Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Nesta nossa deambulação, passámos pelo Ribatejo, fomos a Amarante, a casa de Pascoaes, encontrámos Raul Proença e Fernando Pessoa, e chegamos hoje a Barcelos. Mário Cláudio disse o essencial. «No fundo Rosa Ramalho é a figura do norte português, é a fêmea do Norte de Portugal que vem desde a Idade Média. Que se prolonga pelos nossos dias» (“Rosa”, 1988). As raízes de Entre Douro e Minho trazem-nos a compreensão de mil influências. Mulher de estatura baixa, dona de um olhar intenso, sempre vestida de preto, artista popular de Galegos S. Martinho, o nosso cadinho permite o encontro nesta artista entre o sagrado e o profano, entre a Mãe Natureza e a vivência cristã do mistério, da fantasia e do amor. Rosa Ramalho chamou-se Rosa Barbosa Lopes e nasceu, a 14 de agosto de 1888, no lugar da Cova, na freguesia de Galegos (município de Barcelos), em região de antigas tradições cerâmicas. A origem do nome vem do facto da avó paterna de Rosa recomendar cuidado para a família não se afastar de casa: “Não saiam daqui do perto, ponham-se à sombra dos ramalhos!” – umas árvores que existiam lá por perto. E assim nasceu a referência do “Ramalho”. Aos sete anos, diz a tradição, foi para casa de uma vizinha que modelava bonecos e começou por fazer tiras para cestas, com o intuito de imitar umas ciganas, por quem tinha passado um dia, e que faziam cestas em vime. O pai, Luís Lopes, era sapateiro, e a mãe Emília Barbosa, tecedeira. Rosa não foi à escola. Aos 18 anos casou com o moleiro António Mota e teve oito filhos, dos quais cinco vingaram. Durante quase cinquenta anos trabalhou com o marido no moinho e criou os filhos, dedicando-se ao barro por puro divertimento e para ilustrar histórias para os filhos, revelando sempre prodigiosa criatividade.
Com a morte do marido, em junho de 1956, com 68 anos, abandonou a profissão de moleira e encontrou no barro o modo de se exprimir – o que lhe permitiu encontrar um novo sustento, sobretudo em face na recetividade de quantos apreciavam a sua arte. Começou a frequentar feiras e romarias, principalmente, pela região do Porto. Foi então que despertou a curiosidade de mestres e estudantes da Escola Superior de Belas Artes do Porto. A sua presença nas feiras e a curiosidade da televisão e da imprensa, bem como a atenção de poetas e artistas levou ao conhecimento público desta expressão genuína do artesanato português. Tudo foi muito rápido. Em 1958, Jaime Isidoro desenhou “RR” num papel e disse-lhe que aquelas duas letras significavam o seu nome e que seriam o suficiente para que as suas peças fossem reconhecidas e tivessem um símbolo de autenticidade. A partir daí, todos os bonecos de Rosa passaram a ter esse monograma, referência decisiva para a afirmação da identidade do seu artesanato.
Rosa ganhou popularidade. Começou por fazer figurado em “chacota” (barro por cozer) pintada de verde, vermelho e azul e sem pintura. Só mais tarde recorreu ao vidrado, principalmente o castanho melado, revelando uma grande criatividade, inspirada em cenas do quotidiano popular, como a matança do porco, mulheres nos carros de bois, pombas, músicos, assim como, peças influenciadas pelo mundo místico das procissões, santos e anjos. Para além destas, produziu uma vasta obra ligada ao universo infantil e ao que designava como “mundo dos monstros” - lobisomens, feiticeiras, diabos, bichos informes, que marcaram um imaginário enigmático e original, ligado às origens míticas tradicionais, do fundo céltico. Esta vertente da sua obra, fantasmagórica e inimaginável, distinguiu-a de tantos outros barristas desta região, dando-lhe um reconhecimento público que, ainda hoje é notório. Com inúmeras exposições por todo o país e além-fronteiras, Rosa era procurada na sua própria casa, onde a maior parte das suas peças eram muito disputadas. A fama não lhe mudou a vida. Continuou ela própria, pobre, humilde, simpática, com gestos genuínos e simbólicos. Faleceu a 24 de setembro de 1977, aos 89 anos, mas a sua obra continua a ser uma referência, prosseguida pela sua família.
Estou preparando um texto sobre o Afeganistão. Seguirá na próxima semana.
Entretanto, envio-vos esta carta escrita há oito anos, que, pensossinto, nos poderá ajudar a olhar de outro modo para a gente afegã e a nossa relação com esse povo. Curiosamente, na antiguidade, a região do Afeganistão chamava-se Ariana.
Abraço amigo do
Camilo Maria
Minha Princesa de mim:
Cá estou em New York, no Plaza, escrevendo sentado em frente da janela do meu quarto, aberta sobre o Central Park. Sinto e penso, penso e sinto a imensa, misteriosa ternura em que sempre te trago envolta no coração. Não há nela qualquer luxúria, nem o menor desejo de posse. Sou eu possuído por ela, misteriosamente fiel a esse enlevo, entregue a um movimento da alma que me transporta a contemplar-te, no íntimo de mim, com infinito carinho.
Conta o Génesis que, ao sexto dia, "Deus viu tudo o que tinha feito; e que tudo era muito bom"... Creio que há, no amor humano, uma força criadora: ao contemplar-te como agora, alegro-me como se fosses criatura minha. És um ser de mim, que não posso destruir nem sequer diminuir, mas com quem me enlevo e elevo. É curiosa palavra essa que pronunciamos "ternura". Em latim, talvez devêssemos dizer "pietas" ou "caritas". Não lhe vislumbro melhor tradução. "Pietas" encerra um sentimento de respeito do outro até à compaixão, que não é ter pena, antes é estar e padecer com. "Caritas" é amor e também, porque somos paradoxo, carestia. O amor é caro, não só no sentido da amizade que nos leva a tratar outro por "meu caro", mas porque o que nos é querido, o que benqueremos e a que queremos bem, nos leva a nós também e é difícil: pode custar muito, é caro. A ternura é o amor já manso, ser terno é ser tenro ("tendre" em francês), é aceitar ser comido, como na eucaristia: "eucharistein", em grego, quer dizer "dar graças". É agradecer ao outro esse poder amá-lo.
Durante a Ceia, Jesus oferece-se na partilha do pão e do vinho, seu corpo e sangue. Entre os primitivos cristãos, a celebração da eucaristia era uma verdadeira refeição, partilhada e fraterna, em que todos se reconciliavam com todos e com Deus. O Padre de Beaurecueil, frei Sérgio, testemunhou Cristo no Afeganistão, onde durante décadas foi o único padre cristão ali residente. Proveniente do Instituto Dominicano de Estudos Orientais, fluente nas línguas árabe e persa, foi-lhe atribuída a cátedra de História da Mística Muçulmana na Universidade de Kabul. Vivia numa casinha modesta, onde instalara uma capelinha, cujo orago era Santo Abraão, Pai dos Crentes. Um dos livros em que relata a sua experiência em meio muçulmano intitula-se. "Nous avons partagé le pain et le sel"...
Na verdade, ganhara o hábito de partilhar todas as semanas, alternadamente em sua casa ou na de outro conviva, uma refeição com muçulmanos. Nessa ocasião cumpriam o costume afegão da partilha do pão e do sal, como compromisso de amizade fraterna. Do pão que lhe cabia, guardava então um pedaço que, ao cair do dia, quando se recolhia na sua capelinha e aí celebrava missa, consagrava. Num texto admirável que dedica ao seu confrade e mestre, padre Chenu, cita um versículo da primeira carta de S. Paulo aos Coríntios: "Porque há um só pão, todos nós juntos formamos um só corpo, pois todos nós temos parte nesse pão único". E, mais adiante escreve: "Na solidão da minha capelinha partilho o pão, como fez Jesus, como fazem os meus irmãos... Reúno, confundo, o seu gesto com o deles. Torno-me num só Corpo com Ele, como me tornei num só Corpo com eles. Em mim se opera o Encontro, jorra a Água viva que os desaltera,escorre o Sangue que os purifica... E este mistério só se realiza porque, antes de subir ao altar, humildemente, com infinito amor e respeito, correspondendo ao seu convite fraterno, com eles partilhei o pão e o sal". E falando do Dia do Juízo, na sequência das palavras de Jesus ("tive fome e destes-me de comer"...), diz: "Não lhes perguntarão se eram budistas, cristãos, muçulmanos, judeus, sikhs ou hindus. Não lhes perguntarão se jejuaram ou se cumpriram fielmente as suas orações. Julgá-los-ão pela partilha do pão e do sal, pela hospitalidade, pelo amor".
Soube-me bem voltar à leitura - a este convívio interior - do nosso frei Sérgio. Sinto-me próximo dele, não porque a ele me possa comparar, mas pelo acolhimento que ele me oferece. Recolhi-me a esta proposta de partilha do pão e do sal, depois de ter assistido, esta tarde, à ópera "Candide" do Leonard Bernstein no New York City Opera, sito também no Lincoln Center, em frente do MET. Gostei da animação da música, do tratamento lúdico que ela dá ao romance que Voltaire criou ... Quiçá para se desembaraçar de exercícios filosóficos que pretendem contestar Deus e explicar o Mal! Ou simplesmente para nos contar uns anos da sua vida! "Candide, ou l´Optimisme", afinal, joga e brinca com o mito dos paraísos perdidos, da ilusão ou efemeridade da sua redescoberta...
O filósofo Pangloss, que propõe a ideia ou a ilusão da felicidade alcançável, é morto em Lisboa, significativamente enforcado - em vez de queimado - pela Inquisição. Numa Lisboa que o terramoto de 1755 não poupou, merecendo aliás de Voltaire o "Poème sur le désastre de Lisbonne" que, até certo ponto tem ressonâncias bíblicas e "pascalianas". Só que Pascal dirige a Deus as interrogações do desamparo humano, e Voltaire, mesmo no jeito gozado do "Candide" não escapa à tentação da revolta. Contudo, ainda acho sublimes estes versos do "Poème: "L´homme, étranger à soi, de l´homme est ignoré. / Que suis-je, où suis-je, où vais-je, et d´où suis-je tiré? / Atomes tourmentés sur cet amas de boue, / Que la mort engloutit et dont le sort se joue... / Au sein de l´infini nous élançons notre être, / Sans pouvoir un moment nous voir et nous connaître." Mas no romance, até Pangloss acaba revivo, para poder contestar a Candide, que lhe pergunta se, mesmo quando enforcado, etc... continuava a pensar que tudo corria pelo melhor no mundo: "Mantenho o meu primeiro sentimento, porque afinal sou filósofo: não me convém desdizer-me, pois Leibniz não pode enganar-se, e a harmonia pré-estabelecida é a coisa mais linda do mundo..." Candide casa-se com Cunégonde e, no sossego produtivo e abastado em que vivem, encerra o romance dizendo: é preciso cultivar o nosso jardim."
Enquanto para Voltaire, tudo sendo tragédia ou ilusão, a cura ideal é outra ilusão, para o dominicano Sérgio de Laugier de Beaurecueil, há no coração do mundo uma íntima comunhão com Deus, os outros e tudo... Só entrando nela vencemos o absurdo e a ilusão, e chegamos a esse espaço de luminosa alegria, para exclamar :"Tudo é graça!”.
Camilo Maria nem em New York esquecia o "seu" Bernanos.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 19.07.2013 neste blogue.