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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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   (XXIII) VOLTANDO À CASA DE PASCOAES

 

Como nos aconselhou Garrett, continuamos a deambular ora pelas terras ora pelo nosso quarto, como Xavier de Maistre, porque “o prazer que se encontra em viajar dentro do seu quarto está ao abrigo da inveja inquieta dos homens e não depende da fortuna”…  E voltamos a encontrar Teixeira de Pascoaes, não tanto o da “Arte de Ser Português”, mas o inesgotável poeta que soube unir, como salientou Unamuno, a lírica e a tragédia. Nascido a 2 de novembro de 1877 na freguesia de São Gonçalo de Amarante, morreu a 14 de dezembro de 1952 no Solar de Pascoaes em Gatão. Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos era filho de Carlota Guedes Monteiro e de João Pereira Teixeira de Vasconcelos, deputado às Cortes por Amarante e agricultor de boa fazenda e inesgotável conversador, conhecedor profundo das raízes culturais da língua e do povo. O filho era "homem cabisbaixo, sisudo, com uns olhos tristes e espantados", que fez o curso oficial no Liceu de Amarante, onde teve os seus primeiros versos publicados no "Flor do Tâmega", partindo em 1896 com 18 anos, para Coimbra, para cursar Direito. Ainda nas margens do Tâmega, com 17 anos, publicou no Porto "Embriões" (1895). E em 1896, já a estudar em Coimbra, editou "Bello", "Sempre" e "Terra Proibida", onde Jacinto do Prado Coelho já nota “a imaginação do abstrato, o sentimento religioso das coisas, que tornariam inconfundível a sua poesia".

 

Convive com Augusto Gil, Afonso Lopes Vieira, Fausto Guedes Teixeira e João Lúcio, mas não vive a boémia coimbrã, já que, segundo Jacinto do Prado Coelho, «o verdadeiro amor de Pascoaes dirigia-se à natureza, ao silêncio, ao mistério, aos fantasmas. O mundo fantástico era o seu mundo." Em Amarante, começa a exercer advocacia. Em 1906, abre escritório na Cidade do Porto, onde conhece Leonardo Coimbra, Raul Brandão, Jaime Cortesão e António Patrício. Em 1911, é nomeado juiz substituto em Amarante, cargo que abandonará, refugiando-se na Casa de Pascoaes, buscando uma vida solitária e sem sobressaltos, em sintonia com a Natureza, escolhendo "só ser poeta". Depois de 5 de outubro de 1910, com a proclamação da República, participou ativamente na ideia de ressuscitar a Pátria, arrancando-a do túmulo da obscuridade física e moral “em que os corpos definharam e as almas amorteceram”. Assim, Pascoaes dirigirá a revista "A Águia," entre 1912 e 1916, à frente de um grupo de intelectuais portuenses, sob a bandeira da “Renascença Portuguesa”, no qual se distinguem António Carneiro, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Álvaro Pinto e Mário Beirão. A ideia de saudosismo, de uma saudade feita de lembrança e desejo, havia sido agravada pelo Ultimato inglês de 11 de janeiro de 1890. De algum modo, Pascoaes é um herdeiro da Geração de 70, procurando dar ao progresso geral da humanidade e da natureza uma orientação natural e positiva através da História, subjacente aos "vencidos da vida", elevando o culto da saudade e da sua essência espiritual, que considera arreigado na literatura lusitana, desde os trovadores, de D. Duarte ou de Bernardim.

 

O saudosismo não é, porém, marca única de Pascoaes. Veja-se, por isso, a relação do poeta de Amarante com os seus contemporâneos, segundo Onésimo Teotónio de Almeida. «Fernando Pessoa viu em Pascoaes uma “gravidez do Divino” e adotou várias facetas da sua visão ao elaborar o projeto da Mensagem». E António Sérgio distinguiu em Pascoaes sempre o poeta das ideias mítico-filosóficas. Tratando-o sempre com dignidade. Quase quarenta anos após a polémica do saudosismo, a Academia de Coimbra homenageou Teixeira de Pascoaes através de um volume reunindo poemas e estudos sobre o autor de Marânus. O organizador do volume, Joaquim de Montezuma de Carvalho, convidou António Sérgio a participar e este acedeu prontamente, para não faltar numa homenagem “tão justa”. Se tinha levantado reparos ao nacionalismo estético-psicológico-político, criou-se a lenda de Sérgio ser adverso “a um eloquentíssimo poeta que sempre admirei e amei”.

 

A intelectualidade portuguesa rodeava Sérgio, e nos seus ensinamentos bebia inspiração para a almejada transformação da mentalidade do país. Se não custava a Sérgio ser magnânimo, não era obrigatório que o fosse. As verdadeiras razões da sua participação na homenagem são-nos, todavia, fornecidas pelo próprio António Sérgio em curtos mas lapidares parágrafos. Sérgio considera que o maior defeito do nacionalismo estético de Pascoaes é ser muito injusto para o próprio poeta, por esbater nele o que há de mais “valioso e intrínseco”, algo mesmo excecional na poesia portuguesa, profundamente marcada pela melancolia. Em contracorrente, Pascoaes é “o mais romântico de todos os escritores portugueses na modalidade mais nórdica que o alto romantismo assumiu”. Além disso, a sua poesia é “um protesto contra o Deus demiúrgico, contra a Divindade criadora do Testamento Antigo”. “As dores de quem sente, Pascoaes transfere-as por imaginação para o conjunto das coisas que espontaneamente humaniza”, o que é também invulgar na nossa lírica. “Em tal grau se dá nele a transmigração para as coisas, que nos poemas mais íntimos, de mais autêntico lirismo, ele se esquece dos homens como seres individuais e distintos, como mais próximos do poeta, reduzindo-os a elementos do grande ambiente físico, que é a personagem capital da sua obra poética; e de aí o aparecimento deste verso estranho, à primeira vista inumano: “as pessoas são nada, e as coisas tudo”. O supostamente positivista Sérgio “revela a sua idiososincrásica luminosidade, separando de modo clarividente o que se analisa à luz da razão, do pertencente a esferas íntimas do espírito humano, sempre conservando a serenidade e o discernimento necessários para reconhecer a diferença” – como salienta Onésimo T. Almeida (A Saudade e os Saudosistas – Uma Revisitação da Polémica entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes, Via Atlântica, n.º 7, outubro 2004).

GOM

 

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 23 a 29 de agosto de 2021

 

“O Homem que só Queria ser Tóssan” foi editado por João Paulo Cotrim (“Arranha Céus”, 2021). São três volumes um sobre a obra gráfica e dois sobre a produção escrita – “Lógica zoológica. Frutos e desfrutos. Animalia. Contos e Descontos” e “Versos côncavos e com versos”.

 

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O FARO DE UM CÃO

«Se o faro de cão / está mesmo no cão / o cão tem faro. // Se o faro é do cão / o cão é de Faro / o faro é do cão. // Mas se fareja e cheira / é de Albufeira. // E se tem olho o cão / e ladra a ladrão / o cão é de Olhão. // Se curva e vira / é de Espinhaço de Cão / ou de Tavira / ou até de Portimão. // Mas se ferra o cão… / não é algarvio, não!». Em boa hora escolhi como leitura de um fim de semana algarvio bem passado “O Homem que só Queria ser Tóssan”, editado por João Paulo Cotrim, na “Arranha Céus”, com o apoio do Município de Loulé, que me foi oferecido pelo meu amigo Vítor Aleixo. São três volumes imperdíveis, um sobre a obra gráfica e dois sobre a produção escrita – “Lógica zoológica. Frutos e desfrutos. Animalia. Contos e Descontos” e “Versos côncavos e com versos”. Conheci Tóssan, António Fernando dos Santos, em Albufeira nos anos sessenta e sempre me deleitei com o traço fino e irónico dos seus desenhos e a personalidade das suas personagens. Nascido em Vila Real de Santo António, foi nos seus amigos de Coimbra, como António Almeida Santos (cujos contos de “Rã no Pântano” ilustrou), que encontrei inesquecíveis recordações. As caricaturas dos estudantes eram pagas a 30 escudos por unidade ou com latas de quilo de fiambre. E lembramos as caricaturas de José Régio, Teixeira de Pascoaes, Paulo Quintela, Lins do Rego, Alves Redol, Bertold Brecht… Tivemos uma referência comum, o Dr. Joaquim Magalhães, com quem discreteava, caminhando na rua de Santo António em Faro, quando ia entregar a crónica para o “Diário de Notícias”. A memória de António Aleixo e o humor de Tóssan eram temas de conversa – para além da invocação de Antero de Quental, de Eça e desse grupo heroico…  Foram o professor do Liceu de Faro e o relojoeiro de Loulé José Rosa Madeira os primeiros a darem atenção ao poeta popular. O caso de António Aleixo impressionou desde cedo Tóssan. “O contacto diário com ‘o poeta-cauteleiro e antigo guardador de cabras’ (…) no Sanatório dos Covões, a partir de junho de 1943, colocou-o perante a descoberta impactante de uma literatura oral com laivos filosóficos e políticos que a todos surpreendia pela acutilância e alcance humanista”, diz Vasco Rosa. O “Auto do Curandeiro” resultou do encontro de Tóssan com Aleixo. É de Tóssan o mais célebre retrato de Aleixo, de 1943, que Manuel Viegas Guerreiro popularizou junto dos estudantes dos liceus.

 

UMA CORUJA DE CARICATURA

Houve um período em que teve uma função essencial nas relações culturais com o Brasil. O embaixador Alberto Costa e Silva não lhe poupa elogios sobre o tempo do Presidente JK: “Tóssan, grande e gordo, tinha cabelos abundantes e negros que formavam tufos nos lados, usava uns óculos enormes, que aumentavam a vivacidade do olhar e o faziam parecer uma coruja de caricatura”. No Palácio Foz deu vida após 1974 a um breviário da cultura democrática na editora “Terra Livre” e multiplicou ilustrações para as crianças e os jovens, colaborando, por exemplo, com Leonel Neves. Tóssan não se levava a sério: “gordão, bonacheirão, / satisfeito, rezingão. / Carregado de pecados, / viajado, / arreliado, / mal-disposto / malcriado…”.  O teatro apaixonou-o sempre, desde o Lethes e do TEUC. O desenho era o modo de pôr a gente em ação, daí o entusiasmo de crianças e adultos com as suas ilustrações. Mário Viegas levou à cena “Tótó” com um conjunto extraordinário de textos de Tóssan. Teatro e vida confundiam-se. “O teatro diminui a luz como quem desce as pálpebras aos poucos (…). Uma mala de senhora atirou-se de um camarote para a plateia. Todos se levantam. Todos se sentam. Todos comentam. Um tosse; tossem todos. (…). Mas mal abriu a cortina, o público ficou natureza-morta – apenas se ouvem os olhos dos espectadores a devorarem a cena…”.

  

ODE AO FUTEBOL

E o mais célebre dos poemas de Tóssan: “Retângulo verde, meio de sombra meio de sol / Vinte e dois em cuecas jogando futebol / Correndo, saltando, ziguezagueando / ao som dum apito / Um homem magrito, também em cuecas / E mais dois carecas com uma bandeira / De cá para lá, de lá para cá / Bola ao centro, bola fora. / Fora o árbitro! / E a multidão, lá do peão / Gritava, berrava, gesticulava / E a bola coitada, rolava no verde / Rolava no pé, de cabeça em cabeça / A bola não perde, um minuto sequer / Zumbindo no ar como um besoiro, / Toda redonda, toda bonita / Vestida de coiro. / O árbitro corre, o árbitro apita / O público grita / Gooooolllllooooo! / Bola nas redes / Laranjadas, pirolitos, / Asneiras, palavrões / Damas frenéticas, gordas esqueléticas / esganiçadas aos gritos. / Todos à uma, todos ao um / Ao árbitro roubam o apito / Entra a guarda, entra a polícia / Os cavalos a correr, os senhores a esconder / Uma cabeça aqui, um pé acolá / Ancas, coxas, pernas, pé, / Cabeças no chão, cabeças de cavalo, / Cavalos sem cabeça, com os pés no ar / Fez-se em montão multidão. / E uma dama excitada, que era casada / Com um marinheiro distraído, / No meio da bancada que estava à cunha, / Tirou-lhe um olho, com a própria unha! / À unha, à unha! / Ânimos ao alto! / E no fim, / perdeu-se o campeonato!”

 

Guilherme d'Oliveira Martins