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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MUDAM-SE OS TEMPOS, FICAM-SE AS VONTADES…


Minha Princesinha de mim: 


Chegou-me (hoje aí, 18 de agosto de 2013), por misterioso correio comungante, uma carta que a um escritor que não conheci no meu tempo, José Saramago, escreveu o nosso Camilo português. Neste nenhures ou todalgures - terás de esperar a hora em que sejas, simplesmente, fora de tempo e lugar, para entenderes o que é ser sem estar na tua limitação - ter-me-ia comovido se ainda sentisse comoção e não comungasse apenas na inefável alegria de ser... Deste lado da vida, já não esperamos, comungamos no amor que é a vossa esperança e já nossa foi. Aqui já não há mal, nem fé, há a visão da glória a que fomos chamados. Que é de todos. Adivinha-a, aí em baixo, quem tiver percebido que a vocação da Vida é partilha. De ti me lembrei muito quando, eu também, procurava no amor humano esse "íntimo rumor que abre as rosas"... Era daqueles homens que na mulher como que adivinha a presença maternal de Deus. Ou essa união inicial que até o sentimento erótico nos revela e Georges Bataille tão bem exprimiu quando afirmou que l´érotisme c’est l’affirmation de la vie jusque dans la mort...


      No teu parto, Senhor, nosso nascimento,
      antes e depois de nós acontecemos,
      Nossa Senhora do nosso livramento,
      Deus-Mulher, onde nos movemos...
      Que nome dar-te, de raiva ou de sossego,
      Eros, Virgem, Vida ou Ser tão simplesmente,
      dia só de sol ou noite de aconchego,
      amores breves ou Amor eternamente?
      Onde procurar-te a Ti, se em Ti só somos
      a alegria de sermos mais que estamos
      nesta vida tão mesquinha que nos deste?
      Ou será abandonar-te, se nos pomos
      à procura de Ti, e renunciamos
      ao mesmo desejo que em nós quiseste?


Tinha então vinte e poucos anos, era namoradeiro e casto, e ouvia vozes a chamarem-me... Fala-se muito em vocação, eu sempre senti muitas. Arrisco dizer, desde este "assento etéreo", que me teria certamente comovido, na minha existência aí em baixo, com o que o ateu Saramago escreveu, com o que, na visão eternamente feliz da essência ou do infinito ser que somos, saberei que é a verdade única do amor: querer bem, pensarsentir, no tempo finito que nos foi marcado, que viver é dar sem nada pedir em troca. Que o mais importante, na efeméride da vida terrena, é essa atenção, esse cuidado amigo, de escutar em nós o "íntimo rumor que abre as rosas"... A minha religião cristã não foi, a tua não é, um código jurídico do amor. É, do Amor, a vocação. Muitas leis poderão promover, justificar, tolerar, perdoar qualquer concupiscência, esse desejo inato de satisfação egoísta, quer no plano das paixões ditas carnais (intemperança, luxúria), como no das que permissivamente vão por aí arranjando teorias económico-sociais para justificar a injustiça entre irmãos. Poderão determinar ou convencionar padrões de comportamentos. Mas não devem esquecer que a chamada essencial, a vocação dos homens, é à conversão interior. É compreender que o amor concupiscente, o desejo da posse de nós nos outros, ou a idolatria do dinheiro à custa deles, é uma negação. Amar é transformarmo-nos, como Deus incarnado é tudo em todos. Falhar-se-á muitas vezes, tentar-se-á sempre. Imperfeitos são os homens, limitadíssimos. Mas, mesmo não sendo desse mundo, o Reino de Deus só se constrói pelo coração dos homens de boa vontade. Lembras-te de outro mau soneto (nunca tive grande jeito para versejar) que, por esses meus vinte anos, escrevi? Até ao fim dos meus dias senti essa necessidade de um encontro:


      Inquietante amor, este que te tenho,
      Senhor, assim disperso em meus sentidos,
      único, vário, igual e estranho,
      a Ti e a teus frutos proibidos...
      Tu, só Tu, comandas em segredo
      a paixão em que a tua me adivinha
      e a tua mão tece o meu enredo
      e à tua vida em mim eu chamo minha...
      E na solidão, teu silêncio manso,
      meu coração repousa no deserto,
      onde, estando longe, estás tão perto...
      quando, Mulher, te despes e te alcanço
      e com tanto pudor me aconchego
      à sombra do teu ventre, meu sossego...


Pensavassentia então (vejo) que o amor, esse querer bem, tem, afinal, em sua própria dádiva a sua primeira recompensa: a pacífica alegria de nos darmos. A confiança. Talvez isso seja a eternidade onde sou.


Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 19.01.2014 neste blogue.