Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Saberá, meu unilateral correspondente, melhor, muito melhor do que eu, o quanto gostei do seu relato da Natividade de Jesus: "O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. "Sei bem que me desvio (um pouco?) da contemplação feliz, apaziguadora, certamente necessária, de um Presépio tradicional, inodoro e bonito. Eu, como todos, gentes várias de muitas condições, preciso dessa paz, do instante, curto que seja, em que sinto, no coração angustiado ou perdido, o conforto duma lareira amiga, a visão de uma esperança como promessa antiga... (Uso as ... reticências, sei que o José as não usava nem gostava delas. Mas não é por mim nem para mim que as uso. É tão só porque assim exprimo uma expetativa, que mais não é do que querer aguardar o que ainda não conheço. Modos de ser, concedo...) Mas gosto, sem reticência alguma, da verdade humana, dessa densidade tão sentida do parto de Jesus, do livramento de Maria. Essa foi a Incarnação de Deus. É, como todas as dores de parto, contra todos os atentados contra a vida e todos os desvios dela, o Manuel, o Deus connosco. É, para o cristão, o que a poesia é para Novalis: o real absoluto. Fundador da nossa cultura como visão metafísica do mundo e da história. O Deus que "nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo..."morrerá, infamemente talvez, mas para que, na hora da morte, ao fechar os olhos, cada um de nós os possa abrir com Ele. Deus é como a semente: morre para renascer. E porque não será assim, na nossa condição de trânsfugas, quando até do casulo da lagarta sempre nasce uma borboleta? Ou do coração que está na boca de um poeta analfabeto, se liberta um poema que nos prende o vadio pensamento? Onde se nos promete Deus? Se à sua imagem e semelhança fomos feitos, ele certamente habita o segredo do nosso coração. E é esse o segredo, José, da vida de cada um. O tal que cada um, à sua maneira, desvendará ou não. Por isso sempre penseissenti que de nada vale, nem para nada serve, a santa inquisição ou outra qualquer perseguição. A verdade não se impõe de fora para dentro, nem sequer se demonstra fora da íntima intuição de cada um. Creio muito que, no coração de Deus, a verdade é uma vocação lançada ao coração dos homens. E Deus lá sabe. Posso entender que almas piedosas se amofinem à imagem súbita dessa natividade tão carnal do Deus humanado. Mas assim terá sido, nenhum escrito canónico nem apócrifo o contesta, e, pelos séculos de piedade cristã que se sentia na rudeza do mundo em que ela vivia, tal sentido de pertença de Jesus à terra e à condição dos homens esteve sempre presente. Mas é também parte do humano coração dos povos uma eucaristia, ação de graças. A incarnação de um deus transcendente, nem nos olimpos onde os deuses incarnavam os nossos desejos e fúrias, nem mesmo nos neopaganismos "à Ricardo Reis", em que se contentavam com o espetáculo do mundo, despidos já de qualquer intervenção nas nossas vidas, tem, para os fiéis de religião monoteísta, explicação plausível. É um escândalo. E tal é o espanto, que a sua representação terá de se apoiar em sinais de transcendência. Até o José Saramago talvez não tenha resistido a essa tentação: no seu "evangelho", percebo, a conceção de Jesus terá de ser realizada pela união carnal de Maria com José. Não me escandalizou a ideia, devo dizer-lhe, nesse tempo terrenal (como diria o nosso Gil Vicente), em que o José a pôs por escrito. Nada tem contra a natureza das coisas. Aliás, nem sempre compreendi, antes de estudar alguma antropologia, o horror "religioso" ou "puritano" ao ato carnal - que, na minha religião, tal como a fui entendendo, é sacramento do amor criador, com Deus, entre um homem e uma mulher - nem ganhei horror ao sangue menstrual da mulher; nem me passou pela cabeça que a união de meu pai e minha mãe fosse um ato reprovável... Abençoado gozo que me deu vida! Mas também não vejo por que razão, antes e depois de ter estudado antropologia, eu não hei de perceber que um acontecimento de dimensão cósmica como é a incarnação de Deus, não possa ter, nos textos que nos transmitem testemunhos coevos - que, aliás, ó José, note bem!, não eram de gente interesseira, antes de pessoas simples, muitos pobres, todos talvez agradecidos por esse gesto de Deus, que maravilhava a sua fé! - essa expressão de pureza absoluta, o gesto sem mácula possível, livre de qualquer outro pensamento - desses muitos que nos ocorrem quando em ato sexual, a luxúria ou a violência vêm apagar a ternura e o amor. Somos trânsfugas, sabê-lo-á hoje, bem melhor do que eu. Por isso tanto precisamos dessa "Ó estrelinha do norte, espera por mim, que já vou, alumia o meu caminho, já que o luar me enganou..." Cá em baixo, José, digo-lhe com franqueza: preciso de esperança, não de mitos que os homens construíram e trucidantemente se entreteram a destruir... Como Antero de Quental, tenho um coração que procura a mão de Deus... Amar os outros, amar mesmo este destino de escuridão e saudade, a que tantas vezes nos sentimos condenados, não é fácil. Para nenhum de nós, sobretudo para os que o fado despojou e nós outros desamparámos. Só por isso seja abençoada a virgindade de Maria, pois não é de um insignificante pormenor físico de que então falamos, mas desse indizível sentimento de dignidade inicial, essencial, falo-lhe, José, do intocável que habita o cerne de cada pessoa e que, à falta de melhor, os mais pobres reconhecem na Virgindade Maternal de Maria.
Por isso, à margem e contra as tradições misóginas e machistas de civilizações, culturas e religiões, se foi impondo, no culto popular, a revelação do que não deixamos que alguém desrespeite em nós. No seu "evangelho", o José Saramago tem algum temor (?), ou será premonição temerosa (?), quanto ao sobrenatural de Jesus: concebido pela união de Maria e José, não se livra todavia de um mendigo - anjo? - a quem Maria dá de comer numa tijela, onde ele deitará terra, no fundo da qual brilhará uma luz e que, mesmo enterrada, por obra de José e dos da sinagoga, será sempre semente de uma árvore sempre renascida. Será esse anjo (?) escolta de Maria até ao livramento, aí feito pastor que lhe leva o pão. Bonita imagem, no seu presépio, aliás, só os pobres participam e oferecem ... Se algum dia eu chegar aí acima - pois duvido de que o José possa entretanto voltar cá abaixo - far-me-á o favor de explicar porque insistiu em que o outro José (o carpinteiro) fizesse mais filhos a Maria, e lhes deu os nomes que uma narrativa egípcia, de que se conhecem originais em copta e árabe, atribuiu aos filhos do primeiro casamento de José Nazareno, antes de Maria. Estes textos, como outros coevos, e a tradição dos povos crentes, sempre referem a Virgindade Maternal de Nossa Senhora. Ora, se o Alfredo Marceneiro perguntava, sobre ele mesmo, "há maneira melhor de ser fadista?", não poderei eu inquirir se há maneira melhor de concebermos a incarnação de Deus? Noutro texto apócrifo, uma vida de Jesus em árabe, de origem síria, remotamente persa, diz-se "Em nome de Deus, Benevolente e Misericordioso: no Tempo de Moisés, o profeta, sobre ele permaneça a paz, vivia um homem chamado Zoroastro; foi quem revelou as ciências da magia. Certo dia, em que, junto de uma fonte, ensinava as ciências do magismo, disse-lhes em seu discurso: A virgem engravidará, sem ter conhecido homem, sem que o selo da virgindade tenha sido rompido..." E diz o Corão: "Deus não pode ter filhos. Longe da sua glória essa blasfémia! Quando decide uma coisa, diz: Seja! E ela é." Mas antes disse: "A ela enviámos o nosso espírito... ... Disse-lhe: sou o enviado do teu Senhor, para te dar um filho santo... Como, contestou ela, terei eu um filho? Homem algum se chegou a mim e certamente não sou uma dissoluta... Respondeu-lhe: Será assim, disse o teu Senhor: isso é fácil para mim. Será o nosso sinal diante dos homens, prova da nossa misericórdia." Haverá forças ocultas, ânimos, que nos escapam e perseguimos com símbolos e ritos que possam possuí-las; ou deuses olímpicos, tão cheios de vícios nossos que poderemos corrompê-los; ou divindades sanguinárias que exijam sacrifícios que medularmente nos anulem. Ou, ainda, promessas de homens com memória mais curta e força mais fraca do que a sua própria existência. E aparece esta proposta de um Deus que fecunda, ele mesmo, o ventre de uma mulher humilde e nos diz: Quero ser convosco! Posso acreditar, aceitar ou não. Se disser sim, sei que participo dessa geração. E não preciso de mexer numa história que foi tão lindamente contada.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 03.11.2013 neste blogue.
Sem de modo algum reduzir o temário destas evocações, será apesar disso oportuno referir o centenário de Mário Braga (1921- 2016), independentemente da projeção e permanência da sua criatividade artística, concretamente no que se refere ao teatro. Temos por um lado o centenário em si mesmo: mas temos sobretudo a obra teatral propriamente dita.
Nesse sentido pois, adequa-se a referência, sendo certo que a obra teatral propriamente dita, justificável em si mesma pela qualidade, merece esta ou mais vasta referência: e esperamos que haja bem mais, pois a obra e a relevância de Mário Braga em muito transcende a produção teatral!...
Ora a verdade é que o teatro de Mário Braga de certo modo marcou a renovação da dramaturgia portuguesa da época, sendo certo que se está perante um autor que pouco se projeta no que se refere ao teatro em si mesmo. E importa então ter presente que esta obra teatral está algo esquecida, mas a qualidade impõe no mínimo este tipo de evocação.
E é o que aqui faremos com base na minha “História do Teatro Português” onde dedico a este autor, uma larga referência.
Aí evoco efetivamente que Mário Braga escreveu em 1949 uma comédia intitulada “O Pedido”, passada no final da guerra, num ambiente então adequado à época mais ainda hoje em si mesmo relevante. No meu texto acima citado refiro muito concretamente uma situação irónica e engraçada, sem outras pretensões, numa cena de filha de pai rico apaixonada por um poeta. E acrescento que se rompe o noivado quando se percebe que “sem ao menos uma mesada” o futuro de Raul, e sua obra terão as maiores dificuldades.
Mas tal como já escrevi, a peça mais significativa pela qualidade mas também pela aproximação a um estilo neo-realista é “A Ponte sobre a Vida”, (1964) adaptação de um conto do autor intitulado “Corpo Ausente”. E cito a propósito a síntese que acerca desta peça escrevi.
Num ambiente bem retratado de cidade de província da época, a morte do personagem Luís, ocorrida num desastre de automóvel, precipita o irmão José Alberto, e a cunhada Gabriela, numa árdua meditação sobre a morte, que Luís, romancista de sucesso, já vinha desenvolvendo. O comércio, a burocracia e o ritual das cerimónias fúnebres acentuam a profunda frustração existencial do romancista, que só sai dela para preencher a ação política, clandestina e arriscada que o acidente interrompe!
Mas a nossa democracia não factualizou, embora a consagre, a liberdade como valor prioritário, mas sim a segurança.
Por razões históricas, a antiga aceitação da liderança por instituições e pessoas onde o poder está estritamente concentrado, continuou após abril de 1974.
Tal tolerância é uma tradição que tem raízes no passado, em fenómenos estruturantes de cariz totalitário, por contraste com menos anos de constitucionalismo liberal.
O que tem reflexos no não culto do debate público e exercício do contraditório, não uso da reclamação, nem de expressões assertivas, francas, frontais e diretas, mesmo que incómodas.
E no não uso robusto da liberdade, com todas as inevitáveis e estruturais consequências danosas a nível da educação, ciência, investigação, criatividade e grau de desenvolvimento.
A que acresce a ausência duma classe média maioritária, pagadora de impostos, exigente, instruída, reclamante e reivindicativa.
Se na luta entre fortes e fracos, quem governa tende a dominar os governados e se estes, mesmo assim, se conformam, não escrutinam ou dizem bem daqueles, não se justifica a liberdade, pois só nos interessa tê-la quando somos perseguidos pela nossa contundência e sentido crítico.
Dizer bem e concordar, não acarreta o perigo de perseguição, exílio, prisão ou morte, pelo que faz falta tal liberdade para podermos opinar sobre coisas não elogiosas, polémicas, escandalosas, que magoam e de que não gostamos, desde que não se opine ou publiquem notícias de consabida falsidade, falte à verdade ou se façam afirmações por maldade ou malvadez, ou grosseiramente investigadas por omissão.
É esta liberdade que me possibilita, aqui e agora, não me sentir censurado ou espiado, que gostaria de ter permanentemente garantida e vivida, e não apenas formalmente consagrada ou restaurada por lei no meu país.
Que não se baseia em messianismos fundados num milagre ou salvador que nunca veio, na desistência de pensar ou mero gerir da saudade, no bota-abaixo, de dizer mal de tudo e todos, festança e papança sem responsabilidades, de querer todos os direitos sem deveres. Embora proibir, condenar e mandar alguém para a prisão, por opinar e pensar mal, possa ser um atentado a essa liberdade.
Trata-se dum itinerário com sucessivas viagens, em que a democratização foi um meio que nos aproximou da democracia pluralista da União Europeia a qual, mesmo em crise, nos exige como pressuposto e objetivo um pluralismo em liberdade, só assim garantido, de momento, entre nós, por confronto com a longa noite de fenómenos estruturantes, totais e totalitários do nosso historial.
Sem esquecer que quem está no topo aprecia predominantemente o status quo vigente, razão pela qual o exercício e garantia dos direitos fundamentais são uma defesa contra os excessos do poder estadual e dos poderosos, pois se perdermos a liberdade (liberdades fundamentais e direitos humanos, onde se integram a liberdade de expressão e o direito à informação), acabamos por perder também a segurança.
A aplicação das disposições do presente novo código com os esclarecimentos por ele permitidos, são fontes do direito.
Artigo 11º
1. A necessidade de que se tenha adquirido uma maturidade intelectual e física para que haja vontade válida, determina a admissibilidade caso a caso da mesma ser aferida.
2. Excetua-se do número anterior a possibilidade de a maturidade ser atribuída por mão comum.
ARTIGO 12º
No momento da perpetração dos sentimentos puníveis à luz do presente código novo, consideram-se dirimidos os mesmos se:
a) No propósito de os sentir tenha havido convicção por parte do agente de suportar as circunstâncias que dos mesmos adviessem;
b) Se o sentimento ainda que não idóneo então sentido tiver sido indispensável à vida.
1. É evidente que, em sentido estrito, não podemos definir Deus. Ele é o Infinito, o Mistério da Ultimidade e, por isso, está sempre para lá de tudo o que possamos pensar ou dizer d'Ele.
O que dizemos fica sempre aquém. Mas as religiões sempre tentaram. A Bíblia também.
Duas vezes fundamentalmente a Bíblia tenta dar uma "definição" de Deus. A primeira pertence ao Antigo Testamento: "Eu sou Aquele que sou", diz Deus. A segunda é do Novo Testamento: "Deus é Amor". "Eu sou Aquele que sou" é o nome do próprio Deus, revelado a Moisés, e significa: Eu sou aquele que está convosco. "Deus é Amor" procede da experiência feita com Deus através da experiência com Jesus enquanto encarnação desse amor na sua universalidade, e é, nas palavras do grande teólogo Karl Barth, "a definição fundamental" de Deus: "Deus ama! (...) tal é a essência de Deus que aparece na revelação do seu nome. 'Deus é' quer dizer: 'Deus ama'".
O que, na história das religiões, é característico do judaico-cristianismo é a revelação de Deus como amor, que se compromete e age na História. Criou o mundo exclusivamente por amor. Um mundo contingente, que existe, mas podia pura e simplesmente não existir. E só um mundo contingente, histórico, com uma origem, pode estar a caminho da salvação e plenitude final, pois, como escreveu o teólogo Ruiz de la Pena,"o que não vem de parte nenhuma não vai para parte nenhuma, circula girando eternamente sobre si na contemplação especular do unívoco". Também só um Deus pessoal pode salvar a pessoa concreta da morte definitiva. Perante a morte, é sempre possível remeter para uma imortalidade impessoal. Mas a imortalidade impessoal, pela sua própria definição, é a imortalidade de ninguém. A consciência da morte é sempre pessoal e única: pela angústia, sou remetido para o eu único que se sente ameaçado pelo nada, e desse nada só o Deus pessoal, comprometido com os homens e as mulheres enquanto pessoas, pode libertar e salvar. Por isso, no domínio religioso, a distinção nuclear passa pela aceitação ou não do Deus pessoal. De facto, pode ser-se simultaneamente religioso e ateu: religioso, mediante o sentimento oceânico, por exemplo, ou a veneração panteísta da Natureza, e ateu, porque se não acredita em Deus enquanto pessoa.
A Bíblia tem como núcleo precisamente a famosa história do livro do Êxodo, capítulo 3, onde Deus revela o seu nome a Moisés: "Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egipto. Ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores; eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios". Moisés disse a Deus: Que direi, quando me perguntarem qual é o teu nome? Deus respondeu a Moisés: "Eu sou o eu sou aí' convosco e para vós". Este é o nome de Deus: O "eu-sou-junto-de-vós". Há aqui uma experiência nova de Deus. O Deus bíblico nada tem a ver com os deuses-senhores do poder e da dominação. Quem oprime e humilha os homens e as mulheres não pode reclamar-se dEle, pois Ele repudia a escravidão e todo o tipo de opressão. O seu acordo e compromisso é exclusivamente com a liberdade.
O Deus bíblico, que é o Deus da aliança com homens e mulheres livres, não se manifesta como Senhor, à maneira dos reis e deuses da antiguidade, nomeadamente da Babilónia e do Egipto, que eram os senhores dos seus territórios e dos seus subordinados. É certo que na Bíblia aparece a palavra Senhor referida a Deus. Mas isso foi sobretudo por influência da tradução grega, que traduziu o original hebraico Javé por Senhor (Kyrios). Assim, onde hoje lemos em português: "Eu sou o Senhor, teu Deus", deveria estar, em conformidade com o original: "Eu sou Javé, teu Deus", e Javé significa: "Eu estarei convosco, eu sou Aquele que está convosco", o que é completamente diferente do Senhor dominador, que se tem de aguentar e suportar.
Por isso, Jesus, em quem se manifestou a amabilidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor pelos homens, não reivindicou título senhorial. Veio como aquele que serve. É certo que os cristãos cedo o invocaram como Senhor, mas tinha desaparecido a distância dominadora do culto imperial. É assim que, por exemplo, aquele passo do Evangelho: "Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus", quer dizer que Jesus só é "Senhor" da sua Igreja, quando nela se realiza o seu projecto: vive-se o amor e a fraternidade, oferece-se o perdão e a paz, promove-se a liberdade e a dignidade, em dinamismo inteligente e racional, pois o Logos (Razão, Inteligência) é divino.
Por causa de um dogmatismo seco, de estruturas hierarquizadas de poder e da funcionarização do clero, a Igreja também é responsável pela passividade mental de muitos. Embora a interrogação seja dos lugares cimeiros da presença de Deus para o Homem, a capacidade de pôr perguntas ficou muitas vezes tolhida e anémica. Em presença de um Deus menor, a dignidade in-finita de ser ser humano atrofia-se. Há ainda quem faça preceder o nome de um D. (lê-se Dom, que é abreviatura do latim "Dominus", que significa Senhor). Mas uma Igreja de senhores atraiçoaria o Deus bíblico.
É na tradição do Êxodo, saída da escravidão para a liberdade e a dignidade que Jesus se compreende. S. Tiago escreverá, na linha dos profetas, que desprezaram os sacrifícios cultuais e reclamaram a justiça e a liberdade para os pobres e humilhados: "A religião pura e sem mancha consiste em visitar os órfãos e as viúvas."
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 13 de novembro de 2021
“Admirers of Eric Rohmer’s films could hardly fail to notice that alongside the elegant simplicity of his plots and the subtle psychology of his characters there is a passion for exploring different locations and a deep interest in the interactions between places and people.”, Fiona Handyside (Anderst 2014, 177)
No texto Walking in the City: Paris in the Films of Eric Rohmer, Fiona Handyside escreve que o interesse de Eric Rohmer pelo lugar, pelo desenho urbano e pela arquitetura fazem dos seus filmes uma quase fiel documentação do meio físico de diversas regiões francesas. Mas Paris é o lugar que Rohmer mais filma. Nos filmes de Rohmer existe uma vontade em mostrar com clareza e transparência o lugar filmado. Para Rohmer, uma cidade faz-se através da ligação de todos os espaços - mesmo os mais improváveis - e a rua é o meio que por excelência estabelece e permite essa ligação. Handyside escreve que Rohmer dedica uma enorme atenção à cidade de modo a ser corretamente descrita e identificada. Essa coerência geográfica afirma um realismo cinemático, afirma o desejo de mostrar Paris tal como é, numa escala íntima e humana. A atenção ao específico e às diferentes texturas da vida descrevem Paris como sendo uma aglomeração de diversos lugares.
Nos filmes de Rohmer, Paris aparece como uma cidade que pode ser facilmente atravessada a pé, de carro, de metro, de comboio e de autocarro. A sua escala permite o andar livre e sem destino, e permite a possibilidade da surpresa e de encontros não planeados. Alguns dos seus filmes que descrevem Paris, fazem-no num processo semelhante à cidade pensada por Haussmann - com boulevards cheios de pessoas e de automóveis a circular. Rohmer ao mapear a cidade enfatiza o facto da vivência da cidade ser manipulável e manipulativa. De facto, os seus filmes cuidadosamente testemunham a cidade tal como é, mas também têm a capacidade de a modificar mais do que qualquer outro meio é capaz de o fazer. A cidade é simultaneamente repetição, ordem, estrutura e ritmo, mas também constante mudança, acaso e renovação. Handyside explica que Paris aparece nos filmes de Rohmer como uma cidade de conexões constantes e infinitas porque as personagens deliberadamente só se movem num limitado e reduzido espaço urbano. E tal como as personagens, todos os indivíduos que tentam determinar e controlar o seu caminho estão sempre limitados pelo desenho do arquiteto ou do urbanista.
Rohmer interessa-se não pelo monumento turístico estático mas sim pela cidade sempre em mudança. O gosto pelo inconstante talvez se justifique, segundo Handyside sugere, pela ideia de que a certeza existencial está ligada ao lugar garantido. Uma cidade é um lugar de conflito entre o desejo individual e a ordem social; entre a ilusão da liberdade e do destino e a realidade controlada pelo desenho urbano. E talvez, nos filmes de Rohmer o andar seja o ato urbano que dá ao indivíduo mais liberdade e expressão: “Rohmer anticipates a networked world in which isolated individuals seek connections in space and in which the city has to be topographically legible in order to deal with increasing quantities of information.” (Handyside 2014, 187)
“A máquina de fazer espanhóis” de Valter Hugo Mãe (Porto Editora, reedição, 2021) é um motivo muito sério de reflexão sobre o momento presente.
SOCIEDADE ANTIGA E COMPLEXA Com originalidade, apercebemo-nos de como uma sociedade antiga e complexa vive inúmeras contradições. António Jorge Silva de 84 anos vê-se privado da companhia de sua mulher Laura, com quem viveu 48 anos. A perda é sentida duramente e dá lugar a uma reflexão sobre o envelhecimento, a surpresa e a angústia. Os temas são de uma atualidade premente – tudo parece estar em causa quando chegamos ao fim de um caminho, ou quando esse termo se anuncia, mas sobretudo quando não sabemos quanto restará. Silva segue o caminho previsível. Vai para um lar que tem a designação estranha e absurda de “feliz idade”. E a que assistimos? A tudo o contrário do que a designação sugere. É um modo de iludir o tempo e uma maneira de criar uma armadilha humana. O romance de Valter Hugo Mãe foi publicado em 2010, quatro anos depois de “O remorso de Baltazar Serapião”, e dez anos antes da pandemia Covid-19. E se falo deste último sobressalto é porque, com o seu quê de antevisão, estamos confrontados nesta complexa narrativa com o que se tornou um universo concentracionário imposto por uma catástrofe que atingiu sobretudo os mais velhos e os lares onde foram confinados. E a pandemia condenou duplamente os habitantes destes lares que a “feliz idade” representa – confinou-os, proibiu-lhes o contacto com o exterior, e deixou-os mais vulneráveis, já que se tornaram bodes expiatórios de uma estranha peste, com que ninguém sabia lidar. Se isto não existia quando Valter Hugo Mãe escreveu, a verdade é que, lendo bem todos os sinais presentes no seu relato, tudo parece anunciado nas linhas e entrelinhas. E o clima sentido no romance, em vez de se ter atenuado, só se agravou – com os mais velhos a ser vistos como pesos-mortos e dispensáveis. Se os progressos da medicina permitem antever que em breve poderemos ter uma esperança média de vida próxima dos cem anos nos países ditos ricos, fica-nos uma certeza: a de que estamos cada vez mais longe da qualidade de vida, nesses armazéns de unidades dispensáveis com o prazo ultrapassado. E o ambiente da pandemia agravou tudo, e deixou a dignidade cada vez mais esquecida.
Vejamos o caso de Silva. Ele não se esforça por se adaptar à “feliz idade” – e a amargura pela ausência de Laura é cada vez maior. Sente intensamente o declínio das forças e do entusiasmo. E não sente sequer o gosto por lembrar os bons momentos que viveu, nem por criar novas oportunidades boas. A ausência é muito dura e o tempo produz os seus efeitos. Os corvos negros atacam-no à noite, e vão regressando sistematicamente, simbolizando a passarada negra o tempo que se esgota. Mas há o contacto com os companheiros do confinamento. A palavra confinamento foi produto da última peste, mas o romancista descreve-a, sem falar dela, por antecipação, nas condições concretas de uma existência absurda.
DE QUEM FALAMOS? Quem são, afinal, os companheiros? O Pereira, os médicos, os enfermeiros, chamem-se eles Américo ou Doutor Bernardo. Deparamos com uma permanente coexistência da realidade e do sonho, de figuras concretas, de personagens de ficção e de quem tem uma existência ao mesmo tempo real e fictícia – Anísio Franco, Inspetor Jaime Ramos, Silva da Europa e um Esteves a transbordar de metafísica. São estes os participantes da história de uma sociedade doente, mas que todos teimam em não entender. A “feliz idade” é um “admirável mundo novo” ainda mais incompreensível do que todas as distopias e do que todas as utopias. O que existe e o que não deve existir misturam-se amargamente. Silva insiste na injustiça de se manter vivo. “Com a morte, também o amor devia acabar. Ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutria pela pessoa que deixou de existir”. Na relação com os outros, o outro é o que nos completa e nos define. Mas a vida e o mundo reservam-nos surpresas.
O ESTEVES SEM METAFÍSICA Eis o ponto em que encontramos, fora dos tempos e das circunstâncias verosímeis, Esteves, o “homem sem metafísica”, que o inesperado Fernando Pessoa, ou melhor, Álvaro de Campos, introduz no desenrolar dos encontros deste “confinamento”. É uma estranha aparição, sobretudo porque este Esteves transborda de metafísica., por ser uma projeção de Álvaro de Campos. “O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?) / Ah! conheço-o: é o Esteves sem metafísica. / (O Dono da Tabacaria chegou à porta) / Como por instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. / Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves! , e o universo / reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu…” Num pequeno clarão, a literatura parece preencher o tremendo vazio. Por momentos, a melancolia dá lugar a conversas risonhas, irónicas, como se houvesse um regresso às traquinices de crianças e jovens… Falam da dona Leopoldina e da dona Marta, fazem partidas, olham com sarcasmos tudo que os cerca. Num ápice, sem esquecer a angústia, surgem fragmentos da existência e de um certo fulgor… Mas sucedem-se lembranças da barbearia, num tempo em que se falava baixo e em que havia a PIDE e a necessidade de a iludir. Mas a polícia desse tempo usava artimanhas que levavam a que alguém, depois de salvar um jovem contestatário, fosse obrigado por razões do diabo a denunciá-lo e a condená-lo. “Salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas depois não quis mais ir-se embora e que nos fez sentir visita sua até que nos tirou das mãos tudo quanto pôde e que nos apreciou amaciados pela exaustão”. Ah! as lembranças misturam-se e há um sabor amargo. A melancolia do ambiente junta-se à decadência física – apesar da possibilidade de encontrar aspetos novos que permitam reencontrar uma razão de ser… Tudo isto por entre as visitas periódicas da passarada negra. E assistimos à morte do Esteves, com um ataque de felicidade, enquanto a emoção assenta na procura da razão. Sem esquecer a angústia, há motivos sérios para morder a vida e tentar iludir a perda…É precisar “deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia”… E no ambiente de perda e de ausência sucedem-se as características de quem somos: “deus é uma cobiça que temos dentro de nós”; “somos um povo de caminhos salgados”, “lugar de gente desconfiada”, com “a promoção da beleza de se ser pobrezinho”. Que importa a “feliz idade”? Praticamente nada. “Não sou nada. / Nunca serei nada. Não posso querer ser nada / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Ao longe ouvimos Almada a dizer provocatoriamente – “Se o Dantas é português eu quero ser espanhol…” Bernardo Soares, mal compreendido, liga o seu patriotismo apenas à língua portuguesa e a nada mais e Eduardo Lourenço enaltece a “maravilhosa imperfeição”. O Esteves sem metafísica trazia agarrada à sua pele esta voz crítica. E então aparece-nos um companheiro essencial, Enrique de Badajoz de Portugal – o espanhol que quer ser português. E a ausência de metafísica do Esteves da “Tabacaria” transforma-se em metafísica plena, transbordante. “Depois de comentar como poderia ser melhor a cidadania espanhola – na cabeça daquele homem (o espanhol) a tradição deste lado da fronteira cumpria mais adequadamente os seus anseios”. E entre os povos ibéricos surge uma relação de espelho. Enrique de Badajoz de Portugal quer ser português, considera-se mesmo português, em contraponto à máquina de fazer espanhóis do lado de cá. Afinal, a insatisfação é partilhada – e reforçam-se mutuamente os sentimentos aparentemente contraditórios. Ser o outro torna-se um desejo intenso.
E ouvimos o Silva dizer finalmente (e escrevo maiúsculas porque estou a citar): “naquela altura eu queria gritar. Precisava de dizer que me arrependia, que não queria acabar sem metafísica, que me enterrassem com a metafísica e português. Arrependia-me do fascismo e de ter sido cordeiro tão perto da consciência, sabendo tão bem o que era o melhor valor, mas sempre ignorando, preferindo a segurança das hipocrisias instaladas. Eu precisava gritar dizendo que queria morrer português, com a menoridade que isso tivesse de implicar”. A angústia tem a ver com o apelo contraditório. O pedido é claríssimo e chamava-se dignidade – “não me tirem a consciência do amor e da sua perda”… E Valter Hugo Mãe coloca-nos deste modo perante quem somos e perante todos os nossos mistérios, profeticamente.
Diz Eduardo Lourenço: "o que eu sou como ser mortal (o que todos somos) está contido na melancolia absoluta do allegretto da Sétima Sinfonia". Diz-se que Pio XII, na agonia da sua morte, pediu para ouvir como companheiro de viagem esse segundo andamento da sinfonia de Beethoven. Escuto-o agora, em cálida tarde de sábado, enquanto me passeio por leituras... E surge-me a interrogação de Paul Gauguin, pintada em ilha perdida do Pacífico, quase nos antípodas de nós: "quem somos, donde vimos, para onde vamos?"
No percurso da leitura, deparo com dois títulos no El País: "Era como estar en una pelicula" e, páginas adiante,"Espacios libres de niños/ los hoteles y restaurantes solo para adultos experimentan um polémico auge/ la crisis acelera esta opción minoritária/ que el sector abraza para captar clientes". O primeiro título refere-se ao tiroteio mortífero num cinema de Denver; o segundo nem precisa de esclarecimento. Ambos, afinal, traduzem fatores culturais da crise em que mergulhámos. Assim, apesar de doutorando em neurociências, o jovem Holmes "assumiu-se", na estreia de mais um filme de Batman, como mais um herói da violência indiscriminada que, todos os dias, apetitosamente nos é servida pela "comunicação social"... Porque a exploração da fraqueza, do mimetismo, da debilidade mental dá lucro aos que vendem!
Também as crianças, como as coisas bonitas do passado e tantas do presente, todas essas que queremos livres, construtivas e fraternas, já são, ao que parece, obstáculo ao lucro... Talvez não fosse mau lembrar que esquecer os outros, a pessoa humana -- que é real -- por essa ideia matemática e abstrata que é o dinheiro, é, muito simplesmente, uma estupidez.
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TERRA DOS HOMENS… Nos anos 30 do século passado, meditando sobre o avião que pilotava, o desenvolvimento das máquinas e o advento de uma nova era técnica, Antoine de Saint-Éxupéry escrevia (cf. «Terre des Homme», III – L’Avion): "Só agora começamos a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir. Tudo à nossa volta mudou tão depressa: relações humanas, condições de trabalho, costumes. A nossa própria psicologia foi abalada nas suas mais íntimas fundações. As noções de separação, de ausência, de distância, de regresso, embora mantenham os mesmos nomes, já não contêm as mesmas realidades. Para apanhar o mundo de hoje, usamos uma linguagem estabelecida para o mundo de ontem. E a vida do passado parece corresponder melhor à nossa natureza pela simples razão de que corresponde melhor à nossa linguagem"...
Em 1990, Jacques Le Rider publicava nas PUF o seu "Modernité viennoise et crise d´identité (1890-1938)", onde defendia que a modernidade vienense se tornou " numa das nossas referências estéticas e intelectuais mais importantes", por ter pensado a modernidade "como premonição do fim de um mundo". Situando-o no tempo, vemos como o movimento modernista vienense baliza uma crise que despoletou a queda das grandes monarquias da Europa central, os processos de industrialização e colonização aceleradas, as revoluções socialistas e anarco-sindicalistas, e os conflitos e vexames inerentes a tudo isso e que conduziram à hecatombe da 2ª Grande Guerra.
Para Jacques Le Rider, Schoenberg, Schiele, Musil, Freud, Wittgenstein, todos "os criadores vienenses refletiram de modo crítico a sua condição de homem moderno,feita simultaneamente de euforia e mal-estar..." Mas essa criatividade deveu-se "à imigração e à diversidade étnica, não à homogeneidade nacional..." Assim, Le Rider atribui à incapacidade política de pensar essa coexistência o fim do "modelo muito elaborado da pluralidade nacional, linguística, étnica e cultural no centro da Europa". Quero hoje começar a refletir sobre a crise presente e sobre a nossa interrogação da Europa. Não numa perspetiva economicista, nem à luz dominante da prioridade dada à política financeira. Mas antes partindo da consideração do povo, dos povos europeus de hoje, e dos desafios a que terá de responder para começar "a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir".
Aliás, a casa dos homens está sempre em construção, pois das pessoas que nascem, vivem e morrem, ela é feita. Da Jerusalém Celeste à Torre de Babel, do monaquismo às comunidades hippies, por constituições de estados e convenções internacionais, vamos tentando... Temos de olhar para a Europa de hoje, tal como se situa num mundo em globalização, em que as tecnologias de comunicação e transporte tornam o longínquo imediato e próximo e vão confrontando o sentimento de si com entidades várias e a tentação mimética de misturar tudo. A miscigenação étnica e cultural é hoje um fenómeno crescentemente generalizado e frequente. Mas também gera receios, desconfianças, racismo, fanatismos. Por isso mesmo, se torna tão importante que cada um se compreenda melhor a si, cada pessoa, cada povo, cada cultura. A consciência informada e limpa da própria identidade é condição prévia do convívio e do diálogo, e estes são participação e partilha, não são eliminação.
Fala-se do inglês como língua universal e há quem pretenda que as línguas nacionais ou os dialetos regionais não têm razão de existir num mundo global. Mas o inglês que funciona como língua franca é também um inglês que se destila, filtra e empobrece e, por vezes, já pouco tem de inglês clássico, ou pouco a ver com a cultura anglo-saxónica (que não é só a dos negócios) Quantos dos nossos "CEO", que fazem "statements" com três palavras de inglês para duas de português, conseguirão ler Shakespeare no original? Deverão por isso os anglófonos castiços abandonar o vate ou todos nós esquecê-lo? Ou não deveremos nós, portugueses, conhecer melhor, como diria Eça, "o nosso Camões"?
Na Europa de hoje vivem - e são europeus, tal como os afro-americanos são americanos e não já africanos, e isto não só por imposição legal ou reconhecimento de um direito, mas culturalmente - gentes de variadas origens étnicas, geográficas e culturais. Basta ver na televisão jogos entre seleções nacionais europeias de futebol ou atletismo para disso nos apercebermos, ou, mais simplesmente, sair à rua. Cada um deles deverá ter uma dupla função: a de aprender bem a língua do país que os acolheu (ou já a seus pais e avós) e, com a língua, ir apreendendo uma cultura enquanto visão e modo de estar no mundo e na vida; mas também, porque o modo vive e evolui no tempo, enriquecer essa cultura e essa língua com a contribuição do seu pensamento, sentimento e discurso. Afinal, como qualquer de nós. E não têm a língua e cultura lusíadas sido enriquecidas pelas literaturas brasileira e afro-lusófonas?
Em próxima oportunidade, poderemos falar na importância das chamadas humanidades na construção da casa que todos teremos de habitar. Teremos de perceber como a preservação da memória histórica e a transmissão da língua viva são fatores de entendimento, de diálogo e de convívio.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 27.07.2012 neste blogue.
Vale a pena reinvocar aqui e agora o centenário da “Zilda” de Alfredo Cortez, pois a peça, como já temos referido, constitui a primeira grande afirmação teatral do autor, abrindo assim uma carreira de criador/produtor teatral de relevo na projeção da modernidade, que se mantém como tal, da criação dramática, repita-se, do autor mas também a sua moda, da renovação/modernização do teatro em Portugal.
Sendo certo, note-se, que a “Zilda”, então a primeira peça de destaque criativo do autor, o que lhe garante uma indiscutível relevância, não envolve em si mesma sinais da modernização que, a partir daí, iria marcar a época e a obra de Cortez: e como bem sabemos aí se marcaram sinais evidentes de renovação/modernização do teatro em Portugal.
Porém, a esse propósito, há que referir que a dramaturgia criada por Cortez, sendo assinalável nos sinais de modernização, em muito transcende o sentido de renovação dessa obra, que como bem sabemos e tantas vezes temos referido, marca mas não esgota a inovação/renovação do teatro em Portugal.
E de qualquer maneira, a “Zilda” constitui simultaneamente a primeira grande afirmação dramatúrgica do autor e como tal, um dos valores referencias do teatro em Portugal, e isto não obstante a proximidade de um certo estilo simbolista que se por um lado não atinge a grande afirmação dramatúrgica do autor e como tal um dos valores referenciais do teatro em Portugal. Isto, não obstante a proximidade a um certo estilo simbolista, que se por um lado não atinge a qualidade indiscutível de obra global de Cortez, por outro lado afirma e testemunha a qualidade e modernidade da sua produção dramatúrgica.
E isso pois, sobretudo porque, tal como escrevemos na “História do Teatro Português”, e em “Alfredo Cortez _Teatro Completo” o teatro de Cortez visa o ser humano a psicologia e a ética.
E transcrevo uma passagem.
Pois digo que o teatro de Alfredo Cortez visa o homem, a psicologia, a ética do ser consciente. Visa a sociedade, os grupos em presença, os entrechoque, as interdependências e oposições, as paixões. Visa sobretudo a sociedade dinamizada, movimentada pelos fluxos e refluxos, pelas forças e contraforças que o próprio homem faz desencadear. O teatro de Alfredo Cortez é um teatro social. E, nessa medida, é um teatro ético, pois, expressa ou tacitamente, direta ou indiretamente, o autor sempre lhe imprime a solução da sua consciência e da sua coerência...
E acrescentamos agora uma citação de Luís Francisco Rebello na “História do Teatro Português”:
“Lúcida e amarga, rigorosa e linear na sua quase ascética expressão, a obra de Cortês sobressai de entre a produção representada nesses palcos no período demarcado pelas duas guerras. Zilda e, dois anos depois, O Lodo, (que todas as empresas recusaram e foi posta em cena pelo próprio autor), a primeira situada no meio da alta burguesia, a segunda num prostíbulo, são como que as duas faces, igualmente sórdidas, da mesma medalha, completando-se uma à outra na denúncia implacável do escândalo de uma sociedade que fomenta e permite os próprios vícios que farisaicamente condena”.
E segue uma apreciação das outras peças de Alfredo Cortês: “À la Fè”, “Lourdes”, “O Ouro”, “Domus”, “Tá-Mar”, “Saias, “Baton”… E acrescento “Gladiadores” e as comédias “Modema” e “La-Lás”.
E iremos ainda acrescentar uma longa apreciação de Luciana Stegagno Picchio citada no livro “100 Anos de Teatro Português” de Luís Francisco Rebello:
“No drama simbolista de Cortez confluem o expressionismo alemão, o surrealismo francês e o experimentalismo de Pirandello (as personagens – 10 homens e outras tantas mulheres - são chamados a atuar, diferenciando-se segundo as necessidades do drama), bem como o grotesco à Raul Brandão. Mas o que há sobretudo é a ironia do Cortez intelectual, que sabe não poder ser compreendido por um público até aí fiel e que não quer fugir à experiência do insucesso”.
E muito mais haverá sempre a dizer acerca do teatro de Alfredo Cortez!
Uma opinião livre e esclarecida é essencial numa sociedade democrática.
Quanto maior o grau e o valor da liberdade, mais democrática é a sociedade.
Ser tido como o menos mau de todos os sistemas, começa pelo direito de fazer perguntas, aceitar a interpelação, o contraditório, a incerteza, a dúvida adequada e responsável.
Os portugueses, em geral, lidam mal com a discordância, agravada se crítica, chocante, contundente, frontal.
Valorizam bastante o pessoal e a segurança, privilegiando esta em desfavor da liberdade. Consequência de mais anos de absolutismo, inquisição, autoritarismo, ditadura, tiranetes, ruralismo, ultramontanismo religioso, do manda quem pode e obedece quem deve, no abrigo obediente e acomodado que garante a segurança e uma sociedade que pouco pensa e renova.
A maior mais-valia do 25 de abril, para muitos, foi a liberdade, no seu respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades individuais, onde pontuam a liberdade de expressão e o direito à informação.
Liberdade que é inerentemente antiautoritária e aberta ao não sectarismo, à mudança, à crítica, ao debate, à publicação livre e à troca de informações.
Onde há níveis mais elevados de ciência, investigação, educação e literacia, maior a propensão para a liberdade e graus mais elevados de democracia.
Os países mais livres e apologistas da liberdade, sempre foram os mais capazes em empreendedorismo e inovação, a nível democrático, de conhecimento e saber, e em termos científicos.