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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ALMUDENA GRANDES


Uma das grandes escritoras do nosso tempo que às gentes caminhantes aconteceu.


Malena es un nombre de tango,
livro perturbador, corajoso que dá forma ao tempo do conhecer e do dar a conhecer, na busca de uma perfeição inalcançável.

Os Doentes do doutor Garcia, até nós pela mão da Porto Editora em 2020 entre outros.

As tuas palavras, as poucas que de ti conheci, senti-as como um convite à casa onde as coisas também estão como casa do morar.

Obrigada!

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR


“Whether architects like it or not, a building acts as a vehicle of meaning…”


Heinrich Klotz acredita que o significado é uma questão central da arquitetura.


No livro Periferia Perfeita, Jorge Figueira escreve que Klotz declara que a poesia superou a utopia da arquitetura eternamente nova, somente funcional e auto-referencial. O mais importante na arquitetura depois do modernismo é a ficção ou imaginação, que realiza uma arquitetura que emerge do improviso e da espontaneidade e que favorece o imperfeito e não a perfeição.


Klotz deseja pois redefinir o conceito de pós-modernismo e tentar afastar qualquer conotação negativa e superficial e até procura encontrar saídas: “… if a ‘modernist’ is capable of employing modern architecture’s repertory of forms in a new and significant way and thereby revitalizing it (…) then it is nonsensical to ignore him in the name of a merely historicized postmodernism.” (Klotz 1988, 5)


No livro The History of Postmodern Architecture (Massachusetts Institute of Technology, 1988), Heinrich Klotz anseia, por isso, valorizar o conceito da arquitetura como um veículo de significados. A arquitetura não é só evocação do passado, nostalgia, conceção de formas eternas, contraditórias ou complexas. Nem é só colagem, nem tem de responder somente ao contexto e à função e não tem de viver só do ornamentalismo e da monumentalidade. Sem dúvida, Klotz enfatiza a ideia de que uma nova forma de arquitetura surgiu desde meados dos anos setenta e que esta se coloca em oposição ao estabelecido progresso do Movimento Moderno.


“Postmodernism then appears to us to be a premodernism a return to a state antecedent to the Enlightenment. Hence we find ourselves asking whether we have exchanged progress for regression. It seems that society, caught as it is in ecological crises, withdraws its trust in progress by drawing back in discouragement from the threshold of the new, seeking instead to recapture the old and to derive security from the past.” (Klotz 1988, 2)


A dúvida acerca do progresso parece assim justificar o regresso ao conteúdo histórico. Klotz levanta as seguintes questões: será o pós-modernismo a negação da utopia que acredita na potencialidade e na salvação através do design? Ou será uma nova forma de controlo, de poder e de opressão?


Para Klotz o advento do pós-modernismo trouxe de facto o desvanecimento de uma verdade. Tudo parece perdido - o futuro, o totalmente novo, a humanização, a democracia e a moral. Mas mesmo assim, talvez o pós-modernismo seja o natural desenvolvimento de uma arquitetura que quer evitar o funcionalismo extremo e a catastrófica erosão urbana - “isn’t it a continuation of modernism by new but not entirely different means?” (Klotz 1988, 2)


Para Klotz, o pós-modernismo traz sobretudo a possibilidade de dar a uma forma particular um conteúdo específico. As formas em si só não têm importância, relevante é o seu significado. Por muitas décadas o significado das formas arquiteturais foi totalmente esquecido, ora por oposição ora por recusa os principais aspetos de interesse eram meramente estruturais, funcionais e sociais. E a consideração consciente de que a forma da arquitetura poderia ser um veículo de significado era uma coisa rara de se fazer. Porém segundo Klotz a história da arquitetura contemporânea pode ser considerada como uma história da forma e do seu significado.


“Whether architects like it or not, a building acts as a vehicle of meaning even if it is supposed to be meaningless. One way or another it presents a visual aspect. Even the vulgar postwar functionalism that cut the characteristic features of a building to a minimum produced buildings that, as they entered one’s visual field, acquired a meaning: an apparently neutral and monotonous uniformity.” (Klotz 1988, 3)


As novas tendências tentam dar atenção a outras características que vão para além das qualidades meramente funcionais - e apresentam uma possibilidade de fuga ao modo não-objetivo e da forma pura. A salvação do modernismo nunca esteve na abstração. O perigo está em construir formas desprovidas de significado. Tal como Norberg-Schulz em Intentions in Architecture, Klotz acredita que só através do simbolismo cultural, a arquitetura pode mostrar que o dia-a-dia tem um significado que vai para além da situação e do contexto imediato e tem uma participação ativa na sequência contínua da história.


Klotz deseja acima de tudo alargar o conceito de pós-modernismo para que se possa ir além de uma simples repetição nostálgica do passado: “Whenever present-day architecture observes other laws in addition to functional aptness and maximum simplicity of basic forms, whenever it moves away from abstraction and tends toward representational objectivization, I call it postmodern.”


Para Klotz, a arquitetura pós-moderna é assim toda aquela que se afasta da abstração e tende à objetivação representacional. Não procura o fim em si própria, nem serve somente objetivos práticos. A arquitetura pós-moderna é sim um meio visual que torna visível a emergência do belo e é capaz de materializar um significado. Provoca uma descontinuidade na tradição do Movimento Moderno, sendo sobretudo decisivo as intenções dos diferentes vocabulários usados.


O método capaz de dar vida a vocabulários históricos ou modernos é, para Klotz o da ficcionalização da arquitetura. O conteúdo da arquitetura, durante estes anos, passa a ser então, de substância narrativa. Passa de novo a significar um esforço criativo, que não responde somente a factos, a programas e a formas mudas, mas principalmente a ideias e a símbolos de natureza poética e que poderão ser apreendidos multisensorialmente.


“The final goal is to liberate architecture from the muteness of ‘pure forms’ (…) Then the results will no longer be repositories of function and miracles of construction, but renderings of symbolic contents and pictorial themes - aesthetic fictions which do not remain abstract ‘pure forms’ but which emerge into view as concrete objectivizations to be multisensorially apperceived.” (Klotz 1988, 5)

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

De 29 de novembro a 5 de dezembro de 2021


Francisco Velasco de Gouveia (1580-1659)
foi um eminente legista defensor da causa da independência de Portugal em 1640 – autor de «Justa aclamação do sereníssimo rei de Portugal D João IV: Tratado analítico dividido em três partes: Ordenado e divulgado em nome do mesmo reino, em justificação de suas ações, Lisboa, 1644» - repositório fundamental na defesa da Restauração da Independência.

 

RESTAURAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA
O mais antigo feriado nacional decretado pela República em 1910 foi o Primeiro de Dezembro, como Dia da Bandeira. Tratou-se do reconhecimento de um momento fundamental da História portuguesa. A Restauração da Independência de Portugal correspondeu a uma reação direta à tentativa de Filipe III (IV de Espanha) e do Conde Duque de Olivares de centralização e unificação dos reinos ibéricos. Estava em causa o desrespeito das condições definidas nas Cortes de Tomar (de 1581). Se Portugal nunca perdeu a soberania formal, o certo é que, como Francisco Rodrigues Lobo bem viu, o que havia era uma “Corte na Aldeia”. Os constrangimentos da guerra dos 30 anos, os efeitos da crise económica, o aumento dos impostos para financiar as forças armadas espanholas, a subalternização política portuguesa, a invasão holandesa do Brasil – tudo isso determinou grande descontentamento e alterações populares em todo o país, como as do Manuelinho em Évora. A reação não se fez esperar e os conjurados apoiaram a causa do Duque de Bragança, D. João, contando com o apoio da França do Cardeal Richelieu e a exigência da mobilização espanhola para a guerra da Catalunha. A Vice-Rainha de Portugal, Margarida de Sabóia, Duquesa de Mântua, bisneta de Isabel de Portugal e de Carlos V de Habsburgo, não resistiu e sairia de Portugal ainda em dezembro de 1640, tendo o Secretário de Estado Miguel de Vasconcelos sido morto e defenestrado pelos conjurados.


O PAPEL DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA
Depois de 1640, ao lado de D. João IV, o mais célebre dos Conselheiros do novo rei foi o Padre António Vieira (1608-1697), figura ímpar da cultura portuguesa. Foi um visionário, um diplomata, um pregador da Capela Real, um conselheiro avisado, um humanista, um lutador pelo respeito da dignidade de todos, à frente do seu tempo, e um artífice, como houve muito poucos, da palavra dita e escrita. O império vinha-se esboroando, num processo longo que vinha do último quartel do século XVI. As riquezas perdiam-se ou dissipavam-se, os “fumos da Índia” avolumavam-se, havia divisões profundas. Assim se delineou uma estratégia, segundo a qual seria necessário compatibilizar o humanismo universalista e uma nova ideia de império. E o Padre António Vieira retomou então o que os franciscanos espirituais há muito defendiam (na linha do monge calabrês Joaquim de Flora, que falava das Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo). Pode falar-se de audácia e atrevimento, bastando lembrar o poderoso “Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda”, dito na Igreja baiana de Nossa Senhora da Ajuda em Maio ou Junho de 1640 (“arrependei-vos misericordioso Deus, enquanto estamos em tempo, ponde em nós os olhos da vossa piedade, ide à mão da vossa irritada justiça, quebre vosso amor as setas da vossa ira, e não permitais tantos danos e tão irreparáveis”). Mas os exemplos multiplicam-se. António Vieira atraiu ódios que juraram pela sua pele, primeiro entre os colonos, depois na corte, entre os invejosos do lugar proeminente que assumiu junto de D. João IV, alvitrando, aconselhando e agindo, e ainda na Inquisição, pela qual foi perseguido, julgado, preso e, por fim, perdoado apenas graças à intercessão papal… Leia-se ainda o Sermão da Dominga Vigésima Segunda depois do Pentecostes (1649), onde, partindo de S. Mateus (“É lícito ou não pagar o imposto a César?”, 22,17), verbera a hipocrisia dos fariseus, ataca o fanatismo cego e sem caridade, e lembra os escrúpulos falsos de Pilatos, sempre a pensar nos inquisidores: “Ó julgadores que caminhais para lá com as almas envoltas em tantos, e tão graves escrúpulos de fazendas, de vidas, de honras, e cuidais cegos, e estúpidos, que essas mãos com que escreveis as tenções e com que firmais as sentenças, se podem lavar com uma pouca de água. Não há água que tenha tal virtude”. Nunca fugiu das dificuldades nem da denúncia dos erros e atropelos, como se vê bem no Sermão do 5º Domingo da Quaresma, dito no Maranhão: “E se as letras deste abecedário se repartissem pelos Estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M. M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e sobretudo M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente…”. O Sermão de Santo António aos Peixes, dito também no Maranhão, da 3ª Dominga da Quaresma, pregado na Capela Real, e do Bom Ladrão, apresentado na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), de 1654 e 1655, são bem ilustrativos da coragem acusatória de Vieira contra abusos e injustiças: “Encomendou el-Rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava em todos dos modos…”.


OS EFEITOS DA GUERRA DOS TRINTA ANOS
Com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) a finar-se, havia que preparar um alinhamento que permitisse uma presença segura na nova balança europeia. E a justificação espiritual (que a Inquisição considerou heresia) poderia abrir novos horizontes, sobretudo através da criação de bases sólidas no Brasil e na Índia. Assim, o Quinto Império não era um sonho desligado da realidade nem uma ilusão centrada no território da loucura, era a tentativa de regresso à epopeia de quinhentos, com um repensamento estratégico que tirasse lições dos erros cometidos. Assim foi concebida a “História do Futuro”, antecipada pelo Sermão dos Bons Anos (1.1.1642), onde as Escrituras, as profecias de S. Frei Gil de Santarém e as “Trovas” do Bandarra levaram-no a transferir o mito do Desejado de um rei morto em Alcácer-Quibir (Sebastião) para um rei vivo (João, ali presente na Capela Real). Seria nesse império que se reuniriam todos os povos sob a égide do Vigário de Cristo e sob um mesmo governo temporal do Rei de Portugal… A obra de Velasco de Gouveia reúne os argumentos fundamentais para defesa da causa do Duque de Bragança D. João, invocando conclusões que viriam a ser consideradas apócrifas das Cortes de Lamego, onde se consideraria que «a filha fêmea de el-Rei que casasse com príncipe estrangeiro, que não fosse português, não pudesse herdar nem suceder nele para que assim nunca o reino saísse fora das mãos dos Portugueses nem reinasse nele pessoa que o não fosse».

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

O AMOR DAS TRÊS LARANJAS...

 

"O Amor das Três Laranjas", ópera em 4 atos de Sergei Prokofiev, é mais conhecida e escutada, na forma da suite sinfónica, do que outras raras produções teatrais e escassa discografia operática do mesmo autor. Subiu pela primeira vez à cena em Chicago, a 30 de dezembro de 1921, sendo o libreto da autoria do mesmo Prokofiev, escrito em francês com a ajuda de Vera Janocopoulos, a partir da fábula "L’Amore delle Tre Melarance" que o nobre Carlo Gozzi escrevera para o carnaval de Veneza de 1761. A fantástica história passa-se num imaginário reino de cartas de jogar, cujo soberano, o Rei de Paus, se vê impotente para travar o definhamento do seu único filho e herdeiro do trono, que padece de destruidora hipocondria... Na verdade, Leandro, primeiro-ministro (e Rei de espadas), deseja o trono e pensa obtê-lo, com a morte do príncipe herdeiro, pelo casamento com Clarissa, sobrinha do Monarca e segunda na ordem de sucessão.


Entretanto, como se crê que só o divertimento e o riso poderão curar o príncipe e salvar o Estado, cómicos, trágicos, líricos, excêntricos e tolos, todos concorrem com a oferta dos seus estilos e formas de distração, mas com a sistemática contestação dos ridículos... Finalmente, será uma maldição da fada Morgana, protetora de Leandro, condenando o príncipe e amar três laranjas, que irá salvá-lo. Do corte de duas laranjas que os homens fazem para matar a sede, saem duas princesas que de sede morrem; mas do terceiro e último fruto surge uma jovem linda, que Morgana ainda tenta transformar em rato, mas que  é restituída ao esplendor da sua graça e casará com o herdeiro do trono, assim o curando e salvando o trono e o país.


É curioso observar como o libreto e a composição musical da ópera se processam a partir de maio de 1918, quando Prokofiev deixa Petrogrado para seguir para os EUA, via Vladivostock e Japão, após ter obtido do comissário do povo Lunatcharski autorização para deixar o país. A razão da partida é a necessidade de trabalhar em sossego. Ao compositor, eram-lhe indiferentes a revolução e a contra-revolução: "A mim. não me interessa a política, a arte nada tem a ver com isso. Evito pensar na política quando trabalho". Seria sincero, mas o certo é que regressaria à URSS, em 1936, ao que parece por razões de interesse próprio. "O Amor das Três Laranjas" é uma sublimação da dura realidade política e social através de uma fantasia irónica: afinal, o poder procura a sua continuidade, mas quem encontra solução é um hipocondríaco, rodeado de conspiradores, que pede propostas e iniciativas a uns quantos cómicos, trágicos, líricos e cabeças vazias, que os ridículos ora aprovam ora desaprovam, pois no fundo tudo querem, tal como nós, rindo de tudo... Nesta história, a salvação chega pelo amor de uma princesa surgida de uma laranja, que a sede desenfreada dos homens não chegou a destruir. E na nossa história real? A ironia vivaz, da suite sinfónica, que agora escutámos, aponta para esse incansável e insaciável "marketing" político que, todos os dias, nos coloca no meio de uma barafunda de pregões, de promessas e de protestos... Não sei porquê, ocorre-me o conselho de S. Domingos, fundador de uma ordem de pregadores, aos seus irmãos: que me apague, me tape, me esconda, para não esconder a voz do meu Senhor. Antes de falar, precisamos de silêncio. Fala-se demais, esquecemos que a agitação das palavras no frenesi dos discursos foi já sinal de grandes tragédias.

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 17.08.2012 neste blogue.  

BREVE EVOCAÇÃO DO TEATRO GARCIA DE RESENDE


Evocam-se hoje os 140 anos da fundação em Évora da chamada Companhia Fundadora do Teatro Garcia de Resende, iniciativa que se desenvolve a partir da aquisição e início da edificação do edifício e, segundo então se pretendiam da atividade cultural inerente. A obra inicia-se em 1881, prossegue mas suspende-se em 1883. O grande animador foi José Maria Ramalho Perdigão.


Mas o certo é que a obra é suspensa por falta de meios e Ramalho Perdigão morre em 29 de janeiro de 1884. Três anos decorridos, a viúva, de seu nome Inácia Fernandes Ramalho, casa em segundas núpcias com Francisco Eduardo Barahona Fragoso, o qual assume grande parte da herança do primeiro casamento de Inácia: e desse casamento resultou, entre tantas mais consequências, o avanço das obras então interrompidas.


Uma vez terminadas as obras, Fragoso doa o Teatro à Câmara Municipal.


E assim surge, concluído, um dos mais antigos teatros municipais inaugurados em Portugal!...A inauguração data de 1 de junho de 1892. E é de assinalar a inspiração direta de aspetos relevantes do projeto e da sua execução.


Evoca-se aqui o que escrevemos sobre este teatro, no estudo intitulado “Teatros de Portugal”: e é de assinalar então que este marcou de forma ainda hoje amplamente assinalável o que na época se fez no sentido da descentralização na arquitetura do espetáculo, digamos assim.


Aí se recorda então, e cito, que um grupo de cidadãos em 1881 constituiu a chamada Companhia Fundadora do Teatro Garcia de Resende e, a custas próprias, adquirem terreno e lançam-se na empreitada da construção. Como mecenas animador aparece José Maria Ramalho Perdigão. Ora a obra parou em 1883 por falta de meios e Ramalho Perdigão morre em 29 de janeiro de 1884. Ocorre então que em 1887 a viúva, Inácia Fernandes Ramalho, casa com Francisco Barahona Fragoso, o qual assume o passivo do Teatro, avança com as obras e doa-o à Câmara Municipal de Évora.


Trata-se de um dos mais antigos teatros municipais do país…


E mais acrescento na obra citada que se trata de uma típica sala à italiana excelentemente equipada e com maquinaria da época. A decoração comportava evocações do Palácio de D. Manuel e também do passado muçulmano da cidade. Mas assinalava-se como uma inspiração direta da estrutura do Teatro de São Carlos: frisas e três ordens de camarotes com decoração naturalista e ainda medalhões de atores a dramaturgos, como era hábito nos teatros da época.


E é de assinalar que o teatro abre ao público para estreia em 1 de junho de 1892. Representou-se uma peça de Eduardo Shwalbach intitulada “O Íntimo”. E acresce uma comédia francesa, tudo isto representado pela Companhia Rosas e Brasão, à época uma das mais notáveis no meio teatral português!...


E cito então aqui o que escrevi, em “Teatros de Portugal” a propósito da visita que Fialho de Almeida fez ao Teatro Garcia de Resende.


Aí recordo que Fialho de Almeida reporta-se a uma visita efetuada com o edifício ainda em obras. Aproveita, com uma proverbial verrina, para apoucar o S. Carlos e o D. Maria mas, dado o estado de ambos em 1872, certamente com razão: “riquezas de pacotilha, bancos sujos, os oiros delicados, papéis de seis vinténs, salões de grisalha besta e plafons de botequim de cavalinhos”…


Pelo contrário, acrescento, o Garcia de Resende, apesar das reservas que lhe merece o exterior, e o acesso, e apesar da sala ser “defeituosamente alta”, merece elogios. A sala apresenta “uma espécie de arcaria gótica de bom gosto”. A decoração do ebenista Leandro Braga é (cito) um “trabalho delicado, sóbrio e elegante, deixa uma impressão de riqueza e de nobreza esparsa”…


Nada menos!...

 

DUARTE IVO CRUZ

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

 

33. CIDADANIA ORIGINÁRIA E DERIVADA


Ascendência (ius sanguinis) e território (ius soli) são os elementos causais da cidadania originária.


Casamento, filiação, residência, naturalização, são exemplos de conexões relevantes para aquisição da cidadania derivada.


A cidadania originária relaciona-se com a nacionalidade, o que herdámos biologicamente, por via sanguínea, com o não escolhido, transmitindo-se de pais para filhos, de ascendentes para descendentes, enquanto consequência do sangue e do solo.


A cidadania derivada agarra mais de perto o âmbito do desejado, querido, aceite, contratado, consentido e não herdado.   


A retórica da cidadania como signo de identidade tem conteúdos primariamente conservadores: pátria, mátria, patriotismo, natureza, tradição, costumes, origens, raízes, terra.       


A da cidadania como símbolo de comunicação tem conteúdos basicamente funcionais e de substituição, usando-a por me ser necessária e útil.     


De um discurso tendencial e potencialmente sacralizador, (cidadania originária), transita-se para um dessacralizador (cidadania derivada).   


Vem isto a propósito da controvérsia sobre emigrantes e estrangeiros que escolheram Portugal para seu país agudizada, recentemente, pela nossa representação nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em que havia 19 atletas não nascidos em terras lusas.


Naturais de Angola, Brasil, Cabo Verde, China, Camarões, Costa do Marfim, Congo, Cuba, Estados Unidos, França, Geórgia, São Tomé e Príncipe, Suíça e Ucrânia.


Com particular destaque para três dos quatro medalhados: Pedro Pichardo, Patrícia Mamona e Jorge Fonseca. Com ênfase para Pichardo, medalha de ouro, não nascido português, sendo naturalizado.


Sucede que a ideia de português (ou pátria portuguesa) não exige, nem reclama ou reivindica, uma herança ou transmissão por via biológica ou genética, antes sim, e cada vez mais, uma opção desejada, necessária, querida, sentida e útil, uma compensação e um reconhecimento tão ou mais poderoso que a cidadania originária de nascença, em favor de uma cidadania derivada de uma livre escolha, por imigração, mas não só.


Tendo presente sermos um país de emigrantes, de longas viagens e misturas, em que a atual noite demográfica, uma baixa taxa de natalidade e um envelhecimento demográfico, exigem medidas adequadas e proporcionais que razoavelmente as anulem.

 

26.11.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

Ana Ruepp

 

DO CÓDIGO NOVO – Projeto 4


Artigo 20º
    

À consistência das posturas dos autores e destinatários das cartas missivas confidenciais e não confidenciais, aplicam-se as regras das redes sociais vigentes com exceção do WhatsApp tendo em conta que este só reproduz encriptadamente.

Artigo 21º      

1.Entende-se por domicílio a residência habitual da pessoa e não necessariamente o local onde dorme.

2. Para efeito de colmatar dúvidas contidas no número anterior, entende-se por domicílio o local onde o sujeito se encontrar.

3. Se a pessoa exercer uma profissão a bordo de navios ou aeronaves determina-se o domicílio em função das circunstâncias mais competentes, sejam elas quais forem.


Artigo 22º

Quando seja necessária a prestação de contas que derivem da administração de bens próprios ou alheios e caso estes bens tenham desaparecido sem que deles se saiba parte, entende-se que estes sejam relacionados à responsabilidade de quem deles desconhece paradeiro pelo qual devesse responder.

 

Teresa Bracinha Vieira

OUVIR O SILÊNCIO. VER O INVISÍVEL

 

1. Há perguntas ingénuas que parece quase tocarem o ridículo. No entanto, são das mais interessantes.


Exemplos: Onde começa um ser humano? Começar, não apenas no sentido cronológico, mas quase diria topográfico... Em que instante começou um ser humano? Aliás, a pergunta do início é similar à do fim: Que instante é esse em que um ser humano deixa, pela morte, de pertencer a este mundo e ao tempo? No tal sentido quase topográfico, a pergunta poderia assumir a seguinte formulação: O que é que um ser humano vê, quando olha, não os olhos, mas o olhar de alguém? Hegel disse  que vê o abismo do mundo. Se estivermos atentos, é isso: quando dois olhares se olham no olhar contemplam o abismo do mundo e o seu mistério.


A pergunta pode explicitar-se, perguntando: O que é que está por detrás e no íntimo e no fundo do que se vê? O que é o invisível do visível? Ou então: O que é que o visível torna visível? Melhor: O que é que o visível, precisamente ao mostrar, esconde? O que é que está na raiz do que vem à luz, do que se manifesta?


Onde é que radica qualquer pergunta digna desse nome senão aí onde habita o imostrável, mas precisamente para mostrá-lo enquanto imostrável? O que é que um rosto mostra senão alguém que está a vir à janela de si próprio, ocultando-se?


Afinal, o que vem à luz acende-se na noite... E as nossas palavras, onde é que se acendem também senão precisamente na noite do Silêncio? Mas há o silêncio morto e vazio, e o Silêncio habitado, que fala. E ouvir o Silêncio que fala não é o que propriamente se deveria chamar oração?


Quando não se ouve o Silêncio que fala, as nossas tempestades de palavras não passam de verborreia e barulho caótico, ensurdecedor. De facto, quem não bebe na fonte do Silêncio que fala, o que é que diz, quando fala? Não quero apontar para os parlamentos...


Não será precisamente porque já não há tempo para ouvir o Silêncio que os pais pouco ou nada têm a dizer aos filhos, que a palavra dos professores anda gasta e murcha, que os padres proferem palavras engasgadas e mortas, que a vida pública se vai tornando pura poluição sonora?


2. De repente, tropecei no título da rádio TSF: Como se visse o invisível. É isso: o ser humano anda distraído, mas pode acontecer que subitamente se dê conta. Aliás, o homem é homem, diferente do animal, precisamente porque não vive estando aí pura e simplesmente, mas se dá conta de que vive, reflecte sobre as coisas, sobre a existência, sobre si próprio.


Como se visse o invisível... Afinal, como é? Trata-se de um simples "como se" ou vê-se mesmo o invisível? E se se vê, que invisível é esse? E como é que se vê o que é invisível? E esse ver é privilégio de alguns ou todos podem vê-lo? Ou acontece até que todos o vêem, simplesmente não se dão conta disso?


Quem ouve como se visse o invisível não espera ouvir dizer que alguém viu Nossa Senhora ou bruxas ou o diabo ou um anjo aí numa esquina qualquer, numa igreja, numa esplanada, no cimo de um monte... Mas então quem fala em Como se vissse o invisível o que é que viu de especial para ousar falar do invisível, como se o tivesse realmente visto? Afinal, o que é que ele ou ela viu ou vê?


Quando não andamos completamente distraídos, sabemos que vemos sempre mais do que aquilo que julgamos ver, ouvimos sempre mais do que pensamos ouvir, pensamos sempre mais do que pensamos. Toda a experiência é sempre experiência com experiências. Seja qual for a esperiência, sabemos dela, de nós e das condições de possibilidade do experienciar. Quando vemos algo, não vemos apenas esse algo que estamos a ver, pois vemo-nos também a nós que estamos a ver, embora não tenhamos imediatamente consciência disso. Por outro lado, por mais que vejamos de nós, nunca nos vemos completamente: somos sempre mais do que vemos de nós ou sabemos de nós. Nunca conseguimos ir até ao fundo de nós, tornar-nos completamente transparentes a nós próprios.


O olho vê o que vê, mas nunca se vê a si mesmo; sabemos, no entanto, que está lá. Como dizem os Vedas, livros sagrados dos Hindus, "o que vê não pode ser visto; o que ouve não pode ser ouvido; e o que pensa não pode ser pensado". O mais fundo de nós nunca pode vir à consciência, é, por sua própria natureza, invisível. Quando demos por nós já lá estávamos, e a existência nunca pode ser reflectida adequadamente nem tornar-se plenamente consciente de si própria. Assim, quando nos vemos é sempre com o invisível que contactamos.


Antes da execução, aos condenados à morte vendam-lhes os olhos, porque o olhar da vítima é intolerável. Afinal, quando vemos alguém no olhar o que é que vemos senão o invisível na sua visibilidade, mas precisamente de tal modo que permanece invisível? Uma pessoa no seu corpo, melhor, um corpo pessoal não é simplesmente uma estrutura fisiológica visível: ninguém faz amor com uma estrutura orgânica visível, mas ama-se uma pessoa na sua invisibilidade palpável e visível. Um corpo humano é uma "alma" visível e vista, cheirada, palpável...


Quando olhamos para o mundo com olhos de ver é sempre com o invisível visível que entramos em contacto. A realidade toda é a visita do invisível. Na raiz de tudo está um mistério que se diz, que vem à luz, mas que ao mesmo tempo continua velado e sem se ver: vê-se precisamente como invisível.


Como se visse o invisível: apontamentos para chamar a atenção para o mistério do ser, para a dignidade de ser homem, para a justiça, para a religação última à fonte invisível de tudo o que se vê...

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 de novembro de 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Em Lisbon Story o olhar e a existência desejam unir-se.


“Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!”, Álvaro de Campos, Ode Triunfal.


Em Lisbon Story (Wim Wenders, 1994) a evasão no espaço sugerida por Fernando Pessoa é descrita pela atitude da personagem de Friedrich que se tornou ninguém perante a cidade. Captar a cidade somente através da lente tornou-se uma prisão para Friedrich. O caminhar e o olhar desejam estar em uníssono. E no filme, também o som resgata a verdadeira existência das coisas.


“Todos os dias a Matéria me maltrata (…) Busco-me e não me encontro. (…) O meu amor ao ornamental é sem dúvida porque sinto nele qualquer coisa de idêntico à substância da minha alma.”, Fernando Pessoa em “Livro do Desassossego” (Pessoa 134-142)


Os objetos e as imagens que fazemos desses objetos constroem-nos. A experiência de sentir confirma a nossa existência. O posicionamento das coisas no mundo ajuda a determinar os nossos limites físicos - nós nunca nos chegamos verdadeiramente a ver de fora. O mundo que nos rodeia é o nosso espelho, é uma ajuda para a descoberta do sentido da nossa existência - mesmo que não saibamos quem somos o espaço que nos rodeia com o tempo nos dirá.


“Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?”
Álvaro de Campos, Ali não havia eletricidade


Capturar uma cidade através de um filme, segundo Wim Wenders só é possível através de uma narrativa que tente estabelecer uma ordem e uma possível estrutura. A história traz sempre uma ilusão, porque afirma uma espécie de coerência e significado aparente à circunstância indeterminada que nos rodeia.


“Stories give people the feeling that there is meaning, that there is ultimately an order lurking behind the incredible confusion of appearances and phenomena that surrounds them.”, Wim Wenders In The Cinema of Wim Wenders: The Celluloid Highway (Graf 2002, 2)


É impossível conter o espaço todo de uma cidade numa película, mas o cinema pode ajudar a resgatar a existência das coisas que estão à frente dos nossos olhos. Para Wim Wenders, o cinema ao ajudar a ver de novo pode tornar-se então numa experiência poética única - as imagens filmadas podem até contribuir para a formação e fixação da identidade de uma pessoa.


Em Lisbon Story, a personagem de Friedrich explora o indeterminado e impreciso espaço de uma cidade. Friedrich deseja simplesmente pertencer ao que existe, porque diante da cidade talvez consiga entender aquilo que é verdadeiramente. A experiência de decifrar o espaço da cidade através dos sentidos pode levar paradoxalmente à perda de si mesmo. Existe o desejo do mundo e da pessoa humana se transformarem num só.


“E às vezes, em pleno meio da rua - inobservado, afinal - paro, hesito, procuro como que uma súbita nova dimensão, uma porta para o interior do espaço, para o outro lado do espaço, onde sem demora fuja da minha consciência dos outros, da minha intuição demasiado objetivada da realidade das vivas almas alheias.”, Fernando Pessoa, Livro do Desassossego (Pessoa 2014, 134)


A vida de Friedrich paira sobre a cidade e casa impede-o de ser. O olhar e a existência desejam unir-se, porque a vida também pertence às coisas. Friedrich caminha pelas ruas da cidade e tenta captar e colecionar imagens que nunca foram vistas, imagens puras, que conservam a realidade tal como é - imagens que não vendem nem histórias nem coisas, imagens que não estão contaminadas por um determinado olhar. Friedrich acredita que se não for vista, a imagem e o objeto poderão permanecer para sempre juntos. Mas, ao longo de Lisbon Story, apercebemo-nos que afinal a criação das imagens têm de ser feita sempre com um determinado olhar, porque é através da sensibilidade única e singular de cada um de nós que se criam imagens que realmente são indispensáveis e que criam para sempre ressonâncias.


“No magno dia até os sons são claros (…)
Quisera, como os sons, viver das coisas
Mas não ser delas…”, Ricardo Reis

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

De 22 a 28 de novembro de 2021

 

A Quinta do Mosteiro de Moreira da Maia, propriedade de Luís de Magalhães, foi o lugar de um decisivo encontro respeitante à questão do Mapa Cor-de-Rosa.

 

UM ENCONTRO OPORTUNO
O encontro em Moreira da Maia, de fevereiro de 1890, entre Antero de Quental e Oliveira Martins, em casa de Luís de Magalhães, tem a ver com um dos acontecimentos mais dramáticos da história portuguesa no final do século XIX – o ultimato inglês, sobre a questão do “Mapa Cor-de-Rosa”. Antero presidia à Liga Patriótica do Norte, criada para responder à humilhação de que Portugal foi vítima por parte do Governo britânico, ao ser compelido a abandonar a pretensão ao território entre Angola e Moçambique. O ultimato foi recebido a 11 de janeiro de 1890, sob a forma de telegrama, e suscitou uma imediata onda de protesto, perante uma atitude que contrariava o que o governo português vinha sustentando (desde 1886) na sequência da Conferência de Berlim de 1884-85, sobre a tese da ocupação efetiva de um território. Logo a 10 de fevereiro, constituída a Liga, presidida por Antero de Quental, esta enviara ao Presidente do Governo António de Serpa Pimental uma carta, em que era solicitada uma reação enérgica à provocação britânica. “Há horas solenes, em que a máxima, e ainda a mais brutal franqueza, é um dever de bom cidadão. Uma dessas horas é esta, e nós cumprimos um sagrado dever expondo sem véus à consideração de V. Exª todos os perigos que há em se demorar por mais tempo o exemplar castigo daquele criminoso”. A linguagem era dura e quem assinava a declaração tinha autoridade moral, política e intelectual para a fazer. Sob a presidência prestigiada do poeta de Sonetos, a Liga reunia, entre outros: Rodrigues de Freitas, António Vieira de Castro, Bento Carqueja, José Pereira de Sampaio (Bruno), Basílio Teles, Luís de Magalhães, António Oliveira Monteiro, Ricardo Jorge, conde de Resende, António Nicolau de Almeida, João Pais Pinto (abade de S. Nicolau), Maximiano Lemos e Joaquim de Vasconcelos.


UM GRITO DE REVOLTA
O movimento avançou, como um grito de revolta partilhado pela opinião pública, mas Antero quis saber o que pensava o seu fraternal amigo Oliveira Martins sobre o tema. “Precisamos muito de conversar. Por cartas nada se faz e agora nem tempo tenho para correspondências. Não poderíamos encontrar-nos ‘casualmente’ nalgum sítio, por exemplo em Aveiro em visita ao Jaime (Magalhães de Lima) ou coisa assim? Parece-me indispensável que combinemos um plano geral de modo que nunca tenhamos de trabalhar um contra o outro, só por falta de prévia entente. Você dirá, como e quando, quer que isto se realize. Sou bem infeliz e todavia sinto não sei que íntima e serena alegria. Dei-me todo a isto, mas em que disposição de espírito, bem o pode você conjeturar. Não havia outro homem e desde que me provaram que eu era o único possível entendi que não podia recusar-me”. O momento era dramático. Jaime Magalhães de Lima fora convidado por Antero para seu braço direito na Liga. Não houve delongas, o encontro era mesmo urgente. Não seria Aveiro, mas na Maia o lugar do encontro. Luís de Magalhães, o hospedeiro, deu testemunho: “Essa entrevista entre ele (Antero) e o seu tio (Oliveira Martins) (o esclarecimento foi dado, anos mais tarde, a meu Avô) teve com efeito lugar, mas foi aqui mesmo, em Moreira, onde este veio de propósito de propósito para esse fim. Seu tio vinha na ideia de que nós preparávamos uma revolução e tínhamos meios militares importantes (!!). A verdade é que não tínhamos nada, além do prestígio do nome de Antero, do entusiasmo da rapaziada e do sonho de meia dúzia de patriotas sinceros que acreditavam no efeito salutar da reação manifestada”.  O que se terá passado? O encontro foi profícuo e os amigos concluem que o que os une é o mais forte. E os acontecimentos que se seguiram dão-nos a chave para o misterioso encontro. Houve eleições em março de 1890, e a lista republicana em Lisboa (Elias Garcia, Latino Coelho e Manuel de Arriaga) obteve um bom resultado. Mas logo em julho de 1890 já o afã da Liga esfriara. “A liga morreu afinal de pura inanição porque ninguém no fundo queria saber nem das colónias, nem de desforra, nem de reformas sociais (diz Antero). O que se passou durante este inverno é a prova mais cabal do estado de prostração do espírito público entre nós. Berrou-se muito e, afinal, chegaram as eleições, e toda a gente, movido cada qual por mesquinhos interesses, votou nos candidatos do governo, governo apoiado pela Inglaterra e que, nessa ocasião estava lançando a polícia sobre os que faziam manifestações patrióticas”. Onde o poeta sonhara poder levar a cabo uma ação doutrinadora orientada para a reforma do país, instalou-se, afinal, a inércia que tudo tocava. A 22 de agosto de 1890, é assinado um tratado com a Inglaterra, negativo para a nossa posição. Serpa Pimentel apresenta a solução em nome do governo – era Hintze Ribeiro ministro dos Estrangeiros e Barjona de Freiras, o negociador em Londres.


UM GOVERNO PARA EVITAR UM GOLPE MILITAR
O protesto mais intenso parecia atenuado nas ruas. Mas Oliveira Martins e os seus amigos continuam a criticar severamente a solução. Era inaceitável para a posição portuguesa. Entretanto, avolumava-se o boato sobre um golpe militar. Os republicanos preparavam-se afanosamente, e a proclamação da República brasileira (novembro de 1889) dava-lhes alento. Oliveira Martins há muito que considerava errada a política que conduzira ao malfadado ultimato, e continuava a pensar o mesmo quanto ao acordo de agosto. E aqui está a chave do entendimento de Moreira da Maia. O historiador dissera a Antero que a radicalização para que alguns queriam conduzir a Liga só agravaria as coisas – e Antero compreendeu-o bem. Por isso, apesar de tudo, o tempo dar-lhes-ia razão. A 15 de setembro, a Câmara dos Deputados não aprova o acordo.  Em outubro, é convidado o General João Crisóstomo de Abreu e Sousa para formar um gabinete não partidário. Depois de hesitar, vai buscar dois amigos de Oliveira Martins – António Cândido e António Enes, para as pastas do Reino e da Marinha e Ultramar e Barbosa du Bocage para os Estrangeiros. Enes terá um papel fundamental, ele que afirmara: “A Inglaterra quando Portugal era representado pelo governo progressista, tratou-nos como um inimigo, movendo esquadras e carregando canhões para lhe vencer a resistência; quando viu o Sr. Hintze Ribeiro a representá-lo, tratou-o como um servo, querendo sujeitá-lo ao seu consentimento, para dispor do que nos pertence! A 11 de janeiro foi violenta; a 20 de agosto desprezadora”. É António Enes quem encontrará a saída necessária, que reconhecia a liberdade de navegação no Zambeze e no Chire para Portugal e o compromisso britânico de não manipular a posição dos régulos… Em Londres, o embaixador de Portugal, o marquês de Soveral assina em novembro com Lorde Salisbury uma convenção que confirma tal entendimento… Apesar de todas estas diligências, o ultimato deixará uma ferida profunda, que contribuirá para os trágicos acontecimentos do fim do regime monárquico. Mas, como afirma o autor de Portugal Contemporâneo: “Se é verdade ser o povo quem faz os governos, não é menos verdade que a fraqueza dos príncipes e dos ministros entibia as energias dos povos”…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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