, anda, diz que sim! / – É o do terceiro, nunca tem dinheiro... / – Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você... / – Dos dois ou três nomes que o surrealismo... / – Ah, agora sim, fazem-me justiça! / – Olha o caixadòclos todo satisfeito / a ler as notícias...» (Feira Cabisbaixa, 1965)

Quando nas comemorações do dia 10 de Junho de 1990, António Alçada Baptista anunciou a publicação das “Poesias Completas – 1951-1986” (Imprensa Nacional) fê-lo com a consciência plena de que homenageava um poeta singular que ajudou (e muito) à introspeção nacional, que traduz bem do carácter português. Uma ironia forte e subtil, o uso do escárnio e maldizer, desde os trovadores a Nicolau Tolentino, com linguagem de hoje, concedem a O’Neill um lugar especial na literatura. “Há mar e mar, há ir e voltar” – criou a fórmula mágica, mas viu recusada outra, por ser rebarbativa: “Vá de Metro, Satanás”. Quanto ao encontro com o Grupo Surrealista de Lisboa (1947) apesar de saudações sentidas a Breton (“Deflagraste em nós na sempiterna circunstância: a pasmaceira”) e Éluard (“Cantaste a beleza proferiste a verdade / (…) Disseste o que devias dizer”), o poeta considerava essencial não se levar muito a sério, demarcou-se de escolas e cartilhas. E em 1951 rompeu formalmente com o surrealismo como escola, sem deixar o apego às marcas indeléveis dessa influência – “É tempo de acordar nas trevas do real / na desolada promessa / do dia verdadeiro” (Tempo de Fantasmas). A ironia será marca permanente. “No Reino da Dinamarca” (1958), vemo-lo seguir o próprio caminho – “Ó Cesário Verde como eu queria / Que estivesses aqui!”. Há humor e mágoa, rir e roer… “E se fossemos rir, / Rir de tudo tanto, / Que à força de rir / nos tornássemos pranto…”. E em “Abandono Vigiado” (1960): “Teima? Que topete! / Que se julga ele / Se um tigre acabou / nesta sala em tapete?”. Alexandre O’Neill perscruta sempre o quotidiano, não como realidade pacata, mas como reflexão, excesso e divertimento – como no jogo dos sinais ortográficos. A vírgula – “Quando estou mal disposta / (e estou-o muitas vezes) / mudo o sentido às frases, / complico tudo”. O ponto – “Que eu saiba / só em Éluard sou único e final”.

Eis-nos perante a libertação da arte e pela arte – este o seu programa, a que voltou sempre, conversando e desconversando, moendo e remoendo incessantemente as palavras, com recusa sistemática de uma Poesia com maiúscula, já que preferiu o retrato “à la minuta” do país em diminutivo. E na “Feira Cabisbaixa” desenha Portugal (“se fosses só três sílabas”), diferença a diferença para chegar até nós (“se fosses só o sal, o sol, o sul, / o ladino pardal, / o manso boi coloquial”…). Das doceiras de Amarante aos toureiros da Golegã, “não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, / galo que cante a cores na minha prateleira”. Mas quem é, afinal, Portugal? “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós”. Portugal magistralmente esboçado por um impressionista de génio. Como poderemos entender-nos sem ler o seu português castiço, que Tabucchi endeusava (como os sinais sonoros de Maria Parda). “País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano”. O’Neill impagável, olhar atento, para dentro de nós: “Subamos e desçamos a Avenida, / enquanto esperamos por uma outra / (ou pela outra) vida”…" E, em Um Adeus Português (1958), sente-se a força de uma cultura, que O’Neill entendeu como ninguém, onde lírica, tragédia e ironia se encontram sempre: “Nesta curva tão terna e lancinante / que vai ser que já é teu desaparecimento / digo-te adeus / e como um adolescente / tropeço de ternura / por ti». Do mesmo modo que a Peregrinação Interior de António Alçada tem Alexandre por marca: « - Quem? O infinito? / Diz-lhe que entre. / Faz bem ao infinito / Estar entre gente.» (Abandono Vigiado).

GOM

Oiçamos a voz do poeta!

 

 

 


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SÁNDOR MÁRAI


  DO TRATADO DA AMIZADE


Aprende-se que há um amor a todos os títulos fecundo quando os homens são capazes de criar e de manter a vivência de uma amizade como salto qualitativo na forma de viver.


O romance As Velas Ardem Até ao Fim tem sido merecidamente aclamado, mas um autor como Sándor Márai, nunca por excesso será nomeado, tal a força da sua imensa inteligência no poderosíssimo discurso escrito.


Entramos num ecossistema de leitura diferente de cada vez que revisitamos estas velas que ardem qualitativamente catalisadoras de transformações profundas e que sempre direi a reler neste romance.


A magia de um diálogo deslumbrante neste livro, acode ao mistério do tudo e do nada, há quarenta e um anos vivido lado a lado com o que se não pode resolver, ou, por se tratar de ideias falsas, ou, por tão perto e de tão perto, que já não acresce reconhecer o que afinal de nós nunca saiu e tanto no outro se procurou.


E procurou-se no jeito dos porquês e dos comos, ambos miseravelmente idênticos, ambos fórmula sem testemunha que deponha benevolente.


Afinal, da leitura deste livro fabuloso, também resulta que a tudo se sobrevive e, talvez que muitos silêncios sejam mais humanos do que as palavras alguma vez o foram, na ânsia de qualificar a vida.


Existem muitos crimes que os códigos não reconhecem pois que pouco sabem de conteúdos. Também existem misérias e grandiosidades, vaidades e preconceitos que ardem como as velas, muitas, ainda assim, expectantes que se não apaguem de morte esquecida.


E reli e irei reler e apelo à (re)leitura deste romance de Sándor Márai As Velas Ardem Até ao Fim. Todas as noites têm luz quando se sugere um livro como este, pleno de palavras meticulosamente talhadas na alma das pedras.


A realidade é um pormenor na luz flutuante do salão que abriga o diálogo entre dois homens, amigos inseparáveis. Amigos migratórios. Amigos que reconhecem os defeitos e as consequências dos mesmos. Amigos que se não amam apenas pelas virtudes e pelas fidelidades. Amigos até que ambos amparam a bala que afinal não era inteiramente sincera.


Também existe uma mulher neste livro, tal como a amizade que quando surge é um destino.


Também é no seio de uma comum permissão secreta que não se deseja libertar as verdades que em comunhão com uma paixão tiveram ambição de soldado.


E houve guerra. E solidão. E castelos e conventos e cortinas e uma nudez humana que responde com toda a sua vida.


Também existem muitos significados de caça que só muito mais tarde se entendem. Em verdade, as caças têm muito de despedidas, têm muito do foste tu que me chamaste?


Com tudo o que de brilhante nos ocorre quando lemos este livro, o caos da criação onde se desenvolve a dignidade humana, é ainda mais cintilante, quando o sentimos como uma obrigação nobre, tão nobre que faz parte do ofício do entendimento, como andar a cavalo, ou participar num concerto de Chopin.


Oculta e exposta está a sensualidade deste livro. Surge-nos como consequência natural das circunstâncias que levam as mãos ao tremor, tão antigo na paixão, quanto jovem e permanente ao posto de vigia: licor líquido cor de púrpura a quem no acto de leitura o não descuida.


Citando Sándor
“Era o momento em que a noite se separa do dia, o mundo de baixo do mundo de cima. E talvez haja outras coisas que também se separam nesses momentos (…) já não é noite, mas ainda não é dia.”


E nem sempre se argumenta com palavras da razão. Digo.

Teresa Bracinha Vieira
31.03.10


Obs: Solicitou-se a reposição do presente texto

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