Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. Julgo que nunca a Humanidade enfrentou tantas e tão graves ameaças como hoje. Só exemplos: as alterações climáticas; guerras dispersas; a guerra nuclear; as NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências) na sua ambiguidade, pois há novas possibilidades, mas também perigos: frente às possibilidades do trans-humanismo e do pós-humanismo, é preciso reflectir sobre o que verdadeiramente queremos; as batalhas digitais; o controlo digital pelos Estados; bebés transgénicos; experiências com híbridos; migrações incontroláveis; as lutas tecno-económico-políticas pela supremacia global; as drogas; a injustiça estrutural global; o atropelo dos direitos humanos...
A questão é que estes problemas tão complexos são globais e a politica é nacional, quando muito regional, com Governos que governam para o curto prazo, para ganhar eleições, mas estes problemas são globais e exigem soluções a longo prazo. Não precisamos, portanto, de erguer uma Governança Global? Não digo, evidentemente, Governo mundial, mas Governança Global, já que os problemas enunciados e outros só com decisões ético-jurídico-políticas globais poderão encontrar solução.
Neste contexto, é preciso contar com o apoio da Igreja. A Igreja Católica é a única instituição verdadeiramente global: presente em todo o mundo e em todos os estratos sociais. É, pois, fundamental poder contar com o seu contributo decisivo enquanto voz politico-moral global. Evidentemente, por si mesma e também em ligação com as outras Igrejas cristãs e em diálogo com as grandes religiões mundiais. A pergunta é: que revolução é preciso operar na Igreja para ela poder desempenhar esta missão imprescindível?
É neste horizonte que se situa o meu mais recente livro, 479 páginas, com o título O Mundo e a Igreja. Que futuro?. Acaba de ser distribuído pelas livrarias.
2. Tem quatro partes.
2.1. Depois da Introdução a elencar as crises actuais — crise sanitária, crise ambiental, crise económica e social, crse migratória, crise política, crise das relações humanas, crise educativa, crise religiosa —, a primeira parte intitula-se: Tempo para pensar. Invadidos pelo achismo, a sida espiritual, a ganância do ter e do poder pelo poder, precisamos de parar para pensar. Isso: pensar, de pensare, pesar razões, ir ao mais fundo, para encontrar a sabedoria de viver e ser feliz, reflectir sobre as feridas e ameaças à Humanidade, sobre as finalidades humanas, as razões da esperança...
2.2. Segunda parte: O sofrimento, a morte e Deus. Parte-se de um conceito holístico de saúde e reflecte-se sobre os dados científicos que mostram como a prática religiosa influencia positivamente a saúde. Perante a morte, ergue-se a interrogação essencial, que está na base das artes, das filosofias, das religiões: o que é o Homem? Frente à morte, impõe-se, clara, a distinção entre bem e mal, entre o que verdadeiraemnte vale e tudo o resto. Ah, e a pergunta de Tolstói em A morte de Ivan Ilitch: “Onde estarei quando já não existir?” Qual é o Sentido último da existência? Há razões para acreditar que na morte não encontraremos o nada mas a plenitude da vida em Deus?
2.3. Terceira parte: Francisco, um cristão reformador. Como escreveu P. Seewald, seu biógrafo, Joseph Ratzinger, “o primeiro Papa do terceiro milénio” com o nome de Bento XVI, era, “do ponto de vista formal, o Papa mais poderoso de todos os tempos. Nunca a Igreja Católica estivera tão espalhada pelo mundo.” Mas os problemas eram gigantescos e os lobos não largavam a vinha do Senhor. No dia 11 de Feveiro de 2013, Bento XVI declarou a renúncia ao pontificado. O sucessor, Francisco, foi eleito no dia 13 de Março seguinte, e rapidamente conquistou o mundo. ‘Franciscano’ e jesuíta, é um líder político-moral global, hoje talvez o mais amado e influente. Simples, ele é um cristão. O que o move é o Evangelho de Jesus, a favor da dignidade de todos, da fraternidade e da paz, no quadro de uma “ecologia integral”. Enfrenta sem hesitar os escândalos na Igreja, da tragédia da pedofilia do clero à imensa corrupção no Vaticano. Quer uma Igreja à maneira de Jesus, que a todos acolhe, aberta ao diálogo ecuménico e inter-religioso. O protocolo manda dirigir-se-lhe como “Sua Santidade”, mas, na verdade, ele é “Sua Fraternidade”.
2. 4. A quarta parte quer enfrentar precisamente a urgência do caminho de uma revolução na Igreja: Uma Igreja outra. Urge a abertura a “uma Igreja em saída”, desconfinada de dogmas estéreis, clericalismos, tradições fossilizadas, ritualismos mortos, que não transmitem vida. Para isso, só há um caminho: que cada cristão volte a fazer uma experiência pessoal de encontro com a pessoa de Jesus Cristo e o seu Evangelho, notícia boa e felicitante, e não Disangelho, notícia má e de desgraça, como denunciou Nietzsche. Claro que alguma organização é necessária, mas não a que está em vigor, que leva à criação de duas classes na Igreja. Qual é a revolução que falta? A partir do facto de que Jesus não ordenou sacerdotes, que consequências tirar?
Estou grato ao Arquitecto E. Souto Moura pela capa, que apresenta de modo tão apelativo o livro à visibilidade pública. Os primeiros leitores foram Maria de Belém Roseira e Paulo Rangel, e devo-lhes o privilégio de uma leitura atenta e generosa, seguida de um Prefácio e um Posfácio, respectivamente, iluminantes, tão enriquecedores, com ideias fortes, originais e até inesperadas.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 6 de novembro de 2021
Os filmes de Eric Rohmer e a imanência da graça de Deus no mundo.
"My films are pure works of fiction, I don’t claim to be a sociologist, and I’m not making investigations or collecting statistics. I simply take particular cases that I have invented myself, they aren’t meant to be scientific, and they are works of imagination.", Eric Rohmer, Eric Rohmer: Interviews, Fiona Handyside
Nos filmes de Rohmer o mundo é detido como sendo intrinsecamente belo porque faz parte da criação divina. Fiona Handyside no livro Eric Rohmer: Interviews (University Press Mississippi, 2015) considera que Eric Rohmer é um realizador teológico - o poder da concepção inteligente, para Rohmer, é a manifestação da claridade do espírito, que se abre no meio do caos físico da existência humana.
O cinema, para Rohmer é o instrumento que permite mostrar o que existe, o que está na vida: não o que está nos artigos de revistas ou na televisão. É o meio para a evidenciar a realidade crua, não pré-digerida pela imprensa ou pelas pesquisas de opinião. (Eric Rohmer em entrevista a Rui Nogueira, Eric Rohmer: Choice and Chance, 1971)
O cinema é a reprodução do mundo exterior, e tem a capacidade de abordar temas eternos que estão dentro do pensamento de cada ser humano. Os seus filmes são um conflito entre o estável e o instável, a imobilidade e a mudança. Para Rohmer, o cinema é o instrumento que permite descobrir e testemunhar a beleza do mundo - mas sobretudo porque é o único meio de expressão que nos leva de volta à natureza e às relações entre o indíviduo e o ambiente físico que o rodeia (as estações do ano são fundamentais para o desenvolvimento de uma narrativa). O lugar é assim determinante para introduzir variações ao tema que domina por exemplo uma série de filmes.
A filosofia do seu cinema está coberta por uma visão disposta a aceitar as manifestações que pertencem à substância ou à essência de algo, à interioridade das coisas. O papel do realizador é o de aceitar a beleza ordenada do mundo, Rohmer não deseja transformar - deseja mostrar disponibilidade e abertura para a incerteza se manifestar. A incerteza para Rohmer pode ter um significado divino e em forma de graça pode abrir fendas na vida das personagens e drasticamente pôr em causa aquilo que era tido como certo.
“What interest me are the thoughts that fill his mind at that particular moment. And I wanted to use the cinema to show them, even though as the art of objective and exterior images, it might seem the least appropriate.", Eric Rohmer, Eric Rohmer: Interviews, Fiona Handyside
No texto Imagination and Grace: Rohmer’s Contes des Quatres Saisons de Keith Tester, lê-se que os filmes de Rohmer podem ser ententidos como explorações da imanência da graça de Deus no mundo - e o cinema é o meio mais eficaz que, com o seu realismo, consegue, sem distorcer, explorar conceitos relacionados com a essência do ser humano e com a essência de Deus.
O cinema, segundo Rohmer é o meio por excelência que tem a capacidade de preservar a constante mudança das paisagens. É a constante relação entre o pensamento e o mundo exterior, entre o espaço onde se move corpo e as escolhas e os ideais que cada um transporta dentro de si. É a incessante ligação entre a gravidade e a graça.
Para Keith Tester, gravidade permite conter todas as coisas do mundo no lugar, concedendo a cada uma das coisas substância e solidez. A imaginação é a gravidade intelectual que permite olhar para todas essas coisas do mundo e estabelecer entre elas relações de modo a atribuir-lhes um significado preciso. Por isso e consequentemente tudo neste mundo é extraído da imaginação e gira em torno do indivíduo que é o criador dessa imaginação. Mas se o mundo é entendido como sendo produto de uma criação divina, então a gravidade afasta-nos de Deus - Keith Tester escreve que segundo Simone Weil a prova do amor de Deus é essa da gravidade e da escolha de poder ser livres. Ainda assim Deus chama através do dom gratuito da graça. A graça fissura, parte e fende a ordem imaginária do mundo fornecendo a possibilidade de mais claridade. Os filmes de Rohmer, para Tester exploram então este conflito entre a imaginação e a graça. E assim a graça ao manifestar-se dentro do ser em forma de incerteza, de sonho ou de desejo existe para demolir sistemas e fazer colapsar ilusões.
“For me what is interesting in mankind is what is permanent and eternal and doesn’t change, rather than what changes, and that’s what I’m interested in showing.”, Eric Rohmer, Eric Rohmer: Interviews, Fiona Handyside
Recordamos o célebre texto publicado nos primórdios da Revista Ocidental (1875) por Oliveira Martins intitulado “Os Povos Peninsulares e a Civilização Moderna”.
A SINGULARIDADE DOS POVOS IBÉRICOS “O heroísmo ativo gera o amor da liberdade; a liberdade anima os heróis; mas o herói não é o frio estoico, Bruto o desapiedado; não é uma abstração como na Itália, é um indivíduo sensível que chora, sente e geme, quando as dores do suplício o torturam; que exulta, folga e ri, quando chegam as horas do triunfo ou da festa; não é de pedra, é de carne; não veste a toga, calça os borzeguins do guerrilheiro, deita a clavina ao ombro, e desde Riego ou Saldanha, sabe ao mesmo tempo amar e morrer”… A singularidade dos povos ibéricos corresponde, afinal, a esta capacidade de combater com determinação em prol da defesa da terra e dos povos. E assim o riso é livre e é caustico, não podendo esquecer-se três dimensões intimamente associadas – lírica, trágica e picaresca. Miguel de Unamuno foi dos que melhor entendeu esta característica portuguesa, que ia ao encontro das raízes comuns ibéricas. Cervantes elege Quixote como símbolo crítico, capaz de destruir muitas ilusões; Gil Vicente põe a nu todas as fraquezas, obrigando à autocrítica. Na Arte, Velasquez e Gil Vicente encontram-se, representando não um mundo ideal, mas as imperfeições naturais de uma natureza humana complexa e diversa. Como Ulisses, não temos réstia de invencibilidade, tendo de assumir todos os riscos, como no exemplo de D. João de Castro ao enviar os filhos para a “carniçaria” de Diu ou Gonçalo de Córdova, em Granada, essencial na consolidação do poder das instituições de Espanha. E assim o génio peninsular simbolizar-se-ia em Camões, numa obra sublime em que a dimensão épica inspirada em Virgílio articula, com respeito da palavra, a ação, o conhecimento e a sensibilidade, sem descurar especificidade de qualquer um desses termos.
HEROÍSMO E NECESSIDADE DE AÇÃO É a necessidade da ação que marca a identidade peninsular e consequentemente a causa original das Descobertas, que “reside no desenvolvimento dado à física e à geografia de um lado, do outro nas tradições que as viagens dos cruzados tinham espalhado por toda a Europa. Assim, se explicaria o “papel colossal” de duplicar o mundo. “A política, o direito, a economia tem como base objetiva a História: é ela quem revela as leis da transformação das ideias e das instituições, as idiossincrasias nacionais, e quem solidifica pela análise, as conceções racionais humanas, que não provêm dela, antes se encontram imanentes no homem como substância própria. A razão conclui, a História analisa”. E é o tema político atual da relevância europeia que deve aqui ser equacionado, tornando-se crucial quando falamos da evolução de uma realidade global geoestratégica, na balança do mundo. Sem qualquer tentação anacrónica ou de julgamento moral de atitudes pretéritas, do que se trata é de conceber um projeto europeu plural, humanista, pacífico num sistema de polaridades difusas, considerando as bases necessárias de uma cultura de equilíbrio entre potências continentais, no sentido de contrariar novas hegemonias, com salvaguarda de sistemas de complementaridades e compensações – nos quais o primado da cultura, a investigação científica, a cooperação técnica e energética, a partilha e o domínio da informação possam funcionar como fatores positivos de desenvolvimento humano. Nada pode ser considerado como adquirido, e essa é uma qualidade que o historiador aponta, ou seja, a capacidade de compreender as fragilidades e as limitações. Não se trata de repetir a experiência histórica passada, nem de tentar explicações deterministas, mas de olhar o futuro, considerando as condicionantes críticas e as lições do que já teve consequências positivas. Por que razão a experiência europeia após a adesão peninsular teve resultados positivos? Uma vez que houve uma cuidadosa preparação e uma ponderação dos meios e dos fins. E, como disse Lorenzo Natali, o alargamento da Europa ao sul ibérico significou a abertura de horizontes para o mundo global – com tudo o que isso significaria de um mais intenso diálogo intercultural e da possibilidade (ainda não plenamente aproveitada) de ver a Europa como uma placa giratória e como um polo de equilíbrio, em lugar de um centro fechado sobre si e sobre os seus egoísmos.
A RECUSA DA FACILIDADE A crise pandémica ensinou-nos que a autossuficiência, o imediatismo e a desatenção à sustentabilidade apenas abrem caminho à fragmentação, à desigualdade e ao desequilíbrio de influências. Atente-se nos resultados positivos da vacinação e do seu planeamento. Foi pela recusa da facilidade que pôde funcionar. Eis por que razão esta reflexão sobre os Povos Peninsulares merece atenção não à luz dos problemas do passado, mas entendendo o presente. A História não se repete, mas ensina-nos a considerar os tempos, as circunstâncias, os contextos, a sua diversidade e complexidade. Se a nossa base é a Península Ibérica, compreendamos as suas vantagens comparativas, que só obterão resultados positivos se não forem consideradas em abstrato, mas se forem previstas e avaliadas, sujeitas à correção da experiência. Qual o nosso valor próprio? Lembremo-nos de como o alargamento europeu à Península apresentou inequívocas vantagens – quer pelas capacidades próprias, quer pelas novas relações que se abriram. Antero de Quental, ao ler o texto da Revista Ocidental, concordou, mas salientou a exigência de evitar qualquer tentação hegemónica, preferindo a compreensão social mútua, designadamente como referiu na conferência do Casino Lisbonense sobre “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”. Afinal, as causas eram comuns e necessitariam de soluções articuladas. Hoje, o tema não perdeu atualidade. E a ideia emancipadora da Europa necessitará de capacidade de sermos audaciosos no que deve ser comum e determinados em cada Estado no que deve ser próprio, reforçando a defesa dos interesses vitais comuns. “A indústria não é somente a indústria, é também a determinação social do trabalho; a ciência não é somente o empirismo, é a vivificação que lhe dá corpo, é a metafísica; a política não é somente uma doutrina, é também um amor, uma paixão ardente pela harmonia coletiva; o direito não é somente uma fria codificação de leis, é um corpo animado pela alma da justiça; a vida não é somente um egoísmo, é também uma dedicação, um amor ardente, inextinguível!” Que pretende dizer o autor? Que as condições materiais carecem de uma dimensão humana. Daí a importância da educação e da cultura, e a compreensão de que a aprendizagem é o fator essencial do desenvolvimento humano. Informação, conhecimento, compreensão e sabedoria, nada poderemos esquecer ou menosprezar. “A alma de Cid e de Viriato é e será sempre a nossa alma, de um Cid e de um Viriato como o fazem os elementos constitucionais da vida moderna”.
Manhã linda, de claro sol e azul celeste! Quedei-me à janela, esquecido de mim, na ronda das andorinhas... Trouxeram-me à lembrança o nosso Alberto, em domingo de graça e paz, cantando, no terraço aberto sobre o jardim, um fado de Coimbra:
Porque os meus olhos se apartam dos teus, não lhes queiras mal: as andorinhas que partem voltam ao mesmo beiral! E hei-de voltar um dia, eu sou como as andorinhas, se as tuas saudades forem bater à porta das minhas!
Este lirismo tão português tem, para um nórdico como eu, algo essencialmente religioso, como uma conversão, movimento perpétuo. A saudade, como a vida, é um regresso, rota astral da fidelidade. O coração dos homens pode ser infinito, talvez por isso Deus o escolha para habitação. Estive a reler, durante a noite, passos de Das Wesen des Christentums de Ludwig von Feuerbach. E ao pensarsentir, nesta manhã serena, forte e clara, o íntimo movimento do mundo (e repetindo,como canta Alfredo à Traviata: vissi d´ignoto amor, di quell´amor ch´è palpito dell´universo intero...), ocorreu-me esse trecho tão profundo de A Essência do Cristianismo:«A essência secreta da religião é a identidade da essência divina e da essência humana - mas a forma da religião, ou a sua essência manifesta e consciente é a diferença. Deus é a essência humana, mas é sabido como uma essência diferente. O amor é o que revela o fundamento, a essência oculta da religião, mas a fé o que constitui a sua forma consciente. O amor identifica o homem com Deus, Deus com o homem e, por isso, o homem com o homem; a fé separa Deus do homem e, por isso, o homem do homem; Deus não é senão o místico conceito genérico da Humanidade, por isso a separação entre Deus e o homem é a separação entre o homem e o homem, a dissolução do vínculo comunitário. Pela fé, a religião entra em contradição com a eticidade, com a razão, com o sentido simples e humano da verdade; mas, pelo amor, ela volta a opor-se a esta contradição. A fé isola Deus, faz dele um ser particular diferente, o amor universaliza, faz de Deus um ser comum, cujo amor coincide com o amor pelo homem... ...O amor tem Deus em si, a fé fora de si...». Assim encontro, num pensador germânico que também disse que o mesmo amor é ateu por negar um Deus que seja propriedade particular e oposto ao homem, um eco poderoso de S. Paulo, quando este afirma que, das três virtudes teologais só o amor é eterno. (Aliás, essas virtudes, para Feuerbach são só duas: a fé e o amor, posto que a esperança é a fé que se refere ao futuro. A fé e o amor opõem-se, segundo ele, até nos seus sinais exteriores: os sacramentos do batismo, que vincula a um Deus particular, e o da eucaristia, ceia ou comunhão, que é a partilha do pão, do amor). Fosse Ludwig Ritter von Feuerbach ateu (e Engels o apregoou e dele assim se serviu), encontro nele, repito, uma poderosa e profunda intuição da nossa religião a Deus. Apenas direi que a minha fé habita essa contemplação do amor presente no infinito mistério do mundo. Dou-te uma mão cheia de estrelas que as andorinhas trouxeram. De onde?
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira
N.B. Desta vez, não traduzi do alemão passos da carta do marquês de Sarolea. As citações de Feuerbach estão traduzidas pela Prof. Doutora Adriana Veríssimo Serrão em A Essência do Cristianismo, na edição da Fundação Gulbenkian.
Obs: Reposição de texto publicado em 20.06.2014 neste blogue.
No ano passado assinalámos o início das evocações do centenário de Ruben Andersen Leitão – Ruben A., nascido em 1920 e falecido em 1975. E no artigo à época aqui publicado, assinalámos especificamente a intenção de voltar ao tema.
Deve-se então efetivamente referir que o teatro de Ruben A. amplamente justifica este retorno, que não quis efetuar mais cedo, exatamente porque desta forma mais se justificará esta nova evocação, tendo em vista o interesse que o teatro de Ruben A. amplamente justifica…
E não será por acaso que novamente citamos agora o comentário de David Mourão Ferreira que encerra esse artigo anterior: pois aí se refere designadamente a “desenvoltura narrativa”, assim mesmo, de Ruben A., e a adaptabilidade que aplicou às peças de teatro que compõem a sua criatividade literária.
Sendo aliás de assinalar a vastidão e constância desta dramaturgia. Pois será de recordar então o conjunto das suas peças: “O Fim de Orestes”, “Júlia”, Triálogo”, ou “Relato 1453”, esta aliás gravada diretamente em fita magnética em 1965.
E retomamos um conjunto de citações que fizemos, algumas delas, no artigo anterior.
Assim, recorda-se que Luís Francisco Rebello no estudo intitulado “100 Anos do Teatro Português” cita textos de Ruben Leitão: “O Fim de Orestes”, Júlia”, “Triálogo”, “Relato 1453” entre outras mais. E acrescenta que se nota uma influência da dramaturgia britânica. E mais: durante a sua atividade docente, Ruben levou à cena peças portuguesas, que envolvem uma larga abrangência histórica, a partir de autos vicentinos.
E é de assinalar a encenação de textos que marcaram a história do teatro português, cobrindo a expressão histórica em si mesma, mas não hesitando em marcar uma expressão de modernidade adaptável e adequável. Cita designadamente a “Júlia”, apresentando-a como expressão a adaptabilidade à exigência teatral em si mesma considerada.
E farei aqui referência a peças escritas e publicadas na época, frisando a relevância que o teatro em si mesmo, como expressão de criatividade, alcançou e destacou-se na obra de Ruben A.
E citamos agora Luciano Reis, que refere com especial relevo peças como “O Fim de Orestes”, “Júlia”, “Triálogo” ou “Relatos 1453”, para não ir mais longe nas citações. Sendo certo que algumas destas peças não eram na época conhecidas.
E seja permitido transcrever agora parte do artigo que aqui publicámos. Aí se diz que Ruben Andresen Leitão deve ser abordado como escritor, como professor e como investigador da história e da literatura portuguesa, e aí acrescentando referências e evocações da atividade como docente e como representante da cultura portuguesa, no King’s College de Londres. Luís Francisco Rebello recorda aliás que no desempenho dessas funções docentes, Ruben levou à cena textos relevantes da literatura dramática portuguesa, de Gil Vicente a Miguel Torga.
E acrescentamos ainda uma auto-citação:
A qualidade literária de Ruben A. é reconhecida e assumida pelos autores mais diversos. A sua integração é reconhecida e consagrada por escritores de qualidade e prestígio hoje indiscutível.
E que desde sempre marcaram a perspetiva da modernidade deste grande autor.
Quanto à alegada incapacidade de planeamento dos portugueses, aliada ao talento para a improvisação, JM desmistifica-a dizendo tratar-se de um fenómeno normal numa sociedade semiperiférica, o que desapareceria com a generalização de um ensino racional e a preferência pelo valor da previsão mais do que do imediato e do inesperado, pondo de lado uma acentuada concentração de poder e recursos de uma minoria que gira em redor do Estado, gerando uma permanente convicção da inutilidade das previsões, da impossibilidade de assumir responsabilidades sociais e a não capacidade de participar nas decisões, concluindo:
“Se,…, o sucesso - não só económico e político, mas também cultural - estava praticamente garantido mas só para alguns, qualquer que fosse a sua competência, não seria mais rentável para os outros (para a maioria) exercitar os dotes da improvisação, a habilidade para viver o dia a dia, quando não o jeito para a pequena fraude, a economia paralela, a fuga aos impostos, a “cunha”, o clientelismo? Ou, no melhor dos casos, descobrir o fascínio de viver intensamente o dia a dia, momento a momento, aproveitando as coisas boas da existência, como o convívio e a afetividade, ou as mais emotivas, como a paixão, a intriga ou o jogo, com tudo o que ele tem de aleatório? Confirmar-se-ia, assim, uma das caraterísticas mais típicas dos portugueses, uma daquelas,…, que mais entusiasmou Agostinho da Silva. Mas será só deles? Não existe também noutras sociedades da Europa meridional, ou mesmo naquelas que não alcançaram o “benefício” da civilização e não se renderam à racionalidade?”.
Embora tais críticas, argumentos e observações possam ser empírica e objetivamente aceitáveis (algumas bem atualistas na nossa sociedade), dentro dum relativismo determinista das coisas, sem prejuízo de, em rigor, tudo poder ser tido como subjetivo (no sentido de todos os nossos conhecimentos e opiniões são fruto da perceção individual de cada um de nós); parece assertivo questionarmo-nos de que o mesmo não possa ser extensivo, em maior ou menor grau, a qualquer outro povo ou grupo social estável em termos de regularidade, o mesmo quanto à emotividade, irrealismo e sonho das chamadas teorias providencialistas, míticas e messiânicas, para além de que nenhuma teoria se pode arrogar totalmente “determinista” (incluindo as míticas, messiânicas, utópicas), porque o que é tido como “determinista” hoje pode não o ser amanhã. Não pode o sonho ser “uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer”? (poema de António Gedeão cantado por Manuel Freire).
Por que também há uma dimensão espiritual em tudo, mesmo em democracia e no Estado de Direito (que podem ser vistos como uma religião laica).
Aos particulares que perfaçam 50 anos de idade e a partir da mesma, e desde que veementemente acreditem nos enigmas da vida, é garantido o acesso à liberdade de escolherem os direitos e deveres que lhe assistam por inerência do saber acumulado, bem como a prática de qualquer ato destacável e que vise a impugnação de eventual lesão à felicidade a que acederam por mérito.
ARTIGO 51º
Entende-se que a sub-rogação exercida face ao contido nos termos do artigo anterior, não aproveita a quem dela enriquecer, nem que a justifique por eventual onerosidade ou boa-fé. a) Se algum prazo for invocado o mesmo é tido por não válido. b) A cooperação de várias pessoas credoras de naturezas pessoais alheias não sustenta a justa causa.
ARTIGO 52º
Pelo cumprimento das obrigações contidas no artigo 50º do presente código novo, respondem todos os bens da alma ainda que não suscetíveis de penhora, mas sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos e inerentes ao que um bom pai de família não possa explicar.
Há aquele conto persa sobre o jardineiro e a morte: "O jardineiro de um príncipe persa correu para o seu senhor, dizendo: ‘Senhor, acabo de ver a morte no pátio, e ameaçou-me. Empresta-me um cavalo, para poder fugir depressa para Ispaão; deste modo, a morte não me alcançará'. O senhor satisfez o desejo do seu jardineiro, que imediatamente cavalgou para Ispaão. Pouco depois, também o príncipe encontrou a morte, e perguntou-lhe: ‘Porque é que ameaçaste o meu jardineiro?’ A morte respondeu: ‘Eu não o ameacei. Apenas olhei para ele atónita, pois hoje à noite tenho de ir buscá-lo a Ispaão’.”
Aí está um conto cru, que tem muitas versões, mas essencial. Passamos a vida a fugir da morte, ela, porém, está sempre lá. À nossa espera. Em qualquer parte. Não sabemos onde. Nem quando. Nem como. Mas é inútil tentar esquecê-la, pois ela não vai esquecer-se de nós.
E. Cioran, o filósofo da desesperança, escreveu: "Há meses, encontrei uma senhora e falámos de um conhecido comum, alguém que eu já não via há muito tempo. Ela disse que era melhor não voltar a vê-lo, pois ele estava muito infeliz. Não pensava noutra coisa senão na morte. Respondi-lhe: ‘Em que é que quer que pense?’. Em última análise, não há outro assunto.”
O pensamento da morte tem o condão de ao mesmo tempo nos libertar e nos paralisar. Perante a morte, ficamos neutralizados: tudo é vão e inútil. Ou fugimos para a frente: comamos e bebamos, pois amanhã morreremos. Ou então despertamos finalmente para a liberdade: a consciência da morte faz-nos radicalmente livres, e tornamo-nos nós.
A morte é implacável. Com ela, não há negociação possível. Mais tarde ou mais cedo, ela sai vencedora. Mas precisamente aqui reside o seu nó todo de enigma: ela é a evidência bruta que anula, e, por outro lado, ergue-se, irredutível, a pergunta: como é que uma consciência pode morrer? A minha consciência morta é a contradição. Por isso, através deste enigma, as culturas não são senão tentativas de abertura de caminhos de sentido, na busca de um Sentido último, final.
Talvez não seja mau reflectir sobre a crise das nossas sociedades científico-técnicas que tem o seu vértice no tabu da morte. Vivemos numa sociedade que nos arrasa com conhecimentos, mas que não nos ensina o essencial: a sabedoria de viver na consciência da mortalidade. Essa consciência talvez possa despertar-nos para o que é nuclear e fundamental: somos mortais; logo, somos irmãos. E é a morte que obriga a distinguir entre o que verdadeiramente vale e tudo o resto.
É um lugar-comum: o reconhecimento de que nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo a morte se tornou tabu. Disso, pura e simplesmente não se fala. Fazê-lo é quase obsceno, embora se admita que o mundo dos mortos invada o mundo dos vivos um ou dois dias por ano - um e dois de Novembro, os dias dos Finados, amanhã e depois. As nossas sociedades são as primeiras na História a colocar o seu fundamento sobre a negação da morte.
De facto, como é que uma sociedade que gira à volta da organização sócio-económica, determinada pelo individualismo concorrencial feroz, onde os valores são ter, poder, prazer, êxito, parecer e aparecer, eficácia, lucro, acumulação de bens materiais, progresso, riqueza, pode ainda acompanhar afectivamente os doentes, os velhos, os moribundos, e suportar o supremo fracasso da morte? Uma sociedade sem Eternidade tem de ignorar a morte. Neste tipo de mundo, a morte é o não integrável, e o nosso dever é não pensar nela.
Mas não se julgue que se deixou de pensar na morte por ela já não constituir problema. É exactamente o contrário que se passa: de tal modo a morte é problema, o problema para o qual uma sociedade que se considera omnipotente não tem solução que só resta a solução de ignorá-la, ocultá-la, reprimi-la. Aquilo que provoca dor infinda e para que não há solução é recalcado. Por isso, se a experiência de solidão acompanha sempre a morte, nas nossas sociedades essa solidão pode atingir o paroxismo do intolerável.
É certo que talvez nunca como hoje a morte foi objecto de estudos científicos, desde a medicina à sociologia, à psicologia e à história, que nos permitem compreender, por exemplo, que as atitudes face à morte variam segundo os tempos e as sociedades. Proliferam os colóquios e as conferências e os especialistas da morte. Mas não se aninha aí precisamente o perigo de uma estratégia para evitar o pensamento da minha morte? Quer dizer, essa é ainda uma forma paradoxal de confirmar o tabu: falar da morte em abstracto e academicamente pode ser um meio de iludir a minha própria morte.
Ora, é evidente que é necessário excluir todas as atitudes mórbidas face à morte. Até porque o medo da morte foi utilizado até pela Igreja como verdadeiro exercício de terrorismo sobre as consciências, para uso do poder. Mas é igualmente verdade que, quando uma sociedade nada tem a dizer sobre a morte, é porque, em última análise, nada tem a dizer sobre a existência autenticamente humana. Quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal decisivo de desumanização e alienação. A ocultação da morte anda vinculada ao profundo mal-estar provocado pelo vazio de uma existência sem sentido.
O pensamento da morte não pode servir para envenenar a vida. Pelo contrário. O saber da morte própria confronta-nos com os limites e o que se deve fazer no tempo que há. Sem ilusões.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 de outubro de 2021
Através da poética do sublime, o romântico passou a referir-se a uma relação mais misteriosa do indivíduo com o cosmos.
No final do séc. XVIII a crise gerada pela Revolução Francesa e consequentemente pelo cessar do universalismo supra-histórico do neoclássico abre-se a possibilidade do Romântico se expandir como alternativa.
Lê-se em ‘Arte Moderna’, de Giulio Carlo Argan, que o clássico está ligado à arte do mundo antigo greco-romano e à relação clara e positiva do ser humano com a natureza. O Romântico, por outro lado, está ligado à ideia de que a arte é a revelação do sagrado e tem necessariamente uma essência religiosa. O Romântico está por isso ligado à arte cristã da Idade Média e à consideração de que a natureza é uma força misteriosa e hostil, que tem a capacidade de expor a pessoa humana às grandes questões relacionadas com o sentido da vida.
Segundo Argan, estas duas conceções diferentes do mundo - poético vs mimético -, a partir da segunda metade do séc. XVIII, “…tendem simultaneamente a se opor e a se integrar à medida que se delineia nas consciências, com as ideologias da Revolução Francesa e das conquistas napoleônicas, a ideia de uma possível unidade cultural…”. Para Argan, o ‘belo romântico’ é subjetivo, característico, mutável e contraposto ao ‘belo clássico’, que é objetivo, universal e imutável.
A cultura do Iluminismo trouxe a ideia de que a natureza não é só ordem revelada e imutável, é sim o ambiente da existência humana e por isso estímulo a que cada um reage de modo diverso, ora racional ora passionalmente. É do pensamento iluminista que nasce a tecnologia moderna, que não obedece à natureza mas que a transforma.
O termo romântico, em meados do séc. XVIII, significava ‘pitoresco’, a poética do relativo, isto é uma arte que não imita nem representa, mas que educa a natureza sem destruir a sua espontaneidade. Porém através da poética inglesa e alemã do sublime e do horror, o romântico passou a referir-se a uma relação mais misteriosa do indivíduo com o cosmos. Para o ‘sublime’ a natureza desenvolve na pessoa o sentido da sua solidão e da sua tragédia de existir. O ‘sublime’ é absoluto, visionário, angustiado e aprisionante. A poética do ‘pitoresco’ vê o indivíduo integrado no seu ambiente natural, mas na poética do ‘sublime’ o indivíduo paga, com a angústia e o pavor da solidão, a soberba do seu próprio isolamento.
As poéticas do ‘sublime’, definidas como proto-românticas, que veem a arte como uma atividade inteiramente espiritual, adotam em geral modelos das formas clássicas, como acontece na obra transcendental de William Blake e profunda de Heinrich Füssli - sendo Miguel Ângelo o exemplo supremo de génio inspirado e solitário que põe em comunicação o céu e a terra.
“Father, father, where are you going O do not walk so fast. Speak father, speak to your little boy Or else I shall be lost,
The night was dark no father was there The child was wet with dew. The mire was deep, & the child did weep And away the vapour flew.” William Blake, ‘The Little Boy Lost’ In Songs of Innocence
O pintor e poeta William Blake (1757-1827) pensava que Homero, a Biblia, Dante e Milton eram os portadores das mensagens divinas. Para além dos limites terrenos só pode existir a transcendência ou o abismo, o céu ou o inferno. Blake acreditava que ao ultrapassar o limiar do ‘sublime’ as sensações desvanecem-se e entra-se em contacto direto com as forças divinas - porque o perfeito equilíbrio entre a humanidade e a natureza já se perdeu para sempre.
Para Blake, Arte é pura atividade do espírito, que escapa à matéria. É conhecimento intuitivo das forças eternas e por isso estabelece uma constante relação com o divino e o sagrado e com o Ser na sua totalidade. É anticiência, síntese, inspiração e subjetividade. É comunhão com o Universo. Blake acreditava na infinita bondade inerente ao ser humano (que cessa ao ser corrompido pelas restrições da sociedade) e na ideia de que nos primórdios da humanidade todos os seres humanos estavam ligados ao infinito (ver A Casa do Lazareto, 1795).
Blake deseja que o artista seja um ser excecional, em contacto com tudo o que a ciência, nos limites da sua racionalidade, não chega a compreender. (ver Newton, 1795)
Para Argan, ainda que o traço, das pinturas de William Blake, seja nítido e duro, é capaz de definir a indefinibilidade, a imensidão e a deslumbrante e imóvel imanência das figuras.
2021 – Ano Santo Jacobeu. - Na cultura europeia, os caminhos de Peregrinação têm uma importância significativa, originalmente em virtude da cristianização medieval, que permitiu a atualização de muitas tradições pagãs, utilizadas como fatores de diálogo entre populações diferentes, no âmbito de uma rede que tinha como centro a cidade de Roma, como sede pontifícia e símbolo da unidade e universalidade do catolicismo.
UM CULTO ESPECIAL IBÉRICO
O Império Romano do Ocidente deu lugar à Respublica Christiana, marcada por diversos caminhos de Peregrinação, considerando que “todos os caminhos vão dar a Roma”. Na Península Ibérica, a partir do século VIII, a ocupação islâmica determinou o movimento de Reconquista cristã, iniciado nas Astúrias e no sul de França, com a vitória de Poitiers (732). A importância da peregrinação de Santiago de Compostela relaciona-se com este movimento. Em finais do século VIII difunde-se no noroeste peninsular a lenda de que aí estaria o corpo de Santiago Maior. Cerca de 812 um eremita de nome Pelágio teria avistado uma estrela pousada no Bosque de Libredón. Tal facto foi comunicado ao Bispo de Iria Flávia, Teodomiro, que se deslocou ao local e identificou o lugar no qual se encontraria o corpo decapitado do apóstolo nos restos de uma antiga capela de um cemitério romano. A esta referência se associou a chegada à região de uma população moçárabe, que assim passou a ter condições para a práticar da religião cristã. A designação Compostela constituiria uma derivação do latim “Campus Stellae”, a evocar a descoberta revelada a Teodomiro. Nesse local haveria uma antiga festa pagã ligada ao culto do Sol em Finisterra. O tempo viria a tornar a festividade de Santiago Apóstolo de grande importância, a partir da forte ligação às tradições dos trovadores da Provença e do Languedoc, no sul de França, confirmando a ligação de todo o norte peninsular às raízes culturais comuns e às necessárias condições de segurança, perante a influência muçulmana. Em 1075, o Bispo Diego Páez iniciou a construção da Catedral românica dedicada a Santiago, graças aos recursos financeiros gerados pelo sucesso da presença de peregrinos europeus. Deste modo, Compostela ganhou evidente peso político no novo Reino de Leão. Em 1120, o arcebispo Diego Gelmirez obteve do Papa Calisto II a transferência da Sé Metropolitana de Mérida para a igreja compostelana, em detrimento do primaciado dos Arcebispos de Braga. E o Prelado de Santiago de Compostela ganhou jurisdição eclesiática sobre a maioria das dioceses das Astúrias e de Leão, além de possuir um rico domínio feudal até ao Atlântico. Em 1102, o poderoso arcebispo Gelmirez levou de Braga, pela calada da noite, num verdadeiro assalto, as relíquias do bispo bracarense S. Frutuoso e dos mártires S. Silvestre, S. Cucufate e Santa Susana. Tal atitude, algo comum no período medieval, teve como justificação a necessidade de dar às relíquias devida adoração em Santiago de Compostela. O episódio conhecido como “pio latrocínio” foi origem de um longo conflito entre Braga e Compostela, apenas reparado em 1966 e 1993, quando as relíquias regressaram a Braga.
Se há uma ligação evidente na cultura galaico-portuguesa a Santiago de Compostela, há consequências políticas deste último conflito, com peso indiscutível nas reivindicações independentistas dos barões de Entre Douro e Minho, ciosos das prerrogativas de Braga e do Porto. Se as tentativas de Diego Gelmirez de criação de uma teocracia, que ameaçava também o Reino de Leão, não tiveram sucesso, a verdade é que viria a ser o futuro Reino de Portugal beneficiário da autonomia cultural e linguística do polo de Compostela, pela adoção por D. Dinis do galaico-português como língua oficial. O desenvolvimento cultural suscitado pela influência trovadoresca e pela ligação europeia de galaico-portugueses e provençais, ao longo do Caminho de Santiago, viria a reforçar a autonomia estratégica do ocidente marítimo peninsular, autêntico herdeiro da tradição jacobeia. A relação galaico-portuguesa permitiu a aproximação ibérica de que falava Miguel de Unamuno, compreendendo a diversidade histórica e considerando que há caminhos diferentes que visam um património comum, cultural e linguístico, além de se inserir num mundo complexo das culturas múltiplas geradas nesta língua comum de peregrinos e trovadores. Lembramos Martim Codax, Afonso X, o Sábio, Meendinho (da ermida de S. Simão da ria de Vigo), mas também Rosalia de Castro, Curros Enriquez, Eduardo Pondal ou o Padre Feijó – e deste modo encontramos raízes antigas que nos projetam no futuro. E a língua portuguesa conduz-nos a várias culturas que se desenvolvem e enriquecem mutuamente. No tempo em que o multilinguísmo está na ordem do dia e deve ser desenvolvido, a afirmação da língua e das literaturas provindas do galaico-português exige mais conhecimento mútuo e vontade comum. E quando Fernando Pessoa fala da pátria como língua, o que reclama é o dever de comunicação e a responsabilidade de uma “memória criadora”.
AS REDES EUROPEIAS DE CAMINHOS
Falar do Caminho de Peregrinação de Santiago é considerar também a tradição do galaico-português, e lembrar as origens da língua em que nos exprimimos, e recordar uma história cultural que nos leva a raízes muito antigas na Europa, desde a reconquista até à modernidade, o que nos conduz a um diálogo com os povos peninsulares, desde o império romano aos berberes e árabes até à cultura moçárabe, passando pelo cadinho que nos caracteriza. E é extraordinário ver como a língua do ocidente peninsular se tornou universal. As raízes históricas dos caminhos de peregrinação (“per agros”) superaram em muito as tradições antigas – as origens religiosas, reforçaram-se pelas práticas culturais e hoje o conceito moderno de património cultural conduz-nos à importância crescente dos roteiros além-fronteiras e às redes de cooperação cultural, educativa, científica, ambiental e turística. O caso das Peregrinações de Santiago liga-se a uma rede muito diversificada que se desenvolveu na Europa, e hoje se projeta mundialmente, o que constitui decisivo fator de uma Cultura de Paz, que tem sido defendida na UNESCO, mas também no Conselho da Europa, segundo o espírito da Carta das Nações Unidas e os objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O Ano Santo Jacobeu ocorre sempre que o respetivo dia 25 de julho corresponder a um Domingo, o que acontece em 2021. Contudo, em virtude da Pandemia Covid-19, o Papa Francisco autorizou que as festividades se prologuem em 2022.