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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

MUDAM-SE OS TEMPOS, FICAM-SE AS VONTADES…


Minha Princesinha de mim: 


Chegou-me (hoje aí, 18 de agosto de 2013), por misterioso correio comungante, uma carta que a um escritor que não conheci no meu tempo, José Saramago, escreveu o nosso Camilo português. Neste nenhures ou todalgures - terás de esperar a hora em que sejas, simplesmente, fora de tempo e lugar, para entenderes o que é ser sem estar na tua limitação - ter-me-ia comovido se ainda sentisse comoção e não comungasse apenas na inefável alegria de ser... Deste lado da vida, já não esperamos, comungamos no amor que é a vossa esperança e já nossa foi. Aqui já não há mal, nem fé, há a visão da glória a que fomos chamados. Que é de todos. Adivinha-a, aí em baixo, quem tiver percebido que a vocação da Vida é partilha. De ti me lembrei muito quando, eu também, procurava no amor humano esse "íntimo rumor que abre as rosas"... Era daqueles homens que na mulher como que adivinha a presença maternal de Deus. Ou essa união inicial que até o sentimento erótico nos revela e Georges Bataille tão bem exprimiu quando afirmou que l´érotisme c’est l’affirmation de la vie jusque dans la mort...


      No teu parto, Senhor, nosso nascimento,
      antes e depois de nós acontecemos,
      Nossa Senhora do nosso livramento,
      Deus-Mulher, onde nos movemos...
      Que nome dar-te, de raiva ou de sossego,
      Eros, Virgem, Vida ou Ser tão simplesmente,
      dia só de sol ou noite de aconchego,
      amores breves ou Amor eternamente?
      Onde procurar-te a Ti, se em Ti só somos
      a alegria de sermos mais que estamos
      nesta vida tão mesquinha que nos deste?
      Ou será abandonar-te, se nos pomos
      à procura de Ti, e renunciamos
      ao mesmo desejo que em nós quiseste?


Tinha então vinte e poucos anos, era namoradeiro e casto, e ouvia vozes a chamarem-me... Fala-se muito em vocação, eu sempre senti muitas. Arrisco dizer, desde este "assento etéreo", que me teria certamente comovido, na minha existência aí em baixo, com o que o ateu Saramago escreveu, com o que, na visão eternamente feliz da essência ou do infinito ser que somos, saberei que é a verdade única do amor: querer bem, pensarsentir, no tempo finito que nos foi marcado, que viver é dar sem nada pedir em troca. Que o mais importante, na efeméride da vida terrena, é essa atenção, esse cuidado amigo, de escutar em nós o "íntimo rumor que abre as rosas"... A minha religião cristã não foi, a tua não é, um código jurídico do amor. É, do Amor, a vocação. Muitas leis poderão promover, justificar, tolerar, perdoar qualquer concupiscência, esse desejo inato de satisfação egoísta, quer no plano das paixões ditas carnais (intemperança, luxúria), como no das que permissivamente vão por aí arranjando teorias económico-sociais para justificar a injustiça entre irmãos. Poderão determinar ou convencionar padrões de comportamentos. Mas não devem esquecer que a chamada essencial, a vocação dos homens, é à conversão interior. É compreender que o amor concupiscente, o desejo da posse de nós nos outros, ou a idolatria do dinheiro à custa deles, é uma negação. Amar é transformarmo-nos, como Deus incarnado é tudo em todos. Falhar-se-á muitas vezes, tentar-se-á sempre. Imperfeitos são os homens, limitadíssimos. Mas, mesmo não sendo desse mundo, o Reino de Deus só se constrói pelo coração dos homens de boa vontade. Lembras-te de outro mau soneto (nunca tive grande jeito para versejar) que, por esses meus vinte anos, escrevi? Até ao fim dos meus dias senti essa necessidade de um encontro:


      Inquietante amor, este que te tenho,
      Senhor, assim disperso em meus sentidos,
      único, vário, igual e estranho,
      a Ti e a teus frutos proibidos...
      Tu, só Tu, comandas em segredo
      a paixão em que a tua me adivinha
      e a tua mão tece o meu enredo
      e à tua vida em mim eu chamo minha...
      E na solidão, teu silêncio manso,
      meu coração repousa no deserto,
      onde, estando longe, estás tão perto...
      quando, Mulher, te despes e te alcanço
      e com tanto pudor me aconchego
      à sombra do teu ventre, meu sossego...


Pensavassentia então (vejo) que o amor, esse querer bem, tem, afinal, em sua própria dádiva a sua primeira recompensa: a pacífica alegria de nos darmos. A confiança. Talvez isso seja a eternidade onde sou.


Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 19.01.2014 neste blogue.  

200 ANOS DE UMA PEÇA DE CASTILHO

 

Nesta alternância evocativa de autores atuais e de autores clássicos, sobretudo quando a cronologia justifica a referência, referimos hoje os 200 anos exatos da criação de uma peça de António Feliciano de Castilho, a “tragédia original em verso solto” designada “Canace”, e que como tal merece evocação. Pois, tendo presente a relevância oitocentista do autor, há que cruzá-la com a importância que o teatro assume na época, trazendo à cena peças que hoje estão esquecidas, de autores que como tal já não são lembrados. Aqui o temos feito.


E precisamente: quem hoje se lembra do teatro de Castilho? E no entanto, esta peça, “tragédia original de verso solto” como a refere o autor, constitui mais uma contribuição clássica para a dramaturgia da época, e para a participação nessa conciliação do estilo clássico com a “modernidade” do teatro não-romântico então também produzido. E não nos pese estas evocações, pois a História do Teatro Português, obra e livro citável, merece…


E aqui retomamos este tipo de evocação. Pois efetivamente, esta “tragédia original em verso solto” é dedicada á Academia Real das Ciências de Lisboa: as muito mais do que isso, como já escrevemos a propósito, constitui um texto perramente árcade, no qual se refere designadamente a escassez do nosso teatro, que viria aliás a ser ultrapassada… mas não especificamente nesta peça e neste autor! E no entanto, Castilho-dramaturgo até merece alguma referência.


Cito desde logo o próprio autor, num sentido de “modernidade” que em rigor nada tem a ver com a sua obra geral… António Feliciano de Castilho merecerá mais citações a propósito da sua inesperada “modernidade”… E então o que nos diz é que nesta peça procurou “reunir o gosto trágico inglês com um francês”. E tem presente q tentativa de “representar grandes paixões capazes de agitar fortemente o coração e de deixar nele um efeito durável, sem no entanto perder jamais de vista a regularidade do andamento da tragédia francesa, a sua polidez de decência, a variedade e conveniência dos carateres e em geral o seu estilo poético”.


E o que me parece então interessante é a conciliação do romantismo implícito com o estilo árcade especificamente evocado e que em si meso constituirá o mérito da obra geral de Castilho, mesmo no teatro… Pois vejamos, nesse sentido, as transcrições que já noutra ocasião fizemos, assinalando especificamente a conciliação do clássico com o romântico, sendo este menos aplicado no obra geral do autor!...


Pois já tivemos ensejo de referir essa conciliação. Assim, de um lado, o bucolismo de raiz árcade:


“Se tu chegares/ inda algum dia, ó Cyntia a ver os campos/ onde passei a infância, onde em pequena/ simples cabana, à borda de um regato, / de árvores assombrada, inteiras noites/ com minha mãe passava conversando (…)
Ou “subitamente, um vento horrível/ com medonho fragor correu no bosque; / surdamente ungiu, tremendo, a terra; / fulgurou na alameda etéreo fogo/ de rápido relâmpago, que o tempo/ aclarou como sol, deixou-nos treva;/ rolou trovão no ar convulso…”


E importa então referir que Castilho escreveu mais peças, efetuou traduções a adaptações e manteve uma ligação mais ou menos constante ao teatro romântico/ultrarromântico da época. Mas assinala-se aqui o centenário da peça acima citada, pois representa uma modernidade da época que hoje está em si mesma ultrapassada, mas não como modelo de teatro então praticado…

 

DUARTE IVO CRUZ

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL


29. JOSÉ MATTOSO (I)


“Se o critério é o da objetividade, teremos de excluir, desde logo, as teorias messiânicas, tão insistentes e tão carregadas de emotividade, acerca do destino universal do povo português, do seu insondável ”mistério” e da sua irredutível originalidade” (José Mattoso, “A Identidade Nacional”).   

A inventariação dos carateres específicos da gente portuguesa é um processo ilusório:   

“Nem o sebastianismo, nem a saudade, postas em relevo por António Sardinha, nem o universalismo internacionalista, propalado por vários autores, nem o lirismo sonhador aliado ao fáustico germânico e ao fatalismo oriental, apontados por Jorge Dias, nem a plasticidade do homem português, intuída por Natália Correia, nem o culto do Espírito Santo, que fascinou António Quadros, nem a capacidade para criar uma “filosofia portuguesa”, patrocinada por Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro e José Marinho, nem mesmo a “brandura dos costumes”, feita lugar comum, se podem considerar como caraterísticas mais do que imaginárias do povo português” (José Mattoso, idem).

Mattoso reconhece que tais interpretações não têm todas o mesmo grau de arbitrariedade ou de subjetividade, sendo premente distinguir aquelas que partem da observação empírica de carateres comportamentais que podem corresponder factualmente a hábitos mentais, daquelas que se fundamentam em especulações de tipo idealista ou de feição mística, merecendo as primeiras, segundo diz, maior atenção, competindo a sua análise e espírito crítico a especialistas da área da sociologia geral, que ele não é, tomando a História como ponto de referência para algumas interrogações sobre elas, do ponto de vista do historiador, como se reclama. 

Após afirmar ter sido necessária a democratização de Portugal e a perda das colónias, para que o passado deixasse de ser visto como tempo glorioso, uma “idade de ouro”, e de defender que o teor subjetivo dos seus critérios e o método impressionista de tais teorias são sempre impossíveis de demonstrar reconhece, de seguida, não podermos também “deixar de registar a formação de uma espécie de consenso a respeito de alguns deles”.      

Exemplifica-o com os estudos do antropólogo Jorge Dias sobre o caráter nacional português, para quem a personalidade básica do português é “um misto de sonhador e de homem de ação,…, um sonhador ativo a que falta certo fundo prático e realista”, com “enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres sem que isso implique perda de caráter”, “…tem vivo um sentido da Natureza e um fundo poético e contemplativo…”, “No momento em que o português é chamado a desempenhar qualquer papel importante, põe em jogo todas as suas qualidades de ação, abnegação, sacrifício e coragem e cumpre como poucos”, “Para o português, o coração é a medida de todas as coisas”, “é um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a égide do momento”.

Entende, JM, que o perfil de português de Jorge Dias aponta para a permanência de estruturas de longa duração relacionadas com tendências mentais aparentemente comuns, não sendo carateres intrínsecos ao povo português, mas tendências correntes que podem modificar-se se as condições estruturais de ordem económica e social se modificarem. Interroga-se, com outros: quanto à saudade-lirismo, não se relacionará com a constatação de tantos portugueses terem de emigrar, desde sempre, para sobreviver?

 

29.10.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

RAMON LLULL

Ramon Llull.jpg

 

Calcula-se que Ramon Llull tenha nascido nos finais de 1232 em Maiorca.

Recorda-nos Umberto Eco que no local de nascimento de Ramon, se vivia, na altura, uma encruzilhada das três culturas, a judaica, a islâmica e a cristã, o que muito determinou a formação de Llull, bem como o facto das suas iniciais obras terem sido escritas em catalão e árabe.

Crê-se que Llull conheceu a Zairja numa das suas viagens à cultura árabe e por ela desenvolveu a chamada Grande Arte.

A Zairja era um dispositivo dos árabes medievais que combinava as vinte e oito letras do alfabeto árabe para designar vinte e oito categorias filosóficas, respetivamente, e ao combinar valores numéricos com as letras criavam-se associações de pensamento que se podiam desenvolver. Aliás, diz-se, que, por conhecer e bem interpretar a Zairja, Llull criou um templo espiritual de paisagens intelectuais só interpretadas pela chamada Grande Arte que acima citamos.

Llull é considerado um fascinante escritor, filósofo e poeta acutilante já considerado como um dos mais importantes da Idade Média da língua catalã.

No campo espiritual, como missionário e teólogo viaja para conhecer papas, príncipes e reis a fim de obter ajudas aos seus projetos de cruzadas de missionário.

Seguindo para o norte de Africa aos 82 anos, foi apedrejado em Tunes tendo vindo a morrer cerca de um ano depois em Maiorca para onde o transportaram os seus amigos genoveses.

O Livro do Amigo e do Amado surge-nos numa temática de fervor sentimental entre a pessoa humana (o amigo) e a essência do divino (o amado).

De quando em vez volto a este livro das edições Cotovia de 1990 e dele hoje estes parágrafos:

1. Perguntou o amigo ao seu amado se havia nele alguma coisa por amar, e o amado respondeu que aquilo que poderia multiplicar o amor do amigo era amar.

176. Diz-me, doido: Tens dinheiro? Respondeu: Tenho o Amado. – Tens casas, castelos, cidades, condados ou ducados? Respondeu: - Tenho amores, pensamentos, prantos, desejos, penas e dores, que são melhores do que os reinos e os impérios.

188. Perguntaram ao amigo se era possível que o seu amado o desenamorasse. Respondeu que não, enquanto a memória se lembrasse dele e o entendimento entendesse as nobrezas do seu amado.

350. Teologia e Filosofia, Medicina e Direito encontraram o amigo que lhes perguntou se tinham visto o seu amado. A Teologia chorava, a Filosofia duvidava, a Medicina e o Direito alegravam-se. E a questão é:o que significa cada um dos quatro significados para o amigo que procurava o seu amado.

 

Também lemos a conceção segundo a qual, o amor neste livro, constitui uma fusão entre o amor humano e o amor divino transformando Deus em amante e em amado, como afirma Henry Corbin no Prólogo da obra Le Jasmin des Fidèles d’Amour de Rūzbehān Baqlī Shīrāzī (1128-1209), o grande representante do Sofismo iraniano. Obra esta para a qual nos remeteram e à qual ainda se não acedeu.

Certo é que para iniciarmos o entendimento do fenómeno místico em Ramon Llull, é fundamental compreendermos a importância da “comunicação” entre as culturas do diálogo inter-religioso, sobretudo entre o Cristianismo e o Islão.

Enfim, por pouco conhecermos esta temática de procura sem fim, e por mais atrevimento termos em abordá-la, aqui ficam mil modestas centelhas na procura de infinitos amigos e amados, porque não antecâmara ao contributo do entendimento da fala nas casas do mundo.

 

Teresa Bracinha Vieira

 

 

CRER NUM DEUS IMORAL?


A palavra fé vem do latim fides, donde deriva também fiel, fidelidade, confiar, fiador, confiança, confidência. Crer vem de credere, donde deriva também credo, crença, crente, acreditar, credor, crédito. Até etimologicamente, ter fé não significa, portanto, em primeiro lugar aceitar um conjunto de afirmações doutrinais ou dogmas. A fé é, antes de tudo, a entrega confiada a Deus, Fonte originária de tudo quanto existe. Entregar-se-lhe confiadamente como Sentido último de toda a realidade e da existência própria. Como um homem se entrega confiada e amorosamente a uma mulher, como um amigo confia num amigo.


A pergunta é inevitável: mas Deus terá crédito, a ponto de se poder realmente acreditar n'Ele, sem ilusões? Quem quiser reflectir sobre a fé religiosa medite na relação amorosa humana, no que ela implica de confiança, de decisão racional e de crédito.


Teria crédito um Deus em relação ao qual se pudesse dizer, como escreveu Ernst Bloch, que o Homem pode e deve ser melhor que o seu Deus?


Com este critério, é necessário, por exemplo, recusar o Deus que exigiu a Abraão o sacrifício do próprio filho. Segundo Kant, à pretensa voz divina que ordenava sacrificar Isaac, Abraão deveria ter respondido: "Que eu não devo matar o meu bom filho é absolutamente certo; mas que tu, que me apareces, sejas Deus, disso não estou certo, nem posso estar, mesmo que essa voz ressoasse desde o céu (visível)". Como é inadmissível um Deus que castigasse a Humanidade inteira por causa de um pecado dos primeiros pais. Quem pode acreditar num tirano, num Deus mesquinho e sádico?


Frequentemente, foi um Deus indecente e intolerável que os ateus justamente recusaram. Segundo Nietzsche, o Deus que objectiva o ser humano "tinha de morrer, porque via com olhos que viam tudo... A sua piedade desconhecia o pudor: ele metia-se nos meus recantos mais sórdidos".


A religião, que tem de ser, pela sua própria natureza, o espaço da nobreza humana e da sua dignificação, da liberdade e da libertação, da fraternidade sem limites, da beleza e alegria feliz, do perguntar simultaneamente humilde e ousado, foi frequentemente o lugar da mesquinhez reles, da indignidade, da exclusão, do opróbrio, do mau gosto, da superstição ridícula. No Decâmeron, de Bocaccio, um frade enumera algumas das relíquias que encontrou: uma unha de um querubim, alguns raios da estrela que apareceu aos Reis Magos, uma garrafa com o suor de S. Miguel quando combateu com o Diabo... E hoje? Pregações infantis, infantilizantes e totalitárias, sem apelo ao debate esclarecido, ao diálgo crítico e a decisões adultas, contribuíram para o presente "vale tudo" do niilismo moral e para que, para tomar as grandes decisões da sua vida, já quase ninguém tenha em conta as posições da Igreja.


Feuerbach e os "mestres da suspeita" viram-se na necessidade de negar Deus, porque pensaram que Ele era um vampiro que se alimentava do sangue, dos direitos e da dignidade do Homem. Ai de nós, se não tivesse havido nem houvesse ateus, não os ateus vulgares, mas daqueles que sabem o que isso verdadeiramente quer dizer! Sem eles, muitos crentes continuariam de rastos diante da Divindade. Mas que Deus seria esse que nos obrigasse a andar de rastos diante dEle e nos tornasse mesquinhos e ridículos aos nossos próprios olhos?...


Deus tem de ser um Deus moral. Portanto, qualquer ser humano tem de exigir que Deus seja pelo menos melhor do que nós. Ora, embora não sejamos bons, nenhum ser humano sadio permitiria, se estivesse nas suas mãos, que alguma vez um ser humano sofresse os horrores do inferno para sempre. Como foi possível acreditar num Deus proclamado como amor originário e ao mesmo tempo aceitar a condenação eterna, com tormentos sem fim, no inferno, de tal modo que muitos homens e mulheres viveram já na Terra uma existência totalmente envenenada, torturada, por causa do pânico do inferno? Como é que foi possível acreditar em Deus e ao mesmo tempo num pecado dos primeiros homens entendido como um pecado transmitido de geração em geração, de tal maneira que o fruto do amor que as mães levam no seu ventre seria portador da mancha do pecado, da qual só o baptismo pode libertar? Pergunta, com razão, o filósofo da religião Andrés Torres Queiruga: "Em que cabeça cabe que Deus pudesse 'exigir' a morte violenta do seu Filho para perdoar os pecados da Humanidade? Que mãe pode acreditar de verdade que a sua criaturinha recém-nascida, perante a qual o seu coração se desfaz de ternura, 'está em pecado' enquanto não for baptizada?"


A não ser que o consideremos um déspota imoral e arbitrário, Deus não pode exigir aos homens aquilo que ele próprio não faz, não pode obrigar os homens àquilo a que ele próprio não está obrigado. De facto, se, por exemplo, Deus fosse um Deus vingativo, um Deus opressor, seja qual for o género de opressão, porque é que não haveríamos de poder nós também vingar-nos e oprimir?


Impõe-se, porém, reconhecer que tudo isto não passou de um enorme equívoco. Na realidade, o Deus cristão não é um rival do Homem, mas um companheiro. E a própria ideia de liberdade e da dignidade inviolável de todos os homens e mulheres, tem a sua raiz na Bíblia e veio ao mundo pelo cristianismo, como reconheceram também Hegel e o próprio Ernst Bloch.


Aí está a razão por que o crime da pedofilia é ainda mais odioso quando praticado pelo clero, que tem por missão levar a todos a mensagem do Deus da dignidade, da liberdade, da salvação. 

    

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 de outubro de 2021

A TERTÚLIA DE MOINHO DE VENTO

 

O debate de ideias não pode ser desvalorizado. O intelectual não pode ser substituído pelos comentadores das ideias gerais. A democracia só progride através da ligação entre a capacidade de ver o futuro e de encontrar catalisadores de energias no sentido de responder à necessidade de tornar a sociedade melhor. Não há ação coerente e eficaz sem pensamento, e não há reflexão séria sem capacidade de ouvir. Não há projetos relevantes se não os basearmos na experiência e nos bons exemplos. Infelizmente, prevalece a tentação de limitar o debate político ao imediatismo e aos efeitos teatrais. Se olharmos atentamente a história política percebemos que só pode haver resultados práticos positivos se houver planeamento de médio e longo prazos e capacidade de mobilizar duradouramente as vontades da sociedade. As reformas estruturais não se confundem com o método do café instantâneo, é fundamental tempo e é ilusório julgar que se muda a sociedade contando apenas com opiniões superficiais ou modas passageiras. Eis por que razão urge refletir, dialogar, debater e encontrar soluções duráveis que possam antecipar, prevenir e mobilizar.


Conversando com Sérgio Campos Matos, falámos da importância das antigas tertúlias de sábado à tarde, na Travessa do Moinho de Vento, em casa de António Sérgio. O encontro de diversos pontos de vista, o debate e a reflexão pressupunham o apelo sério ao sentido crítico… Aí se encontravam Álvaro Salema, Agostinho da Silva, Castelo Branco Chaves, mas também jovens como José-Augusto França, Fernando Ferreira da Costa e Natália Correia. O ensaísta combatia a ignorância do país, acreditando num impulso emancipador de “cidadãos, com dotes intelectuais, iniciativa realizadora, eficaz organização; com clareza, frieza e equilíbrio de entendimento; autodomínio e atenção aos factos; ordem nas ideias; - senso crítico”. Demarcava-se de uma ancestral política que designava como de “transporte”, apelando para mais do que uma mera política de “fixação”. Tornava-se essencial a vontade, a ponderação de diversas perspetivas e a compreensão dos motivos económicos e das complexas dinâmicas culturais. Deste modo, sobre o célebre tema das “Duas Políticas Nacionais”, António Sérgio considerava Portugal como um território com dois países dentro dele – um país tradicional e fechado e um país moderno e aberto, envolvendo o dualismo entre o litoral e as cidades, o interior e a província, o racional e o castiço. Eis por que não podemos dispensar o debate de ideias nem o papel de quem deseja refletir para além do que mais grita ou de quem corre atrás do efeito fácil. Só entendendo essa dualidade será possível encarar o desenvolvimento como algo que não pode ser concebido a preto e branco. Só poderemos progredir se compreendermos o que permanece e o que muda, o que resiste e o que avança.


Apenas o conhecimento e a reflexão, a aprendizagem, a ciência e a cultura podem ajudar-nos. Fala-se hoje de recuperação e de resistência, a Europa e os europeus, o mundo e os cidadãos são chamados à responsabilidade, para que ultrapassem a irrelevância. Os dilemas entre a saúde e a economia, entre sustentabilidade e crescimento só se superam com estudo, trabalho e compreensão da complexidade… Escrever história, segundo António Sérgio assemelha-se à feitura de um colar: “o que faz de um qualquer número de pérolas um colar é o fio invisível e interior que as une – que as liga a todas numa certa ordem”. Hoje sabemos que é a liberdade a democracia que aí se devem encontrar, para que a reflexão ponderada se una à legitimidade popular.    

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

De 25 a 31 de outubro de 2021


Almeida Garrett
escreveu em 1821 o ensaio “O Dia Vinte e Quatro de Agosto”, que constitui uma defesa da Revolução Regeneradora Liberal de 1820, partindo da ideia de “os homens são iguais, porque são livres, e são livres porque são iguais”.

 

ANÚNCIO DA LIBERDADE
A Revolução do Porto de 24 de agosto de 1820 constitui, para os portugueses, a génese da consagração do moderno Estado de direito. O acontecimento deu assim início à democracia atual, apesar de todas a vicissitudes, desde a fugaz tentativa de regresso do poder absoluto com D. Miguel, até à Regeneração de 1851, que viria a tornar a Carta Constitucional de 1826 uma lei fundamental legitimada por um poder constituinte. Em complemento, as datas de 5 de outubro de 1910 e de 25 de abril de 1974 constituem duas referências que continuam o que Jaime Cortesão designou como fatores democráticos na formação e afirmação de Portugal, desde as mais longínquas raízes históricas, abrangendo a fundação do Estado, as Cortes, o municipalismo, a influência dos povos das cidades e dos mesteres, a causa do Mestre de Aviz em 1383-85, a Restauração da Independência de 1640, a República e a Democracia constitucional de hoje. A verdade é que a democracia não se faz instantaneamente. Constrói-se gradualmente e assenta a sua legitimidade na vontade dos povos e na afirmação da cidadania livre e responsável, igual e solidária. Manuel Fernandes Tomás (1771-1822) foi figura marcante da Revolução. A ele se deveu a afirmação dos elementos cruciais do pensamento regenerador, de que resultou o constitucionalismo – a divisão de poderes, a articulação da autoridade das Cortes com o poder executivo e o rei, os fundamentos e as práticas do poder judicial, o conceito e o exercício da soberania popular, além da afirmação da liberdade de imprensa, da importância do exercício do direito de voto e do princípio do consentimento, além das tomadas de posição sobre a extinção da inquisição, sobre a liberdade e abusos da autoridade ou sobre a liberdade do cidadão e a liberdade da nação. Pode dizer-se que o edifício constitucional de 1822 muito deveu à solidez e coerência do mais influente dos artífices do movimento de 1820 e de um dos mais determinados deputados constituintes. E se falo de Fernandes Tomás, que está representado no uso da palavra na sala das sessões da Assembleia da República, é porque ele é no pensamento e na ação um símbolo evidente da Revolução de 1820 e do constitucionalismo. Como jurisconsulto de qualidade superlativa, o facto de estar particularmente informado e atento à evolução das notícias liberais e constitucionais, designadamente na vizinha Espanha, permitiu-lhe compreender a inevitabilidade das repercussões em Portugal do movimento liberalizador na sequência das revoluções inglesa, americana e francesa. Assim, em 1818 fundou o Sinédrio juntamente com Ferreira Borges e Silva Carvalho, com o comerciante Ferreira Viana, preparando as mobilizações militares e civis que conduziram ao golpe do Porto. Escreveu, por isso, as proclamações que prenunciaram a proclamação nacional regeneradora, visando: fazer regressar D. João VI à capital europeia do reino; exonerar a Regência que governava em nome do rei; afirmar a liberdade e a igualdade dos cidadãos perante a lei e garantir a convocação das Cortes constituintes, que exprimissem o sentido de uma soberania nacional baseada na vontade do povo.


O MOVIMENTO REGENERADOR
Tendo participado na Junta Provisional do Supremo Governo do Reino e tendo sido um dos mais influentes autores do Relatório sobre a situação do País e sobre as providências consideradas necessárias, foi um dos 100 deputados eleitos para a Assembleia, que reuniria no Palácio das Necessidades, com a missão de elaborar a nova Constituição, após o debate do Relatório que coordenara na Junta Provisional. Perante os erros da governação, a subalternização do interesse comum, a injustiça e a ilegitimidade da condenação dos mártires da pátria, haveria que tirar consequências sérias da soberania da nação. O exercício da soberania estaria “nas Cortes que legislam, no monarca que executa, nos juízes que julgam, e nas autoridades que administram”. Daí a importância da representação e do mandato, o que corresponde a uma ideia premonitória de democracia. É por isso muito profícua a leitura das intervenções de Fernandes Tomás na Constituinte. Aí encontramos a opção moderna de três poderes, como em Montesquieu, a noção de um parlamento unicamaral e o veto suspensivo do rei… Não importará neste momento fazer o diagnóstico da força e das fragilidades dessa primeira lei fundamental, tão influenciada pela Constituição de Cádis. É, porém, essencial compreender a virtude do contributo de Fernandes Tomás, cujo percurso envolveu o compromisso no combate anti-napoleónico e a participação ativa nas boas-vindas ao rei D. João VI (cuja atitude positiva se contrapôs à perspetiva negativa assumida por Fernando VII) – na compreensão do necessário equilíbrio de um patriotismo prospetivo. Uma das marcas do carácter da nova ordem constitucional foi a liberdade de imprensa, que constituiu um fator de magna importância para o reconhecimento do que tornou 1820 muito mais do que um movimento circunstancial. Foi um novo período que se abriu, tornando-se uma marca indelével em que a ideia de soberania popular se tornou uma referência que nos nossos dias procuramos que se fortaleça e consolide. “É evidente que a liberdade de imprensa deve ser o mais ampla possível (como afirmou o deputado constituinte), porque com efeito num país livre não se pode viver sem ser também livre a imprensa, mas devemos enquanto for possível reparar para o exemplo das nações que nos cercam e das que olham com mais cuidado para a sua conservação. (…) Está demonstrado que o poder da opinião é maior que o poder da força…”.  E a História política foi provando que, apesar da conjuntura ibérica de então ser muito complexa, favorecendo opções que obrigariam a ajustamentos ao longo do tempo, a Revolução do Porto foi decisiva e ainda hoje é marcante. Se é verdade que só o poder constituinte concretizado com o Ato Adicional de 1852 garantiu a acalmação e um consenso minimamente durável, em que os beligerantes das diversas guerras civis (liberais e absolutistas; cartistas e constitucionalistas) enterraram os machados de guerra com a garantia de uma alternância partidária exigida pelo progresso económico e social, o certo é que foi o início da continuidade constitucional que rasgou o horizonte da cidadania democrática. É essa a marca deixada desde 24 de agosto de 1820, que hoje recordamos, não como uma celebração retrospetiva, mas como uma oportunidade para pensarmos a democracia como um sistema de valores que permanentemente se aperfeiçoa, e que mobiliza a sociedade e os cidadãos. Por isso privilegiamos nesta comemoração, não a mera lembrança, e mais o estudo, a reflexão, a investigação, mobilizando o ensino superior, as instituições de investigação e a sociedade toda. Não nos ocupa apenas uma data, mas um movimento de progresso e desenvolvimento – considerando o constitucionalismo como um fator de cidadania e de legitimidade. Deste tempo resultará um melhor conhecimento do que nos antecedeu para que sejamos melhores no futuro. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

É SILENCIOSO O BEM…


Minha Princesa de mim:


Cá estou neste casarão, com mais liberdade interior do que a de poder andar por aí, que a ciática não deixa, não... Passei a semana entre o divã onde me deito e esta cadeira onde me sento agora à secretária onde escrevo, escondido por pilhas de livros que se erguem sobre ela e outras mesas, pois já não há mais estantes possíveis que os apoiem, como aos outros que trepam pelas paredes do meu gabinete. Assim encurralado, vi-me na obrigação de ler até esquecer maleitas. Revi Confúcio e taoístas chineses no "Huainan Zi", voltei a Dostoievsky e a "Os Irmãos Karamazov", em busca de uma frase posta na boca do procurador Ippolit Kirillovitch, em tribunal, no seu discurso de acusação de Dimitri Karamazov: "Não é em vão que se é poeta, não é em vão que se vive a vida como uma vela acesa dos dois lados!"  Lembro-me de ter ouvido o Alberto fadistar uns versos do António Boto: "Não me peças mais canções / Que a cantar eu vou sofrendo / Sou como as velas do altar / Que dão luz e vão morrendo..." O poeta canta e consome-se ardendo. Mas a vela de Dostoievsky está acesa de ambos os lados. Como Léon Bloy - que não escrevia versos, mas de si dizia que era poeta - Fiodor Michailovitch consumiu a vida entre fogos: o do pecado e da miserável condição humana e o da exaltação e da Graça. Se Jacob lutou com um anjo, Dostoievsky lutou com dois: o demónio e o Outro. No final de um romance - que até tem um enredo policial de fazer inveja a um Perry Mason! - cheio de contradições pessoais e íntimos rasgões, de crime, ódio e paixão, pecado e perdão, miséria e dúvidas, Aliocha, o mais novo dos irmãos, aquele que acredita na infinita misericórdia do amor de Deus, e o procura e encontra na insaciável ânsia de amor dos homens, o bondoso Aliocha, vindo do funeral de um menino, de mãos dadas com todos os rapazes da mesma turma, exorta-os à lembrança do colega: "Recordemos a sua cara, as suas roupas, as suas botinhas pobres, o seu caixão, e o seu pai, infeliz e pecador, e como por causa dele o Illiutcheka desafiou sozinho a classe toda!" Não o esqueceremos, respondem eles, e Aliocha,"irmão" mais velho de todos, exclama: "Meus meninos, meus queridos amigos, não tenhais medo da vida! A vida é bela pelo que fizermos de bom e verdadeiro!" Eis como Dostoievsky responde à questão do mal, a essa interrogação sobre o absurdo, por vezes obsessiva. Também eu pensossinto que, mesmo e apesar de termos mordido o fruto proibido, não nos é dado por enquanto esclarecer a razão do mal. Só nos resta uma resposta possível: querer bem, fazer todo o bem possível, lutar para que o amor suave e luminoso vá vencendo a dureza do mal e as trevas da morte. Era assim a fé cristã de Fiodor Dostoievsky. E talvez nenhum escritor tenha enfrentado a urgência e a angústia dessa questão como ele o faz, através dos capítulos "A Revolta" e "O Grande Inquisidor", esse veemente requisitório de Ivan Karamazov. Deste episódio de "Os Irmãos Karamazov" disse Sigmund Freud - que, aliás, considerava esta obra o maior romance de toda a literatura do mundo - que nunca lhe poderemos ou saberemos dar o devido valor. Ivan confessa a Aliocha, seu irmão: "Nunca consegui compreender como se pode amar o próximo. A meu ver são precisamente os próximos que não podemos amar, talvez possamos apenas amar os distantes...  ...Para amar uma pessoa é preciso que ela se oculte; assim que ela mostra a cara,perde-se o amor." Por repugnância ou por incompreensão, pela nossa incapacidade de compaixão. De verdadeiramente sofrermos com. O sofrimento humano é incompreensível. Ivan ainda entenderia que o dos adultos pudesse ser compreendido no castigo pela maçã indevidamente comida. Mas o das crianças, Senhor? "Das crianças pode-se gostar mesmo de perto, mesmo sujas, mesmo de cara feia (no entanto acho que as crianças nunca têm a cara feia)"...  ..."As crianças por enquanto não são culpadas de nada."  A revolta de Ivan é contra o sofrimento que castiga convertidos arrependidos e crianças inocentes, como aquela menina que os pais fecharam "à noite, num lugar imundo, no escuro e ao frio, a bater com o seu punho minúsculo no peito exausto e a chorar lágrimas sangrentas e submissas ao "deusinho" para que a defenda..."   ..."compreendes para que é necessário e para que foi criado este absurdo? Dizem que sem ele o homem não poderia viver na terra, porque não conheceria o bem e o mal. Para quê conhecer esse bem e esse mal diabólicos, se isso custa tão caro?" No pseudo-poema "O Grande Inquisidor", Ivan imagina Jesus que desce à terra, na Sevilha do século XVI, quando o inquisidor-mor acaba de presidir a um auto da fé. Não se fez anunciar, não se manifestou, mas, por misteriosa razão, o povo reconhece-o e acompanha-o, pedindo-lhe curas e milagres. Tal como, no epílogo do romance, o pequeno Iliucha devolve o corpito à terra numa urna coberta de flores, em Sevilha por Jesus passa o cortejo fúnebre de uma menina também coberta de flores. Mas agora Cristo repete as palavras que ressuscitaram outra menina, como conta o evangelho: "Talifa kumi!" Ela obedece, levanta-se, o povo comovido soluça de espanto, gratidão e alegria. É então que o velho inquisidor-mor manda prender Jesus. A multidão cala-se sem protesto, e todos baixam silenciosamente a cabeça para receberem a bênção sobre eles lançada pelo prelado. Este irá visitar Jesus à cadeia, para lhe perguntar: "És tu? Tu?...  ... Porque vieste incomodar-nos?...  ... sejas tu ou apenas uma aparência dele, amanhã mesmo te condeno e queimo na fogueira, como o pior dos hereges, e aquele mesmo povo que hoje te beijava os pés, amanhã, a um sinal meu, correrá a alimentar com brasas a tua fogueira..." Pela continuação do discurso do inquisidor espanhol e quinhentista se percebe que Dostoievsky, entretanto já desiludido do ocidente europeu, visa a Igreja Romana e, como ele diz, os Jesuítas, que, pelas suas imposições canónicas, querem matar a liberdade do espírito religioso do Cristianismo. Aliás, tal como Tolstoi - e, assim também, contra o clericalismo oficial da Igreja Ortodoxa Russa - ele aspira a uma religião cristã mais próxima da miséria dos pobres e da angústia dos homens do que da prática institucional como expressão de qualquer poder eclesiástico. Mas, ao tocar na questão da liberdade das consciências - que o inquisidor-mor aponta como erro de Jesus Cristo - Dostoievsky põe o dedo na ferida: a questão do mal só pelo homem, que é livre, pode ser levantada, só a consciência humana distingue entre bem e mal, só ela é trânsfuga do determinismo do instinto e da "resignação" natural. Diz, a esse Jesus regressado, o Grande Inquisidor: "Em vez de te apoderares da liberdade das pessoas, ainda lhes aumentaste a liberdade! Ou esqueceste-te de que a tranquilidade e até a morte são mais queridas ao homem do que a liberdade de escolha no conhecimento do bem e do mal? Não há nada mais sedutor para o homem do que a liberdade da sua consciência, mas também não há nada mais torturante". Corro a buscar um dos registos que por aqui tenho da "Die Zauberflöte" do Mozart. Com ou sem Maçonaria, o mesmo drama jaz subjacente às interrogações dos espíritos que povoam os reinos da noite. Dirão todos os inquisidores e ditadores de "verdades" que seremos sempre cegos, porque somos cobardes e só capazes de aceitar o que nos é imposto. Podemos pensarmo-nos rebeldes, mas sem discutir seguiremos quem nos der tranquilidade e pão comestível aqui e agora. Mas diz-nos Jesus que não haverá pão sem partilha que nos saiba bem, nem bem possível se não o fizermos também, nem caminho que possamos percorrer sem risco, deserto ou noite. Não sabemos ainda o que é o bem, nem o que é o mal. Mas sentimos, no antiquíssimo de nós, que o benquerer nos liberta. Somos livres quando nos ultrapassamos e agimos como o bom samaritano ou o pai que festeja o filho pródigo. Talvez eu, novamente, blasfeme; mas creio que querer bem é dizer ao próprio Deus que é grande, injusta, enorme, por vezes quase insustentável, a mágoa dos que sofrem, sobretudo quando inocentes ou indefesos. É dizer-lhe, ainda, como nos dói a ferida funda de uma consciência livre de julgar, desejar e ansiar, mas presa nos limites da nossa condição humana. A meus olhos, só pela sua incarnação em Jesus - que é connosco - Deus se salva de ser demónio. Cai a tarde. Vou à janela ver como a noite, silenciosa e mansa, desce sobre os campos que não sabem o que ela é, nem o dia. Mas que, na sucessão de ambos e no ciclo repetido das estações do ano, vão produzindo fruto. Dou-te, Princesinha, uma mão invisível, aguardemos a lua. Não nos encerraremos em romantismos, quero só uma presença amiga, como sacramento de todos no momento desta comunhão da luz com as trevas que serão luz amanhã.

          ...e não quero ruídos
             nem iluminações!
             Quero o silêncio da noite
             a perfumar a lua...

Mesmo que a lua, aos olhos de todos, tenha também as suas íntimas contradições:

             A lua quando está no quarto
             minguante vê-se ao espelho
             no crescente e vice-versa
             a nova vê-se na cheia
             a cheia à nova a cara tapa.
             No princípio era o silêncio.

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 13.12.2013 neste blogue. 

NOVA EVOCAÇÃO HISTÓRICA DE SÁ DE MIRANDA

 

Vale a pena fazer nova referência a Sá de Miranda, que, como já vimos, neste ano de 2021 consagra diversas ocorrências relacionadas com a própria cronologia histórica do teatro português. E isto sobretudo porque, como já referido, estava algo esquecido no contexto da história do espetáculo.


O certo é que como já vimos, a Sá de Miranda se devem iniciativas que sucessivamente justificarão estas breves análises evocativas: pois, nascido em 28 de agosto de 1481, há portanto exato 540 anos, o certo é que a sua criação e contribuição para a história e estética do teatro português, expressa, como já vimos, em pouca criação, marcou uma perspetiva renovadora que ainda hoje se mantém.


São poucas as peças escritas por Sá de Miranda: e no entanto, a criatividade e qualidade dos textos, então extremamente modernos e hoje e sempre atuais na qualidade e representatividade, marcaram a própria evolução estética do teatro português.


De qualquer maneira, e como já vimos, o que até nós chegou foram apenas duas peças, “Estrangeiros” (1528) e “Vilhalpandos” (1538), além de um esboço em verso, denominado “Cleópatra”, que não chegou até nós de forma potencialmente cenográfica ou mesmo literária.


Em 1521, portanto há exatos 500 anos, Sá de Miranda parte para Itália onde permanece até 1526. Em Itália convive com autores então e ainda hoje muito marcantes na renovação do teatro:


Ariosto, Bembo, Andalette ou Sammazzaro, na época e alguns ainda hoje relevantes na cultura e na técnica teatral. 


As peças são sobretudo evocadas na relevância puramente literária: mas as que chegam ainda hoje aos palcos mostram um sentido de espetáculo que em si mesmo é e será sempre relevante. E a esse respeito vale a pena citar algumas passagens do prólogo dos “Estrangeiros”, hoje de certo modo uma peça esquecida mas sempre, insistimos, relevante. 


Diz então aí Sá de Miranda, remetendo para uma personagem simbólica:


“Sou então uma pobre velha estrangeira, o meu nome é comédia (…) eu não nasci em Grécia e lá me foi posto o nome por outras razões que não pertencem a esta vossa língua. Aí vivi muitos anos (…) Passaram-me depois a Roma, pera onde então, por mandado da fortuna, corria tudo. (…)  cheguei a tanto que não me faleceu um nada de deusa; depois a grandeza daquele Império, que parecia para nunca mais acabar, todavia acabou. E assim como a sua queda foi grande, assim levou tudo consigo, ali me perdi eu com muitas das boas artes, e aí houvemos longo tempo como enterradas, que já quase não havia memória de nós, até que alguns vizinhos, que duns nos outros ficara alguma lembrança cavaram tanto que nos tornaram à vida, maltratadas porem e pouco para ver”…


Faremos ainda uma nova referência histórica a partir da minha “História do Teatro Português”.


Aí se diz que os dramaturgos designadamente António Prestes ou Luís de Camões, este, note-se bem, apenas como dramaturgo, se surgem numa perspetiva renovada, já marcada pelo Renascimento, isso em parte se deve ao mérito esforçado de Sá de Miranda, sobretudo de Vilhalpandos. A maior dinâmica cénica desta comédia torna-a eventualmente mais acessível ao espetador de hoje…


E acrescento ainda outra citação:


“A Comédia, tão estimada nos tempos antigos que aí disseram aqueles grandes engenhos que era, senão uma pintura da vida comum? À dos Príncipes se repartiu a tragédia”! (cit. Na “História do Teatro Português” de José Oliveira Barata).


Neste contexto, novamente evocamos este autor!

 

DUARTE IVO CRUZ

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

 

28. OPÇÃO ATLÂNTICA E EUROPEIA (III)


Quanto à adesão à Comunidade Europeia, Portugal teve de optar pela democracia, anuência que lhe foi retardada para que pudesse entrar juntamente com Espanha, o que prova que do lado marítimo Portugal tem prioridade, havendo países que têm como do seu interesse a preservação da individualidade portuguesa, sendo Espanha vista como um país essencialmente continental, mais próximo da Europa.     


É nesta perspetiva que melhor se compreende a oposição de muitos a que Madrid se torne o centro radial da Península Ibérica.   


Eis algumas palavras de Henrique Neto, em artigo de opinião: 


“Quanto ao TGV, basta olhar para o traçado imposto por Espanha (…), para compreender a estratégia espanhola: criar uma radial napoleónica, que faça de Madrid o centro da Península Ibérica, ligando esta capital às cidades provinciais de Barcelona, Sevilha, Bilbau, Lisboa, Porto e, como vamos ver no futuro, à Corunha.  Que estratégia mais clara poderá ser desenhada do que ligar Lisboa a Madrid, antes de ligar Lisboa ao Porto, ou fazer com que o caminho-de-ferro de Lisboa para a Europa nos leve a Badajoz, a Cáceres, a Madrid, a Tarragona e a Barcelona - um autêntico passeio ibérico - antes de entrar em França pelo Sul? Os nossos antepassados, que nos ligaram por comboio diretamente a Paris, sem passar por Madrid, devem dar voltas no túmulo, ao mesmo tempo que os turistas do Norte da Europa não deixarão de considerar castiça a ideia de os fazer passar pela Costa Azul e pela Costa Brava, na sua problemática viagem para Lisboa.     


A estratégia correta passaria por dar prioridade absoluta ao TGV em território nacional, ligando a Corunha a Sevilha, ao longo da costa portuguesa e ao aeroporto da Ota. Esta estratégia corresponde ao objetivo de valorizar (…) a maior concentração humana da Península Ibérica e tornar Lisboa o centro natural desse espaço, que tem o mar e a dimensão atlântica com a sua vantagem competitiva”.   


Acrescenta-se que a saída por San Sebastian ainda vai demorar duas décadas, se realizável, acentuando Madrid a sua força centrípta na Península, obrigando todas as regiões de Espanha e Portugal a prestar-lhe vassalagem.   


Daí que, como alternativa à cada vez maior dependência dos corredores rodoviários e ferroviários de ligação a Espanha e à Europa, se fale no transporte marítimo e aéreo com a mais ampla diversificação de itinerários e dependências, via reconversão e adaptação (marítima) e como rótula de articulação intercontinental aérea com a Europa, nomeadamente via países da América Latina e África, caso dos mercados brasileiro, venezuelano e PALOP.


Todavia, a propósito de Portugal e Espanha, Boaventura Sousa Santos, depois de ter Portugal como uma sociedade periférica e não ser previsível que num futuro próximo seja promovido ao centro do sistema ou despromovido para a sua periferia, tendo como mais provável que a sua posição intermédia se consolide em novas bases, fala em que o “federalismo ibérico” está em curso, não por via de renascidas crenças em hispanidades míticas, decorrendo, sobretudo, da atuação das grandes multinacionais, ao estabelecerem as suas sedes em Madrid ou Barcelona tomando como um todo e unidade de ação a Península Ibérica, pelo que, na sua ótica, os sinais de despromoção são mais fortes que os de promoção.   


Para outros, como Loureiro dos Santos, numa Europa das regiões extensiva à Península Ibérica, as condições são-nos mais favoráveis que a Madrid, pois enquanto este tenderá a perder poder político por força da artificialidade de tal centro, surgido apenas por motivos político-estratégicos, pois os grandes centros periféricos, onde a Península produz riqueza, tendem a ser polos de competição; nós poderemos aumentá-lo em face dessa fragmentação, com a vantagem de sermos um país coeso, de forte unidade e identidade nacional, atraído pelo mar e a mais populosa região ibérica.


Resta sempre uma vontade elucidada e firme que nos tem defendido, mesmo que se tenha como adversa e perigosa, em termos ibéricos, uma só fronteira e a nossa posição geográfica.  
     

22.10.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

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