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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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É SILENCIOSO O BEM…


Minha Princesa de mim:


Cá estou neste casarão, com mais liberdade interior do que a de poder andar por aí, que a ciática não deixa, não... Passei a semana entre o divã onde me deito e esta cadeira onde me sento agora à secretária onde escrevo, escondido por pilhas de livros que se erguem sobre ela e outras mesas, pois já não há mais estantes possíveis que os apoiem, como aos outros que trepam pelas paredes do meu gabinete. Assim encurralado, vi-me na obrigação de ler até esquecer maleitas. Revi Confúcio e taoístas chineses no "Huainan Zi", voltei a Dostoievsky e a "Os Irmãos Karamazov", em busca de uma frase posta na boca do procurador Ippolit Kirillovitch, em tribunal, no seu discurso de acusação de Dimitri Karamazov: "Não é em vão que se é poeta, não é em vão que se vive a vida como uma vela acesa dos dois lados!"  Lembro-me de ter ouvido o Alberto fadistar uns versos do António Boto: "Não me peças mais canções / Que a cantar eu vou sofrendo / Sou como as velas do altar / Que dão luz e vão morrendo..." O poeta canta e consome-se ardendo. Mas a vela de Dostoievsky está acesa de ambos os lados. Como Léon Bloy - que não escrevia versos, mas de si dizia que era poeta - Fiodor Michailovitch consumiu a vida entre fogos: o do pecado e da miserável condição humana e o da exaltação e da Graça. Se Jacob lutou com um anjo, Dostoievsky lutou com dois: o demónio e o Outro. No final de um romance - que até tem um enredo policial de fazer inveja a um Perry Mason! - cheio de contradições pessoais e íntimos rasgões, de crime, ódio e paixão, pecado e perdão, miséria e dúvidas, Aliocha, o mais novo dos irmãos, aquele que acredita na infinita misericórdia do amor de Deus, e o procura e encontra na insaciável ânsia de amor dos homens, o bondoso Aliocha, vindo do funeral de um menino, de mãos dadas com todos os rapazes da mesma turma, exorta-os à lembrança do colega: "Recordemos a sua cara, as suas roupas, as suas botinhas pobres, o seu caixão, e o seu pai, infeliz e pecador, e como por causa dele o Illiutcheka desafiou sozinho a classe toda!" Não o esqueceremos, respondem eles, e Aliocha,"irmão" mais velho de todos, exclama: "Meus meninos, meus queridos amigos, não tenhais medo da vida! A vida é bela pelo que fizermos de bom e verdadeiro!" Eis como Dostoievsky responde à questão do mal, a essa interrogação sobre o absurdo, por vezes obsessiva. Também eu pensossinto que, mesmo e apesar de termos mordido o fruto proibido, não nos é dado por enquanto esclarecer a razão do mal. Só nos resta uma resposta possível: querer bem, fazer todo o bem possível, lutar para que o amor suave e luminoso vá vencendo a dureza do mal e as trevas da morte. Era assim a fé cristã de Fiodor Dostoievsky. E talvez nenhum escritor tenha enfrentado a urgência e a angústia dessa questão como ele o faz, através dos capítulos "A Revolta" e "O Grande Inquisidor", esse veemente requisitório de Ivan Karamazov. Deste episódio de "Os Irmãos Karamazov" disse Sigmund Freud - que, aliás, considerava esta obra o maior romance de toda a literatura do mundo - que nunca lhe poderemos ou saberemos dar o devido valor. Ivan confessa a Aliocha, seu irmão: "Nunca consegui compreender como se pode amar o próximo. A meu ver são precisamente os próximos que não podemos amar, talvez possamos apenas amar os distantes...  ...Para amar uma pessoa é preciso que ela se oculte; assim que ela mostra a cara,perde-se o amor." Por repugnância ou por incompreensão, pela nossa incapacidade de compaixão. De verdadeiramente sofrermos com. O sofrimento humano é incompreensível. Ivan ainda entenderia que o dos adultos pudesse ser compreendido no castigo pela maçã indevidamente comida. Mas o das crianças, Senhor? "Das crianças pode-se gostar mesmo de perto, mesmo sujas, mesmo de cara feia (no entanto acho que as crianças nunca têm a cara feia)"...  ..."As crianças por enquanto não são culpadas de nada."  A revolta de Ivan é contra o sofrimento que castiga convertidos arrependidos e crianças inocentes, como aquela menina que os pais fecharam "à noite, num lugar imundo, no escuro e ao frio, a bater com o seu punho minúsculo no peito exausto e a chorar lágrimas sangrentas e submissas ao "deusinho" para que a defenda..."   ..."compreendes para que é necessário e para que foi criado este absurdo? Dizem que sem ele o homem não poderia viver na terra, porque não conheceria o bem e o mal. Para quê conhecer esse bem e esse mal diabólicos, se isso custa tão caro?" No pseudo-poema "O Grande Inquisidor", Ivan imagina Jesus que desce à terra, na Sevilha do século XVI, quando o inquisidor-mor acaba de presidir a um auto da fé. Não se fez anunciar, não se manifestou, mas, por misteriosa razão, o povo reconhece-o e acompanha-o, pedindo-lhe curas e milagres. Tal como, no epílogo do romance, o pequeno Iliucha devolve o corpito à terra numa urna coberta de flores, em Sevilha por Jesus passa o cortejo fúnebre de uma menina também coberta de flores. Mas agora Cristo repete as palavras que ressuscitaram outra menina, como conta o evangelho: "Talifa kumi!" Ela obedece, levanta-se, o povo comovido soluça de espanto, gratidão e alegria. É então que o velho inquisidor-mor manda prender Jesus. A multidão cala-se sem protesto, e todos baixam silenciosamente a cabeça para receberem a bênção sobre eles lançada pelo prelado. Este irá visitar Jesus à cadeia, para lhe perguntar: "És tu? Tu?...  ... Porque vieste incomodar-nos?...  ... sejas tu ou apenas uma aparência dele, amanhã mesmo te condeno e queimo na fogueira, como o pior dos hereges, e aquele mesmo povo que hoje te beijava os pés, amanhã, a um sinal meu, correrá a alimentar com brasas a tua fogueira..." Pela continuação do discurso do inquisidor espanhol e quinhentista se percebe que Dostoievsky, entretanto já desiludido do ocidente europeu, visa a Igreja Romana e, como ele diz, os Jesuítas, que, pelas suas imposições canónicas, querem matar a liberdade do espírito religioso do Cristianismo. Aliás, tal como Tolstoi - e, assim também, contra o clericalismo oficial da Igreja Ortodoxa Russa - ele aspira a uma religião cristã mais próxima da miséria dos pobres e da angústia dos homens do que da prática institucional como expressão de qualquer poder eclesiástico. Mas, ao tocar na questão da liberdade das consciências - que o inquisidor-mor aponta como erro de Jesus Cristo - Dostoievsky põe o dedo na ferida: a questão do mal só pelo homem, que é livre, pode ser levantada, só a consciência humana distingue entre bem e mal, só ela é trânsfuga do determinismo do instinto e da "resignação" natural. Diz, a esse Jesus regressado, o Grande Inquisidor: "Em vez de te apoderares da liberdade das pessoas, ainda lhes aumentaste a liberdade! Ou esqueceste-te de que a tranquilidade e até a morte são mais queridas ao homem do que a liberdade de escolha no conhecimento do bem e do mal? Não há nada mais sedutor para o homem do que a liberdade da sua consciência, mas também não há nada mais torturante". Corro a buscar um dos registos que por aqui tenho da "Die Zauberflöte" do Mozart. Com ou sem Maçonaria, o mesmo drama jaz subjacente às interrogações dos espíritos que povoam os reinos da noite. Dirão todos os inquisidores e ditadores de "verdades" que seremos sempre cegos, porque somos cobardes e só capazes de aceitar o que nos é imposto. Podemos pensarmo-nos rebeldes, mas sem discutir seguiremos quem nos der tranquilidade e pão comestível aqui e agora. Mas diz-nos Jesus que não haverá pão sem partilha que nos saiba bem, nem bem possível se não o fizermos também, nem caminho que possamos percorrer sem risco, deserto ou noite. Não sabemos ainda o que é o bem, nem o que é o mal. Mas sentimos, no antiquíssimo de nós, que o benquerer nos liberta. Somos livres quando nos ultrapassamos e agimos como o bom samaritano ou o pai que festeja o filho pródigo. Talvez eu, novamente, blasfeme; mas creio que querer bem é dizer ao próprio Deus que é grande, injusta, enorme, por vezes quase insustentável, a mágoa dos que sofrem, sobretudo quando inocentes ou indefesos. É dizer-lhe, ainda, como nos dói a ferida funda de uma consciência livre de julgar, desejar e ansiar, mas presa nos limites da nossa condição humana. A meus olhos, só pela sua incarnação em Jesus - que é connosco - Deus se salva de ser demónio. Cai a tarde. Vou à janela ver como a noite, silenciosa e mansa, desce sobre os campos que não sabem o que ela é, nem o dia. Mas que, na sucessão de ambos e no ciclo repetido das estações do ano, vão produzindo fruto. Dou-te, Princesinha, uma mão invisível, aguardemos a lua. Não nos encerraremos em romantismos, quero só uma presença amiga, como sacramento de todos no momento desta comunhão da luz com as trevas que serão luz amanhã.

          ...e não quero ruídos
             nem iluminações!
             Quero o silêncio da noite
             a perfumar a lua...

Mesmo que a lua, aos olhos de todos, tenha também as suas íntimas contradições:

             A lua quando está no quarto
             minguante vê-se ao espelho
             no crescente e vice-versa
             a nova vê-se na cheia
             a cheia à nova a cara tapa.
             No princípio era o silêncio.

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 13.12.2013 neste blogue.