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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

Fernando Pessoa

 

91. FICÇÕES DO TEMPO

 

Santo Agostinho, em Confissões, reconhece três tempos: “Um presente das coisas passadas, um presente das coisas presentes, e um presente das coisas futuras. O presente das coisas passadas é a memória; o presente das coisas presentes é a vida, e o presente das coisas futuras é a espera”.

A realidade existe apenas no presente, que é o tempo permanente em movimento.

 

Como também opina Fernando Pessoa, em Ano Novo:

“Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.

Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento”

 

Ou se deduz do fado Vida Vivida, cantado por Argentina Santos:

“Meu Deus, como o tempo passa
Dizemos de quando em quando
Afinal o tempo fica
A gente é que vai passando”

 

Daí que passado e futuro sejam referências a um tempo inacessível que já foi ou que potencialmente virá a ser, mas que não é, sendo o presente real, mas efémero e fugidio, pois o tempo é criado por nós, em pensamento e na nossa mente, como o ano velho e o novo que se augura que venha.

 

31.12.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

 

CRÓNICA DA CULTURA

SÍTIO


Querida Dulce,


Dizes na tua carta que sentes por cima da cabeça uma estrela que te olha de há muitos, muitos anos-luz, e que tão mal te conhece afinal!

Será assim? daqui te pergunto?

Será que foi ela que te chegou fora do tempo ou tu nunca deixaste que ela te visse?

Tantas vezes acontece, doce amiga, que dores nos abraçam de tal jeito que ficamos num nó, entregues a nós, e tanto que até nos chega a incapacidade de voar, estorvamos mesmo o próprio espaço que ocupamos e ficamos embaciados a outras realidades.

Não sei como te transmitir de outro modo o que te queria dizer, mas o tempo, o tempo de quando em vez é altar da vida, e teima em nos colocar de joelhos, e talvez ao contrário do que julgas, a estrela que referes tem no céu um mundo solidário que te abrange.

É bem difícil, querida amiga, entender que há vida mesmo quando ela se oculta.

Minha amiga;

Com um forte abraço te peço que tenhas sempre à mão os bocadinhos de ser feliz como quem tem de regar o verde do mundo.

Mais: recorda que há muita inutilidade nas coisas importantes. Escolhe, pois, um caminho pouco andado e sentirás uma liberdade diferente a cada passo: verás que talvez estejas na cadeia à qual te decidiste.


Querida Dulce,

Peço-te que te lembres que espero por ti na porta de cima do dia, à qual já prometemos novo sentido.

Cuida que se atares à tua memória ninho ou casa, a cada dia que te quiseres ver ao espelho da estrela anos-luz, é teu o conhecer que te aguardo aqui como sítio definido.

 

A tua amiga

Isa

 

 Teresa Bracinha Vieira

NATAL: A DIGNIDADE INFINITA DE SER HOMEM

Presépio de Machado de Castro

 

A festa do Natal tem de ser, é, mais do que o festival do comércio natalício. Há pessoas que chegam à noite de Natal cansadas e desfeitas, por causa dos presentes. No último instante, ainda tiveram de ir à última loja aberta, por causa de mais uma compra. Há inclusivamente pessoas para as quais o tormento das compras natalícias começa logo em Janeiro, uns dias após o Natal: o que é que vão dar como presente àquele, àquela, no Natal seguinte?!...

A festa do Natal é infinitamente mais, e deve sê-lo. Porque o Natal é uma visita de Deus aos homens, às mulheres, aos jovens, às crianças. É Deus presente entre nós. E, ao contrário do que frequentemente fazemos com os nossos presentes, que pretendem ser uma manifestação de ostentação de poder junto dos outros, Deus veio, sem majestade, sem poder. Veio, humilde, na ternura de uma criança. De tal maneira que os mais pobres - os pastores – não se sentiram humilhados ao visitá-lo. Foram os pastores os primeiros que viram Deus visível num rosto de criança. Quem é que imaginaria que Deus, se algum dia viesse, viria assim: simples, pobre, precisamente para que ninguém se sentisse excluído?...

Quer se seja cristão quer não, quer se acredite quer não, é necessário reconhecer que foi através do cristianismo, isto é, mediante a fé no Deus feito Homem, que veio ao mundo a tomada de consciência explícita e clara da dignidade infinita do ser humano. Isso foi reconhecido por pensadores da estatura de Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas. Hegel afirmou expressamente que na religião cristã está o princípio de que "o Homem tem valor absolutamente infinito". Ernst Bloch, embora ateu, confessou que foi pelo cristianismo que veio ao mundo a consciência do valor infinito da pessoa humana, de tal modo que nenhum homem, mulher, jovem, criança, pode ser tratado como "gado". Jürgen Habermas, o mais importante filósofo vivo, escreveu que a democracia  não se entende sem a compreensão judaico-cristã da igualdade radical de todos os homens, por causa da "igualdade de cada indivíduo perante Deus": o princípio de “um homem um voto” é a tradução política da fé cristã de que cada homem, cada mulher, é filho, filha, de Deus, valendo todos como iguais. A própria ideia de pessoa enquanto dignidade inviolável e sujeito de direitos inalienáveis veio ao mundo através dos debates à volta da tentativa de compreender a pessoa de Cristo e o mistério do Deus trinitário cristão. Embora, desgraçadamente, tenham tido de impor-se contra a Igreja oficial, foi em solo de base cristã que foram germinando e se deram as grandes Declarações de Direitos Humanos.

Afinal, é uma alegria enorme dar um presente e receber um presente, concretamente na época de Natal. Mas essa alegria não provém tanto do valor material do presente como desse saber que consiste em sermos e estarmos nós próprios presentes uns aos outros: ele lembrou-se de mim, eu lembrei-me dele; eu lembrei-me dela, ela lembrou-se de mim...

O pequeno presente oferecido é sinal, símbolo, dessa presença calorosa, e exprime a alegria de se ser pessoa, cuja dignidade infinita reconhecemos em cada ser humano. Assim, celebrar o Natal tem de ser também contribuir para que se concretize o anúncio dos anjos aos pastores, que constituíam a classe baixa dos pequenos e pobres e que inclusivamente viviam à margem da prática religiosa: "Nasceu para vós um salvador; Paz na Terra aos homens amados por Deus". É uma vergonha para a Humanidade que hoje mais de 800 milhões de pessoas passem fome enquanto os gastos com armamento não cessam de aumentar.

José Tolentino de Mendonça escreveu: “O Natal do comércio chega de um dia para o outro. Fácil, tilintante, confuso, pré-fabricado. É um Natal visual. Um amontoado de símbolos. Dentro de nós, porém, sabemos que não é assim. Para ser verdade, o Natal não pode ser só isto. Não pode ser apenas para uma emoção social, para um corrupio de compensações, compras e trocas. Para ser verdade, o Natal tem de ser fundo, pessoal, despojado, interpelador, silencioso, solidário, espiritual. Acorda em nós, Senhor, o desejo de um Natal autêntico.”

Considero suicidário que os europeus menosprezem a sua herança cristã. Sinto como desastroso e ridículo, que, em nome da inclusão, uma vez que nem todas as religiões celebram a data, a Comissária Europeia para a Igualdade, Helena Dalli, tenha recomendado a abolição da palavra “Natal”, a substituir por “período de festas”, por exemplo. No guia distribuído aos funcionários da Comissão Europeia, chegou-se ao cúmulo de recomendar a substituição de nomes cristãos, como Maria e José... por outros. Pergunto: Será que alguém que não estima a sua cultura vai respeitar as dos outros? O ser humano, na e para a sua identidade, é ao mesmo tempo enraizado e aberto. Quem nega as suas raízes, perdendo a identidade, tem competências para se abrir ao diálogo são e enriquecedor com os outros? Significativamente, Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia,  escreveu pessoalmente ao Papa Francisco assegurando que a União Europeia se inspira na “herança cultural, religiosa e humanista da Europa”.

Seja como for, é Karl Rahner, talvez o maior teólogo do século XX — tive o privilégio de ser seu aluno —, que tem razão: ”Quando dizemos ‘é Natal’, estamos a dizer: Deus disse ao mundo a sua última palavra, a sua mais profunda e bela palavra numa Palavra feita carne. E esta Palavra significa: Amo-vos, a ti, mundo, a vós, seres humanos.” Natal bom e feliz!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 de dezembro de 2021

FOTÓGRAFO DE PALAVRAS…

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Ao percorrer as fotografias de Manoel de Oliveira, que vieram de Serralves até à Gulbenkian, lembrei-me de João Bénard da Costa, sempre saudoso amigo, e tive desejo de o reencontrar ali para podermos lentamente, perante cada uma daquelas imagens discorrer livremente sobre os mistérios da criação e da arte. Por momentos, ele ficou ali, em espírito, bem presente. E tive a boa ilusão de que se nos juntava o cineasta e fotógrafo. E recordámos “Douro, Faina Fluvial”, vinte minutos geniais, de 1931, com fotografia de António Mendes, que se torna obrigatório ver e rever. Luigi Pirandello, que assistiu à estreia, a convite de António Ferro, não teve dúvidas em reconhecer logo, contra alguns espectadores distraídos, a genialidade do autor e das imagens.

 

A imaginação flui, ao assistirmos à meticulosa colocação das fotografias nos seus sítios. Sentimos um verdadeiro prazer no encontro da poesia de cada uma daquelas imagens – como as da jovem noiva do artista, Maria Isabel, a olhar a câmara ou junto da serenidade das águas. E vem à mente a frase que Agustina e Oliveira fizeram dizer a Francisca-Fanny Owen: “a alma é um vício”. João Bénard logo acrescentava que o cinema também o é, do mesmo modo que a fotografia. Na criteriosa escolha desta mostra, isso vê-se muito bem. Ruy Belo, no poema que escreveu a propósito da morte de Marilyn Monroe, demonstrou o sentido e alcance poético da ligação entre alma e vício, no sentido em que o belo é tão difícil de captar que obriga a procurar entender o que está para além do que se vê ou do que parece perceber-se.

 

Passo a passo, vemos na escolha de António Preto, a partir de um acervo de milhares de fotografias, que é mesmo esse vício de alma que encontramos na aparente normalidade das imagens – família, férias, filmagens, ideias em estado puro. A casa refletida no farol do automóvel alimenta o sonho. E, não por acaso, anuncia-se para breve na Casa do Cinema Manoel de Oliveira uma mostra sobre as relações artísticas do cineasta com Agustina Bessa-Luís. São a literatura e a imagem, a memória e a vida, a arte e a técnica que se encontram. E Manoel de Oliveira é uma figura de fascínio, que cultivou pela imagem a busca do fundo do espírito e da alma. Neste período fecundo do inesperado fotógrafo estão os catorze anos em que esteve sem filmar, desde “Aniki-Bobó”(1942) até “O Pintor e a Cidade” (1956). E as imagens fixam o que ficou por realizar, como o documentário sobre o Aero Club do Porto ou “O Saltimbanco”. Quantos espíritos por aqui circulam, quantos caminhos diferentes se abrem…

 

Em 1952, o artista é chamado a fazer a fotografia de uma jovem que acaba de morrer. Daqui sairá o argumento, que leva ao filme “O Estranho Caso de Angélica” (2010), que marca o registo onírico que o cineasta gostava de cultivar. Imanência a reclamar a transcendência. Isaac, fotógrafo sefardita, que está numa modesta pensão de Peso da Régua para testemunhar em imagens a faina agrícola da vinha no Douro, é chamado inesperadamente, numa noite que se revelaria funesta, a fazer o retrato da jovem de uma família influente. O tema ilustra a metáfora que liga a fotografia, o cinema, a alma, a morte e a vida, evidentes no fugaz sorriso de Angélica, a belíssima jovem, que consumirá Isaac. A descoberta de Manoel de Oliveira fotógrafo, nesta extraordinária reunião de imagens, continuará a constituir uma surpresa, mesmo para quantos já conheciam esta faceta do seu talento. É um reencontro mágico, a que não podemos ficar indiferentes, que abre novos caminhos e que, encantatório, permitirá continuar a ver com olhos de ver o modo como um homem da imagem nos permite entender melhor a vida das palavras.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

DESMOND TUTU

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A CORAGEM DA LUTA TÃO LUTA!

Na sua vida as linhas convergentes foram as que o uniram à humanidade.

Sempre preferiu aprender pormenorizadamente o como da paz do que deixar-lhe mera impressão digital.

 

DESMOND TUTU

A alegria no presente, a perícia no desafio por um futuro novo.

Que os mais frágeis de hoje sejam os escribas à luz do amanhã.

 

Teresa Bracinha Vieira

A VIDA DOS LIVROS

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   De 27 de dezembro de 2021 a 2 de janeiro de 2022

 

“A Causa das Coisas” de Miguel Esteves Cardoso (Bertrand, 2021) é, segundo José Tolentino Mendonça, “um ensaio de ontologia social” e um “inventário de espécies e uma ambiciosa pesquisa etnográfica”, tendo sido publicado inicialmente em 1986 na Assírio e Alvim.

 

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ENTRE CAUSAS E COISAS

Através de cerca de cem causas e de cinquenta coisas, Miguel Esteves Cardoso faz um sobrevoo de Portugal e dos portugueses, simultaneamente com sentido crítico e um especial afeto. Sendo anglófilo, filho de mãe britânica, formado na cultura inglesa, consegue ver a nossa realidade ao mesmo tempo de fora e de dentro. Tem, deste modo, a capacidade de se distanciar de todas as formas de provincianismo, com base nas qualidades de turista e de indígena, encontrando o que julga ser mais genuíno e autêntico numa curiosíssima identidade, capaz de não se levar demasiado a sério. “Em Portugal, diz MEC, ter amor às nossas coisas implica dizer mal delas, já que a maior parte delas não anda bem. Nem uma coisa nem outra constitui novidade. Nem dizer mal delas, nem o facto de elas não andarem bem. Será que se diz mal na esperança de que elas se ponham boas? Também não. As nossas causas são quase sempre perdidas. Porquê então?”. É esta a substância do livro, que se tornou um clássico. Ao longo das análises vê-se que nunca estarmos satisfeitos, como disse o Padre António Vieira. Achamos que deveríamos ser o “país mais perfeito do mundo”. E será que monopolizamos a maledicência para nos defendermos dos outros? Por alguma coisa será. “É fácil pensar que o Portugal Ideal, onde todas as coisas correm bem, já existiu. Não há português que não tenha a sua metade saudosista”. E fica a ideia de que o país sonhado ainda está para vir. E assim Esteves Cardoso diz que quase se orgulha de ser português e quase ama Portugal. E nesse quase está a distância necessária para não enlouquecer, “entre o que se quer e o que se vê”. Mas há a consolação de ainda procurar um português genuinamente português… Essa é a busca que acompanhamos ao longo dos textos agora relidos.

 

RAPOSA E OURIÇO – UM POUCO DE TUDO

Nesta nova edição, José Tolentino Mendonça começa por lembrar o fragmento de Arquíloco, talvez o poeta grego mais antigo que chegou ao nosso conhecimento, descoberto por Isaiah Berlin, onde se diz: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande”. MEC seria, nesta perspetiva, uma raposa irrequieta. Mas tal seria uma mera simplificação tosca, já que de baixo da sua pele e da sua escrita se esconde um sólido e obstinado ouriço – “que “insiste numa única preocupação, investiga somente a causa de uma coisa: Portugal”. E Eduardo Lourenço vem naturalmente à baila, no seu “Labirinto da Saudade”, não no que alguns leem de saudosismo, mas no que o ensaísta pensou verdadeiramente: “uma conversão cultural de fundo suscetível de nos dotar de um olhar crítico sobre o que somos e o que fazemos”. E a opção europeia, para o bem e para o menos bem, depois de 1986, passou a marcar decisivamente a nossa reflexão. “Tanto o ‘medinho’ protecionista, do Portugal dos Pequenitos, como a atitude do ‘obrigadinho’ servil e conseguidista são totalmente idiotas e reles”. Eis por que razão “A Causa das Coisas” merece uma releitura à luz dos dias de hoje. Para o autor, causa seria “tudo o que determina a existência de uma coisa ou acontecimento” e coisa “tudo o que existe ou pode existir real ou abstratamente”.  Entretanto, houve muitas mudanças por toda a parte, o mundo mudou e nós, com ele. Mas o nosso espírito mantém-se e as exigências de lermos criticamente os mitos ganhou uma nova urgência. Continuamos a dever ter presente a história de nove séculos, que não se apaga facilmente com uma borracha.

 

UM PORTUGUÊS PACIENTE

“O bom português é um homem paciente, com uma paciência do tamanho da História. Sabe que Portugal já atravessou períodos piores e outros melhores, e está perfeitamente consciente que vive hoje num período que é indesmentivelmente assim-assim. Os períodos assim-assim são os mais difíceis de aturar, porque nem se assinalam com o épico das grandes tragédias (Filipes, terramotos, invasões), nem com a glória das grandes epopeias (Afonsos, descobertas, impérios). Os períodos assim-assim, que costumam ser morosos e são quase sempre patéticos, nunca aparecem mais tarde nos tomos de História”. “Um português só faz o que deve e só dá o seu melhor desde que todos os outros o façam também” – a isso se chama mediocridade. Não podemos esquecer o portuga, que é “o português elevado à sua máxima impotência” e o portuguesinho (talvez “valente”), que se distingue dos demais portugueses por estar contente – “Pode ser feiinho, mas é o nosso Portugalinho”… O “Português Suave” está “para o portuguesinho como o Ritz para os portugas e o SG Lights para os exilados, emigrados, estrangeirados e outros trânsfugas”. As entradas são várias, interessantes e surpreendentes. Por exemplo, o “Já agora”, que tantas dores de cabeça dá a quem deseja ter contas certas; a chatice de nada se fazer até ao fim; a corrupção de esperar a cunha e de cumprir um dever, descobrindo um desgraçado que execute o serviço; ou o ler – porque de todo o tempo que perdem os portugueses “não há eternidade como o tempo que perdem a não ler”…  Por exemplo sobre o “Chá”, o importante não é a Rainha Catarina e o seu Chá levado para a corte britânica, mas o facto de a boa educação ensinar-se e o chá não. A boa educação é uma transfusão, o chá vem de dentro (toma-se de pequenino), como uma infusão. E sobre a falta desse elementar atributo, um “grunho” é uma criatura que logrou escapar ilesa do choque civilizacional. E nem o café brasileiro nem o cacau africano podem alguma vez compensar a nossa falta de chá… E no tema atualíssimo do Mar, lemos: “Antigamente era Portugal que ia pelo mar fora – agora é o mar que entra por Portugal dentro”. O que é uma identidade? É um conjunto de elementos capazes de ligar as raízes à realidade do dia-a-dia. Miguel Esteves Cardoso, neste seu reportório, vai até aos aspetos mais raros e misteriosos e contribui para o enriquecimento das bases de uma nova imagem de Portugal, que encontramos em Eduardo Lourenço, José Cutileiro, Maria Velho da Costa, Armando Silva Carvalho, Almeida Faria – como antes Ruben A., Alexandre O’Neill ou Nuno Bragança… As causas encontram as coisas e as coisas procuram as causas…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

FELIZ NATAL!

 

Não sei, ninguém sabe, qual a data certa e o lugar real do nascimento de Jesus... Tampouco a maioria das pessoas pensará hoje no sentido deste evento natalício: a Festa do Natal, agora, é sobretudo social e profana, promovendo férias e encontros, libações várias, fúria consumista. Mas no âmago secreto da nossa cultura permanece esta celebração cristã do solstício de Inverno, quando do fundo da noite e do frio nasce a esperança, a certeza - que é fé - de que a luz não tardará a voltar, esplendorosa como o amor que nos aquece o coração e nos devolverá fraternidades perdidas.

Seja Feliz em nós, e promissora, a festa do Natal da misericórdia!

 

Camilo Maria
      

Camilo Martins de Oliveira

O TEATRO RIBEIRO CONCEIÇÃO DE LAMEGO – UMA PERSPETIVA HISTÓRICA

 

 

A arquitetura e o património teatral reserva-nos surpresas. Em Lamego, encontramos hoje, em plena atividade, o Teatro Ribeiro Conceição. A fachada, datada de 1727, de certo modo não identifica a função de espetáculo e a salvaguarda da arquitetura interna inerente. E no entanto, o Teatro em si mesmo conserva a traça, a estrutura e o ambiente das salas de espetáculo de inícios do século passado, designadamente nos camarotes.


Trata-se do edifício construído para albergar, na época, o Hospital da Misericórdia de Lamego. Aí se manteve até 1882, ano em que lá se instala o quartel de bombeiros. Mas por pouco tempo: em 1897 um incêndio atingiu o interior. O edifício encerra então, mantendo a ruína, durante décadas, no centro da cidade. E mais extraordinário ainda, a fachada original, apesar de todas estas ocorrências, conservou mais ou menos na sua traça original, marcando então como hoje o centro da cidade…


Até que em 1924, um benemérito local, Comendador José Ribeiro Conceição, adquire em hasta pública o edifício semi-arruinado para o transformar em sala de espetáculos. E assim temos em 1929 o Teatro Ribeiro  Conceição, com a estrutura e a fachada mais ou menos original, ainda marcadamente setecentista nas três ordens de janelas, de certo modo inesperadas num já então cine-teatro, no interior restaurado na funcionalidade que na época ainda marcava as salas de espetáculo,  no caso concreto, reforçada pela adaptação de  um edifício anexo.


Todo este conjunto é então inaugurado como teatro em 2 de fevereiro de 1929. Curiosamente, o interior, na escadaria de acesso à sala de espetáculos propriamente dita, manteve reminiscências decorativas que evocam a origem funcional do edifício. E, tal como noutro lado escrevi, “a fachada lateral merece também destaque, pois o conjunto de quatro portas em arcada de acesso elevado, servidas por escada nobre e encimadas por janelões correspondentes, também em arco, conferem uma linha arquitetónica, essa sim, mais adequada à vocação teatral, no duplo termo, do edifício”. (cfr. “De Volta aos Teatros”, ed. Livraria Civilização Editora 2008, pág. 67).


É interessante este critério de arquitetura de espetáculo, sobretudo se tivermos em conta a recuperação do palco e a aplicação de tecnologias de cena, digamos assim, que permitem uma maior rentabilização artística e de público. Renovaram-se por completo as áreas anexas e complementares ao espetáculo em si: palco tecnologicamente equipado, novos camarins, sala de ensaios, estúdio, zona de exposições autónoma e foyer.


Mas insista-se: a sala, em si mesma, mantém a estrutura, a arquitetura e a decoração originais, com plateia e duas ordens de camarotes, numa lotação total de cerca de 370 lugares. E sobretudo, mantém a atividade teatral-cultural, até hoje.


Resta acrescentar que Lamego tem uma tradição de arquitetura teatral pelo menos desde o século XIX, consagrada num Teatro Lamecense inaugurado em 1841, com plateia, camarotes, superior e geral, que ainda existia no princípio do século XX.


Mas mais do que isso: segundo Vergílio Correia, Lamego terá “um capítulo especial na história do movimento artístico português”. (in. “Artistas de Lamego” – Coimbra 1923).    


DUARTE IVO CRUZ

Obs: Reposição de texto publicado em 26.10.2016 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


90. FASCÍNIO NATALÍCIO


Vive-se o Natal pensando que pode dar um sentido à vida.  
Um aconchego de nós em nós e com os outros.
Um querer permanente convocando família, ausentes e presentes.  
Sempre em formação e por uma humanidade melhor.   
Aconchego, acolhimento, irmandade, solidariedade, paz.    
Dele ficou-nos um estímulo encantatório e nostálgico. 
Um impulso que vem da nossa meninice aos dias de hoje.   
Um incitamento a reviver um tempo mágico, num presente que nos envolve.
Um júbilo e um reviver da infância no entardecer da vida.   
Como uma madalena de Proust que o levava a reencontrar um saudoso tempo perdido. 


24.12.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

Iam os ventos muito grandes em demanda

Das coisas deste mundo e era dezembro

 

Apressem-se, apressem-se – ouvia-se

Tendes vós pouco tempo para o nascer encontrar

E só ele vos dará o favor do deus para os poemas

Favorecidos pelo sonho que sois

Mânticos e núbios à aproximação da luz

 

Diz o Ouvinte:

 

Concedo-vos argila e oleiro

Moldai a ideia nova e se faça ela tão perto

De tão perto e tão humana

Que não haja casa nem rua

 

Onde não penetre

 

E de onde

Se não invada

 

Mão.

 

Teresa Bracinha Vieira

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