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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL


(XI) A ARRÁBIDA E FREI AGOSTINHO DA CRUZ


Andando de norte para sul e de sul para norte, fixamo-nos hoje no centro, na Arrábida, santuário único do Mediterrâneo no Atlântico. E recordo Manuel Viegas Guerreiro a lembrar uma antiga excursão de estudiosos à Arrábida com Orlando Ribeiro (o grande revelador dos maiores enigmas desse lugar mágico), no tempo em que se dedicava intensamente ao estudo da região. «É com saudade que evoco (…) a travessia da serra da Arrábida, de Azeitão ao Portinho, com estação obrigatória no convento, quando Orlando Ribeiro preparava a sua tese de doutoramento. De sacola às costas e martelo em punho, aqui quebrando uma pedra, acolá examinando um seixo, lá íamos serra acima, falando de tudo e até do Materialismo Histórico que já nessa época era moda defender e contestar, na Faculdade. Depois, diante do santo de boca encadeada e cilícios remissivos, tempo de meditação». Orlando Ribeiro é claríssimo: «Por mim direi que não conheço em Portugal nenhum outro lugar onde, em tão pequeno espaço, se possam contemplar tão variados aspetos naturais. Esta riqueza de paisagens se por um lado dificulta muito o estudo geográfico da região, por outro compensa o investigador com a diversidade de ensinamentos que lhe proporciona.»


«É impressionante ver (continua Orlando), do limite do planalto, a mais de 100 metros de altitude, o mar impetuoso quebrar em franjas de espuma na base da arriba quase vertical. As rochas desta zona, calcários e dolomias compactas, duras e resistentes, têm a superfície coberta de rugosidades em todos os sentidos». A exposição a sul permite que o Mediterrâneo aqui se reproduza, como se estivéssemos na Grécia ou no Meio-dia italiano. É verdade que a água do Portinho é mais fria do que a da Falésia algarvia ou do que a da Rocha, mas a magia é semelhante, no cheiro inebriante do “maquis”, graças ao carrasco, aderno, zambujeiro, alfarrobeira, aroeira, urze, medronheiro, rosmaninho, alecrim, tomilho e alfazema… E o geógrafo explicava, virado para o mar no Conventinho, que a razão principal da distribuição da população na Arrábida esteve «no aproveitamento das águas (pesca, salinas, comunicações) e na natureza do solo arável» - as oliveiras de Azeitão, as vinhas de José Maria da Fonseca e da Periquita, os pastores e os rebanhos, vindos da Serra da Estrela, que criaram um novo queijo, com a mesma técnica mas um sabor totalmente outro, pela diferença dos terrenos e pastagens. E a região geográfica é um extraordinário somatório de características físicas e humanas comuns, específicas de um determinado espaço singularmente belo. A «pequena região natural» possui uma «individualidade geográfica» inequívoca que o estudioso demonstra com sensibilidade e talento. A Arrábida é «única pela estrutura entre as recentes montanhas portuguesas, polimórfica no relevo, no clima, na vegetação, na forma dos agrupamentos humanos.» A Arrábida é uma «nesga mediterrânica entre terras e águas atlânticas» que pode ser descoberta ou redescoberta através do extraordinário esboço geográfico de Orlando Ribeiro.


Em terra de poetas (de Sebastião da Gama a Pedro Tamen e António Osório) ninguém melhor do que Frei Agostinho da Cruz (1540-1619), irmão de Diogo Bernardes, que viveu a vida entre Sintra e a Arrábida, para nos guiar nesta viagem a um domínio que se apresenta como antecâmara da eternidade.


«No meio desta serra, onde se cria / Aquela saudade d’alma pura, / Que no duro penedo acha brandura, / Ardente fogo dentro n’água fria: / Ouço do passarinho a melodia, / Vejo vestir o bosque de verdura, / Variar-se no céu outra pintura, / Que em vários sentimentos me varia. / Pasmando de quam mal se gasta a vida / De quem na terra quer subir ao céu / Pois caminhar em fim ninguém duvida. / Menos da vida estreita que escolheu, / Dos seus mais escolhidos mais seguida, / Christo Jesu, que numa Cruz morreu».


«Dos solitários bosques a verdura, / Nas duras penedias sustentada, / N’esta serra, do mar largo cercada, / Me move a contemplar mais fermosura. / Que tem quem tem na terra mor ventura, / Nos mais altos estados arriscada, / Se não tem a vontade registada / Nas mãos do Criador da criatura? / A folha que no bosque verde estava, / Em breve espaço cai, perdida a flor, / Que tantas esperanças sustentava. / Por isso considere o pecador, / Se quando na pintura se enlevava / Não se enlevava mais no seu pintor.

GOM

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O CRISTO PENSADOR

 

Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século XX, deixou escapar um dia, numa aula, uma daquelas observações que nunca mais se esquecem: na Igreja católica, é obrigatório confessar os pecados graves e mortais, mas ele não estava a ver que algum bispo ou padre ou superior religioso, ministro ou professor católico se tenha alguma vez confessado do pecado grave e, frequentemente, mortal, da ignorância culpada, da incompetência fatal, da inteligência irresponsavelmente menorizada.


Em geral, nas igrejas, faz-se pouco apelo à razão, à reflexão crítica, à pergunta. Como se a fé não tivesse de conviver com a inteligência, com a dúvida e com a pergunta. Os cristãos – mas isso acontece em todas as religiões – parece que ficam tolhidos na sua capacidade de perguntar. No entanto, Jesus morreu a rezar esta pergunta infinita que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”, e o filósofo Martin Heidegger, um dos maiores  do século XX, escreveu que “a pergunta é a piedade do pensamento”.


Na catequese e nas pregações da Igreja, parte-se, desgraçadamente,  de um Cristo definido dogmaticamente e concebido à maneira de um robô, que chegou a este mundo já pré-programado e que não fez senão cumprir esse programa. Por isso, não precisou de pensar, não teve hesitações, não passou por tentações, não teve de decidir ele mesmo o que devia fazer para realizar a vontade de Deus, a quem chamava com ternura Abbá, querido Papá.


Na Igreja, valoriza-se a obediência, referindo constantemente aquele passo de São Paulo: “Cristo obedeceu até à morte e morte de cruz”. Mas quase nunca se explica o que é a obediência de Cristo, ocultando que, para obedecer a Deus e ao que Deus quer – dignidade, futuro, fraternidade, liberdade para todos --, teve de desobedecer aos opressores, nomeadamente a uma religião que, em vez de libertar, oprimia.


Tanto entre os crentes como entre os ateus e os sem religião, não faltam os que julgam saber, com saber certo, sem qualquer dúvida nem hesitação, o que Deus é, em que consiste a vontade divina para cada pessoa, qual é o sentido da História e do mundo. Entronizados no poder, definem dogmas, estabelecem normas e mandam com soberania inquestionável.


Os seres humanos são, por natureza, frágeis, carentes e, por isso, é quase inevitável que, entre a liberdade e a segurança, a maioria não hesite em escolher a segurança, como já aqui expliquei, referindo o diálogo entre o Grande Inquisidor e Cristo em Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski. O Grande Inquisidor disse a Cristo num calabouço do Santo Ofício, onde O tinha mandado prender: que O queima na fogueira como o pior dos hereges, e a razão é que a liberdade de fé tinha sido para Ele a coisa mais preciosa. Não foi Ele que disse tantas vezes: “Quero tornar-vos livres?” Cristo não percebeu que “o Homem não tem preocupação mais torturante do que encontrar alguém em quem possa delegar o mais depressa possível a dádiva da sua liberdade.”


“Em vez de Te apoderares da liberdade das pessoas, acrescentaste ainda mais à sua liberdade!”, diz-lhe o Inquisidor. Por isso, os hierarcas eclesiásticos corrigiram a façanha de Cristo, baseando-a em milagre e autoridade. Agora, todos sabem em que hão-de acreditar e o que devem fazer, sem terem de perguntar porquê nem de escolher. “E as pessoas ficaram contentes por serem de novo guiadas como um rebanho e por ter sido tirada dos seus corações a dádiva terrível que tanto sofrimento lhes causava.” Daí, a ordem do velho cardeal inquisidor: “Cristo, vai-te embora e não voltes mais... não voltes... nunca, nunca!”


Perguntar vem do latim percontari, que, por sua vez, terá na sua base contus, vara comprida. Então, perguntar, etimologicamente, quer dizer examinar o fundo de um rio ou de um tanque com um bastão e, portanto, sondar o interior da pessoa e da realidade.


Só o Homem pensa e pergunta. Lá está “O pensador” de Rodin. Um animal com a mão encostada à face ou a face entre as mãos, a cabeça inclinada e absorto, é um homem que pensa: tenta ver o seu interior e o mais fundo de tudo. Nenhum outro animal pensa nem se examina nem examina as consequências dos seus actos nem pergunta. O Homem pergunta, e a sua pergunta não tem limites. E é assim que, nesse seu perguntar, pode surgir a questão da transcendência e de Deus. Como escreveu Theodor Adorno, da Escola Crítica de Frankfurt, “o pensamento que se não decapita desemboca na transcendência”.


Por tudo isto, é uma surpresa boa encontrar em Vilnius algo típico da Lituânia, talvez porque é um povo que sofreu demasiado: umas pequenas estátuas de Cristo a pensar -- o Cristo pensador. Estive uma vez em Vinius e a recordação que trouxe e que se encontra presente na minha mesinha de cabeceira é uma dessas pequenas estátuas.


Pensar vem do latim pensare, com o significado de ponderar, examinar, pesar argumentos e razões. Pensar pode ter também o significado de aplicar o curativo, os remédios necessários. E é assim que, em português, pesar também quer dizer solidariedade com a tristeza de alguém que sofre.


Neste contexto, quero prevenir que me parece que se pensa pouco, mas que, se todos os dias se dedicasse um pouco mais de tempo a pensar, muitos desastres pessoais e familiares teriam sido evitados. Também seriam evitados a nível colectivo, se os políticos se dedicassem a pensar verdadeiramente no bem comum e não ficassem confinados no mero pensar astucioso para ganhar eleições.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 7 AGOSTO 2021