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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

de 18 a 24  de outubro de 2021

 

“Que Fizeste do Teu Irmão? – Um Olhar de Fé sobre a pobreza do mundo” de Alfredo Bruto da Costa (Cáritas, Forum Abel Varzim, 2020) constitui um testemunho fundamental do autor sobre o momentoso problema da pobreza.

 

DOCUMENTO PRECIOSO E ORIGINAL
Quando a engª Vera Bruto da Costa me mostrou o texto que o marido deixara incompleto, ao partir, não tive dúvidas em dizer que se tratava de um documento precioso e original, sobre um tema que ocupou intensamente Alfredo Bruto da Costa. É um conjunto indispensável de temas, no qual se unem o rigor da análise e o alerta atualíssimo relativamente a uma situação dramática da pobreza na atualidade. Seguindo passo a passo o livro, começamos pela referência ao “maior equívoco da história da Humanidade”, a contradição entre a espera de um libertador e a sua recusa, como vemos na atitude do Grande Inquisidor em “Os Irmãos Karamazov” de Dostoievsky, a dizer a Jesus Cristo, regressado inesperadamente, que deveria desaparecer rapidamente por ser indesejado. É verdade que não era a pobreza o tema do grande equívoco, mas a partilha e a exigência do cuidado dos outros e da não indiferença, marcantes na essência da novidade cristã. E, refletindo sobre o Amor de Deus, o autor pergunta: “quem pode ousar falar do Amor de Deus”, realidade tão complexa e indefinível, não suscetível de simplificações humanas. E então a pobreza surge como exigência de disponibilidade, como obrigação de compreender o outro e de ter respostas. Assim, os pobres de que fala a Bíblia são aqueles que o são no seu íntimo, como afirma a primeira Bem-Aventurança. É de disponibilidade que se fala, como scolè é a origem etimológica grega da palavra escola como lugar do ócio, enquanto disponibilidade plena para saber e compreender. Não há, contudo, não pode haver, elogio da pobreza sociológica. E lembre-se o que dizem os Atos dos Apóstolos relativamente à vida na comunidade cristã. “Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum”. Estamos perante a relação do ser humano com os bens materiais. Não está em causa o reconhecimento do direito de propriedade, mas a compreensão do princípio do destino universal dos bens da terra. E assim temos de compreender o sentido e o alcance do direito de uso e do direito de posse. Como afirma a encíclica Laborem Exercens de João Paulo II, “a propriedade adquire-se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir ao trabalho”. Eis a importância do desapego ao material, para que dele não nos tornemos servos. A necessidade do outro, como outra metade de nós, para usar a expressão do Padre Mateo Ricci, significa a possibilidade de ter resposta ao outro, não nos fechando sobre nós mesmos.


OS BENS DA TERRA NO MUNDO
A distribuição de bens da terra no mundo é hoje, contudo, cada vez mais desigual. As disparidades agravam-se. Em 1960 o rendimento dos 20 % mais ricos da população mundial era 30 vezes o rendimento dos 20 % mais pobres. Mas no ano 2000 essa relação passara a 75 vezes. Por outro lado, “as desigualdades no domínio das capacidades avançadas estão a agravar-se. Por exemplo, apesar dos desafios no tocante aos dados, as estimativas apontam para ganhos ao nível da esperança média de vida aos 70 anos, entre 1995 e 2015, duas vezes superiores nos países com um nível muito elevado de desenvolvimento humano, em relação aos países com um baixo nível de desenvolvimento humano. Existem elementos que demonstram a presença do mesmo padrão de divergência num vasto leque de capacidades avançadas. De facto, as divergências no acesso a um conhecimento mais avançado e à tecnologia são ainda mais vincadas” (p. 107). Daí a exigência, para Alfredo Bruto da Costa, de uma leitura evangélica da pobreza no mundo. A noção de cidadania mundial, de que falou o Papa João Paulo II e de que fala o Papa Francisco vem reforçar a urgência de alargarmos o horizonte do nosso pensamento para além das fronteiras nacionais. Trata-se de assumir o princípio da subsidiariedade, que significa, a um tempo, tratar e solucionar os problemas o mais próximo possível das pessoas, mas sempre a um nível adequado. O pensamento “glocal” é a um tempo global e local, centrífugo e centrípeto. Se as questões do ambiente ou das pandemias, do aquecimento global ou da cultura da paz têm de ser tratadas acima das fronteiras nacionais, as opções ligadas à organização local ou aos cuidados das pessoas concretas têm de ter dimensão local e comunitária.


GLOBALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO
Como lembra Bruto da Costa: “a globalização é demasiado importante para ser deixada ingovernada, como acontece presentemente, porque tem capacidade de fazer extraordinário mal, como bem”. Exige-se, assim, coesão social, sustentabilidade cultural, económica, social e ambiental, conhecimento e aprendizagem. O que é libertar os pobres de hoje? É combater e resolver a privação (fome, sede, nudez, falta de abrigo) e a falta de recursos, de modo a garantir autosuficiência, autonomia e defesa do bem comum. “A definição de pobreza que adotámos (diz ABC) conduz-nos a duas conclusões da maior relevância teórica e prática. A primeira reside no facto de ser possível resolver a privação, sem resolver a pobreza. Para tanto, basta que o pobre tenha acesso aos bens e serviços básicos por via de apoios extraordinários (por exemplo, o acesso aos alimentos do Banco Alimentar, a algum ‘roupeiro’ gratuito, a uma residência social para indivíduos e famílias sem habitação, etc.). Apoios deste tipo têm duas características importantes: resolvem a privação, mas mantêm o pobre numa situação de dependência. Isto acontece porque, apesar de sair da privação, o pobre continua sem os recursos necessários para satisfazer as necessidades básicas como o comum dos cidadãos. Matar a fome, sendo indispensável, não conduz, só por si, à autonomia. Daí a segunda conclusão, a de que a pobreza só é vencida quando o pobre sai da situação de privação por seus próprios meios… Por outras palavras o pobre só vence a pobreza quando já não precisa de recorrer a medidas e políticas de luta contra a pobreza” (p. 131).


O QUE FAZER? 
O que fazer? Agir em vários tabuleiros: na igualdade de oportunidades, na correção das desigualdades, na justiça distributiva, na equidade integeracional, no desenvolvimento sustentável. Não é por acaso que o primeiro dos objetivos das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável é a erradicação da pobreza. Partindo do destino universal dos bens da terra e da exigência de sobriedade, o combate à pobreza obriga a haver metas claras e uma definição de meios que nos permitam superar as condicionantes que nos afetam, sobretudo depois da pandemia, que agravou as disparidades e tornou mais difíceis os objetivos anteriormente definidos. E Alfredo Bruto da Costa deixou-nos o desafio de não baixarmos os braços nesse caminho no sentido da cidadania e da dignidade da pessoa humana. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença