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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O AMOR DAS TRÊS LARANJAS...

 

"O Amor das Três Laranjas", ópera em 4 atos de Sergei Prokofiev, é mais conhecida e escutada, na forma da suite sinfónica, do que outras raras produções teatrais e escassa discografia operática do mesmo autor. Subiu pela primeira vez à cena em Chicago, a 30 de dezembro de 1921, sendo o libreto da autoria do mesmo Prokofiev, escrito em francês com a ajuda de Vera Janocopoulos, a partir da fábula "L’Amore delle Tre Melarance" que o nobre Carlo Gozzi escrevera para o carnaval de Veneza de 1761. A fantástica história passa-se num imaginário reino de cartas de jogar, cujo soberano, o Rei de Paus, se vê impotente para travar o definhamento do seu único filho e herdeiro do trono, que padece de destruidora hipocondria... Na verdade, Leandro, primeiro-ministro (e Rei de espadas), deseja o trono e pensa obtê-lo, com a morte do príncipe herdeiro, pelo casamento com Clarissa, sobrinha do Monarca e segunda na ordem de sucessão.


Entretanto, como se crê que só o divertimento e o riso poderão curar o príncipe e salvar o Estado, cómicos, trágicos, líricos, excêntricos e tolos, todos concorrem com a oferta dos seus estilos e formas de distração, mas com a sistemática contestação dos ridículos... Finalmente, será uma maldição da fada Morgana, protetora de Leandro, condenando o príncipe e amar três laranjas, que irá salvá-lo. Do corte de duas laranjas que os homens fazem para matar a sede, saem duas princesas que de sede morrem; mas do terceiro e último fruto surge uma jovem linda, que Morgana ainda tenta transformar em rato, mas que  é restituída ao esplendor da sua graça e casará com o herdeiro do trono, assim o curando e salvando o trono e o país.


É curioso observar como o libreto e a composição musical da ópera se processam a partir de maio de 1918, quando Prokofiev deixa Petrogrado para seguir para os EUA, via Vladivostock e Japão, após ter obtido do comissário do povo Lunatcharski autorização para deixar o país. A razão da partida é a necessidade de trabalhar em sossego. Ao compositor, eram-lhe indiferentes a revolução e a contra-revolução: "A mim. não me interessa a política, a arte nada tem a ver com isso. Evito pensar na política quando trabalho". Seria sincero, mas o certo é que regressaria à URSS, em 1936, ao que parece por razões de interesse próprio. "O Amor das Três Laranjas" é uma sublimação da dura realidade política e social através de uma fantasia irónica: afinal, o poder procura a sua continuidade, mas quem encontra solução é um hipocondríaco, rodeado de conspiradores, que pede propostas e iniciativas a uns quantos cómicos, trágicos, líricos e cabeças vazias, que os ridículos ora aprovam ora desaprovam, pois no fundo tudo querem, tal como nós, rindo de tudo... Nesta história, a salvação chega pelo amor de uma princesa surgida de uma laranja, que a sede desenfreada dos homens não chegou a destruir. E na nossa história real? A ironia vivaz, da suite sinfónica, que agora escutámos, aponta para esse incansável e insaciável "marketing" político que, todos os dias, nos coloca no meio de uma barafunda de pregões, de promessas e de protestos... Não sei porquê, ocorre-me o conselho de S. Domingos, fundador de uma ordem de pregadores, aos seus irmãos: que me apague, me tape, me esconda, para não esconder a voz do meu Senhor. Antes de falar, precisamos de silêncio. Fala-se demais, esquecemos que a agitação das palavras no frenesi dos discursos foi já sinal de grandes tragédias.

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 17.08.2012 neste blogue.