Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

rigor evocativo.jpg
    Christine Borland

 

  Rigor evocativo


Ouço dizer que também existem muitos sinais de sementes que iniciaram a viagem ajudadas pelo sopro da terra.

Desconheço o caminho que levaram e onde acampam bem como o descaramento com que são recebidas nos locais de descanso.

Soube que uma semente fêmea foi raptada para negociatas debaixo de uma árvore que secou.

Também escutei que um legista terá escrito na sua douta tábua, as consequências da ideia da partida das sementes, o seu perder automático de filiações e heranças de mérito e demais punições de ajuste.

Uma estrela tingida chegou a descer, e na qualidade de médica, plantou um tantito de semente num vaso, mas não regou.

Começaram então as sementes a deixar ovos sob a terra como as tartarugas, descurando que o homem do bastão de marfim, usava-o para o espetar no chão e com uma guita de aço prendia qualquer ser que abalasse do seu controlado cemitério.

Mas, não é que não obstante as emboscadas, o sofrer imposto pelos saqueadores das esperanças, os falsos e velhacos desfiladeiros, os conluios, os currais de mudas vazios, não é que os caminhos se abriram e se distribuíram num repente pois os pensamentos das sementes eram todos navegadores incansáveis.

O fumo dos homens por todo o lado…só fumo.

O pão, aquele que nos dá todas as feições vivas, tornou-se o agricultor das nossas sandálias saciadas.

Assim, natural e elaborado como a fuga das sementes.

 

Teresa Bracinha Vieira

SOU UM CORPO QUE DIZ "EU"


Conta-se que, uma vez, estava um miúdo com a mãe, junto ao cadáver da avó. A mãe explicou ao filho: "Vês? Agora, o corpo vai para a Terra, a alma foi para Deus. Quando eu morrer, o meu corpo vai para a Terra e a minha alma vai ter com Deus. Depois, quando tu morreres, também vai ser assim: O teu corpo vai para o cemitério; a tua alma vai ter com Deus". E o miúdo, aflito, perguntou: "E eu?"


Esta pequena história, na sua aparente ingenuidade, ilustra bem todo o enigma da constituição humana. O pensamento enveredou frequentemente pelo dualismo, que quer exprimir uma tensão vivida: eu sou um corpo que diz eu, mas ao mesmo tempo penso-me como tendo um corpo, pois o eu fontal parece não identificar-se com o corpo. Parece haver no Homem um excesso face ao corpo, experienciado, por exemplo, na possibilidade do suicídio: Eu posso matar-me. Mas, por outro lado, eu não sou uma alma que carrega um corpo, à maneira de uma coisa que eu tivesse. Vivo-me desde dentro como sujeito corpóreo, um corpo-sujeito e matéria pessoal. O meu corpo sou eu mesmo presentificado, é a minha visibilização, sou eu próprio voltado para os outros. Numa concepção dualista de alma e corpo, os pais não seriam realmente pais dos filhos, mas apenas de um corpo que transporta ou é transportado por uma alma que viria de fora...


Vergílio Ferreira, referindo-se ao enigma humano, escreveu num misto realista, dramático e sublime: "Um corpo é o que em obra superior ele produz. Como é fascinante pensá-lo. Um novelo de tripas, de sebo, de matéria viscosa e repelente, um incansável produtor de lixo. Uma podridão insofrida, impaciente de se manifestar, de rebentar o que a trava, sustida a custo a toda a hora para a decência do convívio, um equilíbrio difícil em dois pés precários, uma latrina ambulante, um saco de esterco. E simultaneamente, na visibilidade disso, a harmonia de uma face, a sua possível beleza e sobretudo o prodígio de uma palavra, uma ideia, um gesto, uma obra de arte. Construir o máximo da sublimidade sobre o mais baixo e vil e asqueroso. Um homem. Dá vontade de chorar. De alegria, de ternura, de compaixão. Dá vontade de enlouquecer".


O corpo humano é corpo pessoal, na tensão da inevitabilidade de morrer e do desejo de uma espiritualização crescente para uma personalização eterna. O corpo humano é corpo falante, e a palavra é o sentido encarnado — com a palavra dizemos o mundo, dizemo-nos a nós mesmos, comunicamos, abrimo-nos à questão da Transcendência —, de tal modo que pelo facto de falar o corpo humano será sempre misterioso. Nâo cabe numa concepção naturalista do real.


É infinitamente estranho e enigmático o significado de dizer "eu". Só cada um o pode dizer de si mesmo, com sentido único e irrepetível. Não é universalizável. Ninguém pode dizer "eu" na vez de outro. Precisamente por isso, ninguém sabe o que é exactamente ser outro, outro eu, ninguém pode viver-se plenamente a partir de dentro de outro, ninguém pode conceber o mundo visto pelo outro, por outro eu. O outro - outro eu, mas sobretudo um eu outro - é irredutível. É absolutamente fascinante perguntar-se a si próprio: como será o mundo a partir dali, daquele olhar, daquele olhar do outro - olhar não apenas externo, mas interior? Como é que ele me vê? O que se passará nele/nela, dentro dele/dela, quando me vê, quando me observa, quando pensa em mim, quando diz que me ama? Se nos fosse possível ir lá dentro!... O que é que aconteceu para que o bebé, que começa por parecer um "embrulhinho" (perdoe-se a expressão terna), inicie um processo de dizer-se, que vai do neutro - o menino, a menina, o Vítor, a Rita... - até ao soberano eu, donde tudo parece partir para tudo dominar?


Mas não é apenas o eu do outro que é enigmático. O meu próprio eu é enigma para mim. Quando tentamos ver-nos a nós próprios à distância, em miúdos, quando andávamos na escola, por exemplo, ao dar connosco, sabemos que somos nós, mas ao mesmo tempo vemo-nos de fora: somos os mesmos, mas de outro modo. E vamos ao espelho, admirados: “Eu sou este?”. Até no presente, por mais que objective de mim, há sempre um reduto último - parte da subjectividade - que resiste à objectivação, não havendo nunca coincidência entre o eu objectivo e o eu subjectivo.


Vejo-me, sem ver-me adequadamente, de tal maneira que, na medida em que procuro mergulhar até à ultimidade de mim, é como se desaparecesse no nada. Mas, descendo até ao abismo de mim, aquele aparente nada com que deparo é o véu de mim enquanto inobjectivável, isto é, enquanto pessoa e não coisa. Precisamente aí - no eu irredutível - posso encontrar-me com o mistério do Deus criador. É com esse milagre do eu enquanto pessoa, fim e não meio para nada nem para ninguém, que se defrontam, por exemplo, os pais, no encontro com o filho, como escreveu o filósofo Julián Marías: "A realidade psicofísica do filho - corpo, funções biológicas, psiquismo, carácter, etc. - 'deriva' da dos pais, e neste sentido é 'redutível' a ela. Mas o filho que é e diz 'eu' é absolutamente irredutível ao eu do pai bem como ao da mãe, igualmente irredutíveis, é claro, entre si. Não tem o menor sentido controlável dizer que 'vem' deles, pois eu não posso vir de outro eu, já que este é um 'tu' irredutível. Neste sentido, a criação pessoal é evidente. Isto é, o aparecimento da pessoa - de uma pessoa - enquanto tal é o modelo daquilo que realmente entendemos por criação: a iluminação de uma realidade nova e intrinsecamente irredutível".

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 de setembro de 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Wall House #2


“Short silence
of stone and concrete
far away sounds
then children’s voices
cars passing
louder and louder
peeling plaster
the creaking of wood
the swinging cables
then again silence”, John Hejduk


A arquitetura é espaço formado, um vazio limitado, é matéria em transformação. É a ligação entre o eu e o mundo.


Na Wall House #2 (Groningen, 2001) John Hejduk (1929-2000) consegue formar o espaço dos movimentos mais primários. É uma casa conceito. É uma casa dividida. É uma casa virada do avesso. Da enorme parede saiem todos os volumes que constituem a casa.


A parede tem uma enorme importância e significado. É a transição concretizada entre o público e o privado, entre a aceleração e a vagarosidade, entre o passado e o futuro, entre a agitação e o silêncio, entre duas vidas, entre um ser e o outro, entre o todo e o nada. A parede é a possibilidade de trazer à luz os padrões de comportamento de quem habita a casa - é necessário passar a parede para ir de uma divisão para a outra. É a presente esperança de dividir emoções, de diferenciar modos de vida e de fragmentar o ser que aí habita.


A Wall House #2 faz parte de uma série de 24 casa projetadas por John Hejduk nos anos setenta. Uma casa para Hejduk é uma camada que protege, para além da pele e da roupa - por isso tem sempre algo de humano, as suas formas são necessariamente antropomórficas. Na verdade, a Wall House #2 nunca foi pensada para ser habitada - é um modelo puramente teórico e abstrato.


Nesta casa, o conceito de espaço precede todo o objeto construído. Consegue-se aqui ler a influência do cubismo e sobretudo a influência de Le Corbusier. Todos os limites plásticos do tempo e do espaço são postos em causa. É uma casa dinâmica cuja conceção espacial se baseia na interpenetração incessante do espaço interior e do espaço exterior e de vários tempos. A forma da casa sugere várias dimensões - é fantasia palpável submetida à subjetividade de cada corpo que a ocupa. Porém cada volume tem uma função específica. Todos os volumes através da sua forma e da sua cor são claramente identificáveis pelo exterior.


Tal como nas casas de Le Corbusier, a Wall House converte-se num campo de improvisação plástica desencadeada pelas condicionalidades da vida doméstica, dando assim origem à promenade architecturale – porque como se lê em Por uma Arquitetura: “A planta traz em si a essência da sensação.” O corredor de 25 metros é a materialização e o começo da promenade architectural. É o espaço que permite reduzir a velocidade. É o volume mais longo e mais estreito e revela o que nunca se vê. Concede que a transição entre a rua e o espaço interior da casa não seja abrupta.


Com a Wall House, Hejduk reintroduz a múltipla intersecção entre a casa - o volume - o espaço - o tempo. A nossa perceção acerca do mundo fica assim renovada, porque se cria a síntese necessária e dinâmica de um objeto em todas as suas infinitas dimensões e talvez assim poder-se-á apreender a realidade tal como é.


"I believe in the density of the sparse. I believe in place and the spirit of place.” John Hejduk

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

22044523_AYkGP.jpeg
  De 27 de setembro a 3 de outubro de 2021

 

Quando hoje nos deparamos com a capa da revista “O Tempo e o Modo”, nascida em janeiro de 1963, encontramos, ao lado do fundador António Alçada Baptista, os nomes de dois futuros Presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio.

 

sampaio.jpg

 

CULTURA COMO MEIO NATURAL

De facto, o grupo que criou a nova revista, como testemunhou João Bénard da Costa, tinha um certa consciência de que algo de novo se preparava nos meios culturais portugueses. E mais do que os caminhos novos e plurais, era a própria ideia de democracia que estava em causa, onze anos antes da sua consagração efetiva através do Movimento das Forças Armadas, em 25 de abril de 1974. A presença do jovem Jorge Sampaio era significativa. Dirigente estudantil de um movimento marcante, escreve na revista, com Jorge Santos, um texto emblemático “Em Torno da Universidade”, no qual afirmam: “uma vez que haviam tomado consciência do papel que tinham a desempenhar na vida nacional, uma vez que tinham bem presente as suas responsabilidades perante a Nação, uma vez ainda, que a Universidade deixara de ser o tal ‘vase clos’, a tal corporação hermética dos tempos passados, os estudantes passaram a ocupar-se dos seus problemas de uma forma que, frequentemente saindo do ‘casulo universitário’, atinge o plano da própria vida política do país. (…) Entraram decisivamente a preocupar-se com o problema do alargamento do ensino ao maior número possível de jovens; começaram a exigir sistemas de subvenção de estudos, de seguros sociais para estudantes, de assistência médica estudantil etc.”. Hoje, quase parece profética essa convergência de contributos diferentes no pensamento e na ação, e a verdade é que a história da revista “O Tempo e o Modo” é bem ilustrativa de como a democracia se preparava, abrindo horizontes, mobilizando ideias diferentes e até contraditórias. As heterodoxias contrapunham-se às ortodoxias e o resultado era a emergência do cadinho das ideias democráticas que se afirmava.

Se refiro este momento emblemático, faço-o para salientar como a cidadania política é algo que não se faz instantaneamente, nem com ilusões de certezas absolutas. Quando lemos a biografia modelar de José Pedro Castanheira, percebemos em Jorge Sampaio um caminho feito de tentativas e erros, mas de uma essencial coerência. E a vida política é apaixonante porque é de riscos extremos. O estudo da história política corresponde à análise de uma sucessão de êxitos e de naufrágios, de persistência e de recuperação, e é preciso haver essa clara consciência. Por isso, Mário Soares disse que só é vencido quem desiste de lutar. O exemplo de Jorge Sampaio é o de alguém que sempre compreendeu que a política tem de ser assumida com independência e sentido de serviço público. Os valores éticos e as causas da cidadania são essenciais, mais importantes do que o sucesso fácil e imediato. Brilhante advogado, jurisconsulto de mérito, defensor ativo dos direitos humanos com todas as consequências, como demonstrou internacionalmente quando esteve no Conselho da Europa, no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ainda hoje há quem recorde em Estrasburgo o período em que Jorge Sampaio se ocupou ativamente desses sempre complexos temas.

 

LIBERDADE AUTÊNTICA

Com uma apetência especial para as questões da criação cultural e da sensibilidade artística, deve dizer-se que o político foi moldado por essa especial ligação a essas questões. De facto, a liberdade autêntica constrói-se pela compreensão da complexidade, da capacidade criadora, da incerteza, da dúvida e do sentido crítico. Melómano conhecido, que gostaria de ter sido maestro, Jorge Sampaio amava os grandes autores e as suas obras musicais – Mozart, Beethoven, Chopin, Mahler, Schostakovich. Como leitor ativo de prosa e poesia, era ainda um amante da boa dramaturgia, e também um cultor da memória enquanto património vivo. Com sua Mãe falava indiferentemente em português e inglês – e a literatura e o jornalismo anglo-saxónicos eram-lhe familiares. Nascido de uma família com raízes muito antigas e arreigadas, em que os Bensaúdes, a diáspora e os Açores tinham uma marca forte de abertura, diversidade e apego à liberdade, a Cultura, ou a sensibilidade das artes, era para Jorge Sampaio um meio natural. Assim como, no texto de 1963, para o jovem que há pouco deixara os bancos da universidade ficava clara a necessidade de abertura de horizontes, em lugar da claustrofobia dos ambientes fechados, das soluções herméticas, essa abertura só seria possível se as liberdades fossem conquistadas, já que o valor da cultura obrigaria à democracia – numa ligação íntima entre cultura e liberdade. Daí que a identidade nacional só se enriqueceria de modo aberto, exigindo uma ligação entre cultura, educação e ciência. Afinal, haveria que compreender que “a educação é uma espécie de lugar geométrico de três grandes desígnios cívicos: desenvolvimento, democracia e emancipação individual.” (27.11.2002). Os avanços realizados nas aprendizagens foram importantes, mas não podem satisfazer-nos só por si, porque os progressos gerais não param, e porque a exigência de qualidade é permanente. O mesmo se diga da absoluta prioridade à ciência, a partir da internacionalização, do diálogo e cooperação com os principais centros mundiais. Daí Jorge Sampaio salientar “o papel absolutamente pioneiro que a Fundação Calouste Gulbenkian teve neste movimento de aproximação dos investigadores portugueses aos centros de excelência sediados no estrangeiro” (15.10.2002). De facto, é incindível o triângulo cultura, educação e ciência, obrigando a que a capacidade inovadora do artista permita compreender o impulso criador do cientista, e a afinação de um instrumento de precisão se assemelhe ao que permite ao instrumento musical dar maior fidelidade ao desejado pelo compositor.

 

O PATRIMÓNIO E A LÍNGUA

“O património histórico-cultural é por natureza diverso. Ele alimentou-se de uma tensão entre interno e externo, entre local e universal, entre elites e povo, entre exclusão e integração, entre uniformidade e alteridade. (…) Conservar é promover uma reaproximação. É, portanto, reinterpretar, de acordo com critérios e expectativas do presente. Finalmente porque a identidade de uma sociedade não é um dado imutável, é, isso sim, uma aquisição permanente, um processo continuo entre o passado e o desejo do futuro” (10.10.1996). As raízes históricas apenas podem ser entendidas pela compreensão deste movimento imparável – o que nos permitirá entender, no património imaterial, que “a língua que falamos não é apenas um veículo funcional e utilitário de comunicação, molda o que pensamos e o que sentimos, leva-nos ao mundo e traz-nos o mundo. A língua que falamos exige que a renovemos, que a recriemos, que a amemos. (…) Quando ouvimos falar o português nas vozes dos outros povos, sentimos que a nossa voz se amplia nessas vozes e que o futuro começa na língua que falamos” (6.12.2004). E assim uma cultura aberta e plural constitui-se fundamento da liberdade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM


Minha Princesa de Além:

 

   Ainda muito limitado pela minha dificuldade de locomoção, faço longos passeios interiores e chego até ti na companhia de poetas e músicos, desses amigos que frequentávamos juntos e nunca nos negaram presença amiga. Por estes dias, ocorreu-me a lembrança de que para Basho o tempo seria um viajante e a própria vida uma viagem. Fui logo ler o prefácio que o poeta escreveu para o seu Oku no hosomichi, isto é, a vereda de Oku, região por onde peregrinava. Reza assim: «O tempo é um eterno passageiro. Os anos que passam também são viajeiros...  ...Muitos são também os antigos que morreram em viagem. Até eu tenho, desde não sei quando, levado pelo vento e pelas nuvens, um desejo de partir em viagem sem destino, que me não larga. 


   Andar por aí sem constrangimento nem destino, ao sabor do vento, como significa o termo japonês furari, talvez seja modo privilegiado de me despertar para o maravilhamento com que qualquer instante me pode surpreender. E ajudar-me-á a sentir um haiku, na sua simplicidade breve, com todo o lirismo da minha alma:


Aroma de flores de ameixeira
pela vereda dos montes;
súbito surge o sol!


   Não tive de me deslocar fisicamente: encontrei o Basho em peregrinação interior. Assim também me vou encontrando contigo, Princesa tão silenciosa no teu Além, sobretudo em companhia do Issa, o poeta de haiku que prefiro:


Vinde a mim
brinquemos juntos,
pardalitos sem pais


A neve derreteu
a aldeia inundou-se 
de crianças!


«Apanha-me
a bela lua!»
pede chorando uma criança


   
O nosso coração enche e dá vida a tudo: aos pardalitos perdidos de um ninho que a tormenta derrubou e deixou sem pais, à praça de uma aldeia que o frio invernal despira de crianças que ora regressam, ao impossível desejo de um menino que, como Calígula, quer para si a lua! Tudo é surpresa, tal como a Primavera que o olor das flores de ameixeira anuncia e o sol vem visitar...


   Jiro Taniguchi, mestre de banda desenhada, no seu Furari (Ao Sabor do Vento), imagina o encontro do protagonista andarilho com o poeta Issa: também este é vagamundo, vai andando sempre sem saber para onde, e ao luar de Agosto dá graças por iluminar a noite e um cantinho do seu coração. Por nos perdermos afinal nos encontramos.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

REFERÊNCIA A JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA


A morte muito recente de José-Augusto França justificará esta referência aos principais momentos da sua dramaturgia, sem embargo de desenvolvimentos que posteriormente por certo se farão: pois com efeito, a vastidão, variedade mas sobretudo a qualidade da sua obra implica uma posterior e mais vasta pesquisa, sendo certo que sobretudo marcou, e muito, como figura de intelectualidade e criatividade no que respeita à literatura e à cultura portuguesa.


E importa desde já referir que a bibliografia que a cultura portuguesa lhe deve marcará qualquer tipo de abordagem. Impõe-se pois uma pesquisa mais vasta, designadamente mesmo no que respeita à criação dramatúrgica em si mesma considerada.


Seja pois permitido um artigo sobre a dramaturgia criada, neste caso, e para já, a partir do que escrevi acerca da sua primeira peça, “Azazel”, pois concilia de forma notabilíssima o surrealismo com uma raiz clássica que marcou a vasta obra de José Augusto França: menos lembrado como dramaturgo, ainda assim encontramos na sua vasta criação literária um sentido de qualidade/modernidade que como tal deve ser também lembrado. E que justificará outras abordagens que certamente faremos acerca da criatividade literária e artística de José-Augusto França.


E precisamente: nesta primeira e breve abordagem, cito o que escrevi sobre a conciliação estilística alcançada em “Azazel”, peça que concilia de forma notabilíssima o surrealismo com a vocação cénica inerente e exigente.


Vejamos então o que escrevi na “História do Teatro Português”.


“Azazel”, datada de 1956, serve de matriz ou valor referencial entre a surrealismo e a tradição clássica inerente a toda a evolução do teatro em si mesmo considerado. Tal como já tive ensejo de referir, a peça em si mesma mergulha no mito que serve de referência à conciliação/atualidade da cosmologia e no mito inerente à própria inovação surrealista. 


O “bode expiatório” coloca-nos perante um conflito de culpa e responsabilidade em termos próximos de certo existencialismo e numa toada dramática que faz lembrar, em certa medida, os valores correspondentes – liberdade, vinculação, responsabilização – que suportam o ciclo tebano. Com todas as   diferenças e sem a determinação que se confunde com o destino.


E acrescento aí que há algo de clássico na própria construção da peça: a personagem Maria tem algo de Antígona, mas também de Isménia numa simbiose intelectualmente densa e interessante…


Voltarei certamente ao tema, evocando estudos, abordagens e citações de José-Augusto França em referências feitas a propósito de temas e autores diversos, designadamente citados por mim na “História do Teatro Português”. E isto porque muito o citei e com os estudos e livros dele muito beneficiei!...


DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


87. O INÚTIL E O ÚTIL


No texto A Árvore Inútil, o pensador chinês Tchouang-Tseu, discípulo de Lao-Tseu, escreveu:


“Houi-Tseu dirigiu-se a Tchouang-Tseu e disse: “Eu tenho uma grande árvore. As pessoas chamam-lhe árvore dos deuses. O seu tronco é tão nodoso e disforme que não se pode cortar a direito. Os seus ramos são tão torcidos e tortos que se não podem trabalhar com peso e medida. Está à beira do caminho, mas nenhum marceneiro a olha. Assim são as vossas palavras, senhor, e todos se afastam de vós ao mesmo tempo.”   


Tchouang-Tseu respondeu: (…) Porque não a plantais numa terra deserta ou num campo vazio? Aí poderíeis passear na sua proximidade ou dormir à vontade sobre os seus ramos sem nada fazer. O machado e a machadinha não lhe reservam um fim prematuro e ninguém lhe pode fazer mal.


Como é bom que nos preocupemos com uma coisa que não tem utilidade!”


Quando o que vale é o imediatamente útil e vendável, em termos da rentabilidade crescente das necessidades e do consumo, o que é inútil e não instantaneamente funcional e utilizável faz lembrar o vazio. 


Por isso a contemplação, a meditação, o autoconhecimento, o sentir de sentimentos não expressos, o ar que respiramos, a fala que falamos, porque intangíveis, permanentes e invendáveis, há quem os tenha por inúteis, embora seja forçoso compreender que temos que nos preocupar com eles, sem os quais não sobrevivemos.


Nesta perspetiva, o ser útil e inútil não é uma questão de fidelidade a regras abstratas, mas apenas um esforço para termos tanta utilidade ou não utilidade quanto possível.  Que mistério e sigilo se esconde em algo ao mesmo tempo inútil, persistente, duradouro, transversal e não imediatista?


A velocidade do mercado e consumismo atual, agudizado pela velocista e tudóloga internet, converte tudo ao mercado e ao que tem por útil e vendável, com exceção do que tem por pretensamente inútil, este estruturalmente mais durável e menos descartável, consistente, imaterial, memorável e criativo. 


Curiosamente o presumivelmente inútil está mais imunizado contra a exploração comercial e consumista, sendo caso para dizer que é um privilégio ser invendável nestes tempos que correm.


24.09.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

por ocasião do outono.jpg

 

  Por ocasião do outono

 

Por ocasião do outono basta uma só árvore se situar entre a luz e a chuva que começa a descer.

Logo, quem escreve a leitura, atenta os ouvidos às folhas, e com elas a fala do que foi nas praias, na pele do mar, nos espaços dos abraços lá onde tudo esteve.

Por ocasião do outono, as horas suaves são sentidas pela suavidade de um tempo propiciador das palavras com boca. Daquelas que nos emprestam vitrinas nas quais se resolve o hiato dos romances.

Por ocasião do outono, celebramos toda a água caçada por rede de arrasto, em horas que o mar permitiu seus tarefeiros.

Nas igrejas, o presépio, por ocasião do outono, é já o lugar-tempo ao qual se oficia por todas as casas que se não sintam solitárias.

E porque é ocasião do outono, os santos devem segurar os poemas para os deixar voar como todas as folhas, na qualidade de navegadores.

E como o sal também está no trigo, por ocasião do outono, tudo se pode confundir no casco das vidas barco adentro, e que essa realidade cria uma evidência nostálgica, bem o sabe o podador das estações.

 

Teresa Bracinha Vieira

 

O ELOGIO DA ALEGRIA VERDADEIRA

Nietzsche.jpg

 

1  "Faço o elogio da alegria, porque o único bem do Homem é comer e beber e alegrar-se; isto acompanhá-lo-á durante os dias da vida que Deus lhe concede viver debaixo do Sol. Vai, come o teu pão com alegria e bebe contente o teu vinho, porque, desde há muito tempo, Deus aprecia as tuas obras. Em todo o tempo sejam brancas as tuas vestes, e não falte o perfume na tua cabeça. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias que dure a tua vida fugaz que Deus te concedeu debaixo do Sol, os anos todos da tua vida efémera."

Confrontados com este texto, quantos cristãos seriam capazes de identificá-lo como um texto que vem na Bíblia? Realmente, vem na Bíblia e pertence a um livro chamado Eclesiastes ou Qohélet.

Deus foi visto frequentemente como inimigo da vida e invejoso da felicidade dos homens e das mulheres. Já Platão e Aristóteles tiveram de insurgir-se contra essa ideia terrível e nefasta de um Deus que tem inveja da felicidade e alegria dos homens e mulheres neste mundo. E foi precisamente contra um Deus rival do Homem que se insurgiram os chamados filósofos da suspeita na modernidade. O Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, concretamente, contra este mundo como vale de lágrimas, pregou a fidelidade à Terra, à vida e às suas alegrias.

Mas o Deus cristão não é inimigo do Homem nem seu rival. Pelo contrário, é Força criadora, que faz ser tudo o que é e quer a plena realização de todas as criaturas. Alegra-se com a felicidade das pessoas, e está ao seu lado no combate contra tudo aquilo que as diminui.

Como escreveu Santo Ireneu, Deus não é interesseiro nem cioso da sua glória; pelo contrário, "a glória de Deus é o Homem vivo", isto é, a pessoa humana na sua plenitude, plenamente realizada em todas as suas dimensões.

A religião autêntica não é de modo nenhum inimiga da alegria nem do prazer. O que se passa é que também é necessário compreender que a felicidade não é, ao contrário do que se julga, a soma de determinada quantidade de prazeres. Pelo contrário, a felicidade verdadeiramente humana e a consequente alegria expansiva podem até exigir que se renuncie ao prazer imediato. E não se pode esquecer o que disse Jesus: “Dá mais alegria dar do que receber”.

Dito isto, podemos repetir o texto aparentemente pouco ortodoxo da Bíblia, concretamente do Qohélet, um livro melancolicamente pessimista, pois o tempo tudo devora: "Faço o elogio da alegria, porque o único bem do Homem é comer e beber e alegrar-se.” Aliás, exortações do género encontram-se também entre os egípcios, como esta que figura no túmulo de um sacerdote, na necrópole de Tebas: "Vive este dia em alegria, Neferhotep, excelente sacerdote de mãos puras! Mistura o bálsamo e o óleo fino, ornamenta a tua amada, sentada ao pé de ti, com uma coroa de flores de lótus! Que a música e os cânticos ressoem aos teus ouvidos! Afasta qualquer pensamento sombrio e pensa só na alegria até ao dia em que fores levado para o país do silêncio."

 

2  É preciso repetir constantemente: o Deus cristão não tem inveja da realização do ser humano. Pelo contrário. Ele não nos criou para a sua maior honra e glória, mas para que sejamos plenamente felizes. Ele é o Deus vivo e dos vivos. Por isso, em Cristo, promete a vida plena, eterna. Não seremos levados para “o país do silêncio”.

Foi pregado ao longo de demasiado tempo que Deus precisou do sangue do próprio Filho para aplacar a sua ira divina. Pergunta-se: como é que foi possível pregar e acreditar num Deus vingativo e sádico, um Deus pior do que um pai humano decente? ”Quem segue o pensamento da morte expiatória de Jesus tem de responder à pergunta: quem é e como é o Deus que exige a expiação e a aceitou. A resposta supõe que Deus Pai só com a morte de Jesus na cruz se reconciliou com a Humanidade culpada. Só através do sofrimento bárbaro e a morte aplacou a sua ira, um pensamento que à luz da mensagem de Jesus sobre Deus parece a muitos absurdo”, escreveu, com razão, o teólogo H. Vorgrimler. Jesus não morreu para aplacar a ira de Deus. Jesus foi vítima da maldade dos homens, dos sacerdotes do Templo e dos senhores do Império. A cruz de Cristo é a expressão suma do amor incondicional de Deus para com todos. Jesus, o excluído, é aquele que, em nome do Deus bom, não exclui ninguém. Pelo contrário, inclui a todos no amor sem condições. Jesus morreu para dar testemunho até ao fim do Evangelho: Deus é bom.

Então aprendemos a alegria verdadeira: o sacrifício pelo sacrifício é detestável, mas, por outro lado, nada vale realmente sem sacrifício. Por causa do império de uma banalidade mole hoje triunfante, é recusado a muitos o sabor da alegria que resulta da superação de obstáculos. Nada de grande, belo e valioso e digno se faz e constrói sem sacrifício. Os valores merecem que nos batamos por eles, e é esse sacrifício enquanto luta por aquilo que vale que nos engrandece como seres humanos.

Àqueles que o criticavam por participar em banquetes oferecidos por pecadores públicos Jesus respondeu: "Ide aprender o que significa: ‘O que eu quero é misericórdia e não sacrifício'". Jesus também disse: "Quem quiser seguir-me tome a sua cruz todos os dias". Referia-se àquela cruz que dá testemunho da verdade e que acompanha o combate pela liberdade, pela racionalidade, pela dignidade, pela justiça, pela criação, pelo amor, pela alegria de todos.

    Torna-se então pleno de sentido o que Bernard Shaw escreveu: “É uma felicidade enorme quando se tem a capacidade de poder alegrar-se.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de setembro de 2021

Pág. 1/4