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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS PARA A OUTRA MARGEM

Minha Princesa de Além:

 

   Passámos juntos os teus quase seis anos derradeiros, tempos simultaneamente difíceis e estranhamente gratificantes, antes do teu salto para a outra margem. O teu voo final, cuja ocorrência ia parecendo cada vez mais iminente e fatal, era por isso tão previsível como imprevisível, pois o nosso sentimento - essa persistência no ser a que também chamamos alma - sempre fortalece a crença íntima num qualquer milagre. E eu, que fiquei por cá, de pés na terra, esgotado pela luta, desiludido da esperança, não dei logo por mim, quedei-me perplexo, robô talvez, ao qual fosse faltando a bateria. Escrevi recentemente a um amigo um bilhete breve, que quiçá nos ajude a me perceber melhor. Diz assim:

   J'essaye de me refaire une jeunesse... Mas é difícil, sobretudo porque estes últimos anos - e alguns meses mais - mudaram tanto a minha circunstância que o próprio íntimo de mim se tornou um estrangeiro. Nem sei se mudei também ou não - muito, pouco ou nada - mas reconheço-me mal, sinto-me um peregrino deambulatório, sem percurso orientado. Afinal, é facto que as balizas que me guiavam dia após dia já hoje me estão fora do alcance da vista,dos braços que com ansiedade abro e estendo  Invisíveis, insensíveis, desenganam-me o pensarsentir, fogem-me, talvez, do coração cansado...

   Terei de renascer, de ser outro eu em mim.
   E vou tentando.

   Ao fim de quase cinquenta e seis anos de vida comum, mais de meio século de coabitação em partes tão diferentes deste nosso mundo, torna-se impossível pensarsentirmo-nos indivíduos apenas, na medida em que, afinal, a nossa circunstância, por muito que lhe tivessem mudado os tempos e os modos, foi robustecendo, em cada um de nós a fundamental referência a uma comunhão. Muitas vezes te escrevi, Princesa de mim, que a morte de um amigo, de alguém muito próximo é sempre necessariamente, pouco ou muito, a nossa. Assim nos vamos, os que cá continuamos, paulatinamente morrendo. Recordo os desabafos de Michel de Montaigne aquando da morte do seu amigo de La Boétie, ou a revolta do Duque de Gandia pela morte da Imperatriz Isabel de Portugal, revolta que o virou jesuíta e fez santo canonizado (São Francisco Borja): nunca mais darei ao tempo a minha vida, nunca mais servirei senhor que possa morrer, como canta Sophia... E nessa sua versão de uma meditação do Duque de Gandia, a poeta intui o carácter secreto da nossa perplexidade perante a morte: amei-te em verdade e transparência, e já nem sequer me resta a tua ausência... Na verdade, a própria ausência é temporal, e também ela se vá embora com a morte que a leva para o reino da eternidade que ainda não atingimos e nem sequer conseguimos bem imaginar. 

   E é essa ausência da mesma ausência que me leva agora a pensar nessa ressurreição de mim, do meu ser corporal com o seu peso de tanto pensarsentir, ainda sempre tão limitado, como graça estranha ao mundo dos nossos horizontes, mas bênção profética a libertar-nos desse absurdo fatal que seria a ausência da própria ausência do amor possível, negação desse impulso inicial que nos trouxe vida e a alimenta.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira