Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Que sentido tem num folhetim de Verão incomodarmos um poeta antigo, que repousa em Amares, e que ainda hoje nos surpreende pelo seu sentido crítico e pela chamada de atenção relativamente à questões pátrias? Falamos do bom Sá, ou seja, de Francisco Sá de Miranda (1481-1558), célebre por ter introduzido na nossa literatura o soneto e o Dolce Stil Nuovo, para quem a poesia não era uma mera ocupação de ócios, mas uma missão do maior valor humano. O poeta seria, assim, como um profeta, capaz de denunciar os vícios da sociedade, e em especial da Corte, o abandono dos campos, a hemorragia das gentes e o exagero do luxo, que tudo corrompe. Daí que se lembre a célebre carta que dirigiu a D. João III, identificando-se como o «Homem de um só parecer, / dum só rosto e d'ua fé, / d'antes quebrar que torcer / outra cousa pode ser, mas da corte homem não é.». Quando o lemos, sentimos estar no âmago de um pensamento atento e de uma língua nobre - sóbria, densa, forte, trabalhada, exigente para se fazer entender e tantas vezes necessariamente dura. Daí que a biografia literária de Sá de Miranda seja muito rica, tendo o poeta concebido as primeiras comédias clássicas portuguesas (Estrangeiros e Vilhalpandos) além das mais imaginativas criações bucólicas e pastoris. Se Gil Vicente representou a transição do medieval para o moderno, Sá de Miranda exerceu a crítica já nos novos tempos, em que o rigor da palavra correspondia à maneira clássica de fazer do reparo sério e claro motivo de melhorar o curso da história humana. Assim prenunciou Camões, Diogo Bernardes, António Ferreira, Pero Andrade Caminha, Francisco Manuel de Melo, mas também os contemporâneos Jorge de Sena, Gastão Cruz ou Ruy Belo. Tem uma preocupação ética como Mestre Gil, mas o picaresco dá lugar à sobriedade, o que significa determinação pedagógica e artística. Não cuidaremos de ler a sua riquíssima obra, mas atemo-nos à célebre carta a D. João III, bem ilustrativa de uma atitude de procura da humanidade na sua essência. Assim, oiçamos o bom Sá, na epistola que representa para a língua portuguesa o exemplo em que a palavra vai ao encontro do espírito, a justiça ao encontro da voz.
«Tudo seu remédio tem / E que assim bem o sabeis, / E ao remédio também; / Querei-los conhecer bem, / No fruto os conhecereis. / Obras, que palavras não: / Porém, Senhor, somos muitos, / E entre tanta multidão / Tresmalham-se-vos os frutos, / Que não sabeis cujos são. / Sempre foi, sempre há de ser, / Que onde uma só parte fala, / Que a outra haja de gemer: / Se um jogo a todos iguala, / As leis que devem fazer/ Do vosso nome um grão rei / Neste reino lusitano, / Se pôs esta mesma lei, / Que diz o seu pelicano / Pola lei, e pola grei. / Assim que seja aqui fim; / Tornem as práticas vivas; /Perdestes meia hora em mim, / Das que chamam sucessivas / Estes que sabem latim”. “E por muito que os reis olhem, / vão por fora mil inchaços, / que ante vós, Senhor, se encolhem, / duns gigantes de cem braços / com que dão e com que tolhem// Quem graça ante o rei alcança, / e i fala o que não deve, / (mal grande de má privança) / peçonha na fonte lança / de que toda a terra bebe”. “Que eu vejo nos povoados / muitos dos salteadores, / com nome e rosto d’honrados; / vão quentes, andam forrados / de pele de lavradores”. “Senhor, esta vossa vara / como as mãos em que anda, é / a boa é ave mui rara… / sendo vós o que mandais / todos nos resolveremos”.
Do que se trata é da denuncia da injustiça, importando cuidar com coerência e determinação, do lado das soluções, porque há um caminho reto a trilhar contra os salteadores que se mascaram de honrados. E recorda a D. João, o lema do Príncipe Perfeito: “Pola Lei e Pola Grei”. Atos e não palavras, eis do que precisamos. Urge cuidar dos bons frutos e dos bons resultados. E o poeta com visão crítica exprime a confiança na justiça do rei.
A certo passo de A Ilustre Casa de Ramires, o protagonista, Gonçalo Mendes Ramires, confessa: «Gosto, gosto muito de crianças, até de criancinhas de mama. As crianças são os únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece... Os outros anjos, os de asas, nunca aparecem. Os santos, depois de santos, ficam na Bem-Aventurança a preguiçar, ninguém mais os enxerga. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só temos realmente as criancinhas... Tal trecho algo me diz sobre a sensibilidade do seu autor, a tentar sempre uma sublimação das realidades factuais que nos rodeiam pelo apreço sincero daquelas que lhe tocam uma secreta corda do coração...
Pensossinto que Eça de Queiroz, além e apesar de tudo, é muito portuguesmente um emotivo ou - se assim preferires, minha silenciosa Princesa - um muito grande sentimental. Aliás, quase no termo da sua Ilustre Casa de Ramires, põe na boca de um dos amigos de Gonçalo, o Administrador João Gouveia, esta sentença: «Talvez se riam, mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade que notou o Sr. Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos que acabam logo em fumo, e simultaneamente muita persistência, muito afeto, quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo... [...]...Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem? - Portugal.
Cito assim, porque o amor às crianças, pela sua espontânea ternura, corre sempre o risco de ser como fogacho que logo acaba em fumo, fumo esse que, ainda por cima, contribui para o nosso esquecimento da realidade pungente de centenas de milhares, quiçá milhões, de pequeninos por esse mundo fora. Acende-se muitas vezes em mim a imagem de carinhas aflitas de fome e outros sofrimentos, recordadas em fotos da imprensa ou reportagens das televisões. Magoam-me e doem até às lágrimas aqueles olhos suplicantes que dão aos rostos meninos a expressão trágica das vidas esquecidas e abandonadas, mas já sem queixas e ainda não sabendo o que é raiva e revolta, nem sequer acusação outra para além daquele silêncio com que a própria morte nos interpela.
Quedo-me perplexo, sabendo a inutilidade do meu desgosto, a fraqueza da minha compaixão. Poderei contribuir para auxílios de inúmeras organizações de socorro, nacionais e internacionais, confessionais ou anónimas, públicas e privadas; tal como poderei publicar alertas, análises e textos críticos; e não me esquecerei de rezar, levando até Deus (mistério que nos contempla e contemplamos) a cena dolorosa da confrontação, em humanidade, de egoísmos na abundância de bens com carências em tão grande desespero de meios...
Mas apenas sei que, sem a mobilização coletiva de vontades políticas humanitárias, e consequente transformação ou conversão de um sistema cujo próprio funcionamento vota fatalmente ao ostracismo milhões de vidas - às quais negamos a dignidade e a justiça que são seus próprios direitos inalienáveis - nada poderá obter aquela verdade densa que dá existência ao próprio bem. Lembra S. Paulo na sua primeira epístola aos coríntios:
Se nas línguas dos humanos e dos anjos eu falar, mas amor não tenho, bronze ecoante ou címbalo ruidoso me tornei.
O amor do próximo, ou caridade, é edificação do Reino de Deus já na nossa vida presente, antes de seguirmos - como tu já atravessaste, Princesa de mim - para a outra margem.
Como e quando aprenderei eu a caridade? Não só na ocasião e dimensão do meu quotidiano tangível, mas no empenho e na partilha social e política, que procure abrir novos horizontes e transformar os sistemas instalados e os aparelhos que nos encerram num egoísmo cego... Vocação a que é hoje tanto mais difícil corresponder, quanto a cultura contemporânea das sociedades ocidentais de raiz cristã se converteu aos "encantos" do apelo de um individualismo materialista alheio ao sentido da busca do outro que, afinal, somos sempre nós também. Será que calha mantermo-nos no barulho dos címbalos importunos (ou sedutores?) que nos circundam, e baixarmos os braços como calistos azarentos, ou será ainda possível ir convertendo a cultura e os sistemas com seus aparelhos? Saberás tu responder-me, Princesa, da margem de lá, onde já chegaste?