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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR


O livro Play Time: Jacques Tati and Comedic Modernism.


Em Play Time: Jacques Tati and Comedic Modernism, Malcolm Turvey (New York: Columbia Press University, 2019) examina o estilo cómico único dos filmes de Jacques Tati (1907-1982) e avalia a sua importância para a história do cinema e para a história do modernismo. Turvey considera os filmes Jour de Fête (1949), Les Vacances de Monsieur Hulot (1953), Mon Oncle (1958), PlayTime (1967), Trafic (1971) e Parade (1974) e mostra como Tati aproveitou o legado do cinema mudo cómico para encorajar os espectadores a adotar uma atitude lúdica em relação ao mundo que os rodeia.


Turvey analisa a estrutura das piadas tão bem-sucedidas de Tati, que combinam uma estética modernista e as tradições estabelecidas na comédia cinematográfica convencional. Turvey também examina a visão irónica de Tati acerca da burguesia e a sua sátira, complexa e multifacetada, em relação à vida moderna. (https://www.barnesandnoble.com/w/play-time-malcolm-turvey/1131376465)


O Autor
Malcolm Turvey (1969) é Diretor do Programa de Estudos de Cinema e Media desde a fundação da Tufts University, em 2015. Desde 2001, é editor da revista October e trabalha principalmente nas áreas de teoria e filosofia do cinema, cinema de vanguarda e na relação do cinema e o modernismo. Além de ter escrito o livro Play Time: Jacques Tati and Comedic Modernism tem publicados também Doubting Vision: Film and the Revelationist Tradition (Oxford University Press, 2008) e The Filming of Modern Life: European Avant-Garde Film of the 1920s (MIT Press, 2011). Neste último livro Turvey já mostrava um interesse, que se prolonga também no livro Playtime, em relação às primeiras vanguardas e ao cinema feito durante essa época, examinando as complexas e às vezes contraditórias, atitudes em relação à modernidade que estes expressavam. Pintores como Hans Richter e Fernand Léger, bem como cineastas pertencentes ao Dada e ao surrealismo, fizeram, a seu ver, alguns dos filmes mais duradouros e fascinantes da história do cinema.


É importante sublinhar que Turvey trabalha sempre no sentido de defender um entendimento humanístico e não racional do cinema, da arte e da ciência. Turvey argumenta que são apenas as metodologias humanísticas que podem responder a certos tipos de questões sobre as artes.


As primeiras vanguardas do século XX
É singular a perspetiva de Turvey, no livro Play Time: Jacques Tati and Comedic Modernism, ao relacionar a emergência das primeiras vanguardas do século XX com o trabalho de Jacques Tati. É preciso não esquecer que estas vanguardas acreditavam acima de tudo na arte como forma primeira de escapar ao materialismo e utilitarismo burguês e o humor muito contribuía para isso. Também os vanguardistas ansiavam desenvolver um conhecimento profundo em relação ao ser humano como um todo (corpo, alma e espírito).


Em 2017, no artigo «Comedy and the Avant-Garde: An Introduction» (October Spring 2017), Malcolm Turvey explorava algumas das muitas maneiras de como a comédia informou a teoria das vanguardas praticadas a partir dos anos 20 do século XX até ao presente. Turvey já aqui explicava que, a importância da comédia é raramente mencionada na emergência do modernismo e que só as suas manifestações pessimistas parecem ter valor. Este ensaio de Turvey tenta mostrar então que os vanguardistas, na verdade, utilizavam muito o humor no seu trabalho, deixando-se influenciar por técnicas da banda desenhada e por arquétipos da cultura popular.


No livro Play Time: Jacques Tati and Comedic Modernism, Malcolm Turvey examina este assunto de forma muito consistente, ao propor que os filmes de Tati sejam considerados uma forma de ‘modernismo cómico’. Existe o costume de referir as vanguardas modernistas sempre na sua dedicação à experimentação, à crítica e à procura por aquilo que salva e pelo constantemente novo e raramente em relação à utilização do humor, como uma poderosa forma de expressão. Turvey acredita que Tati tem uma intenção mais ampla do que somente apresentar-se fiel ao movimento moderno. Em sua opinião, Tati decidiu sim modernizar a tradição dominante e convencional da comédia centrada no comediante, através de uma atenção, sem precedentes, dedicada à construção de uma comédia democrática, que se espalha por todo o universo circundante, construído e espacial, e que está povoada por outras personagens também importantes e cómicas e que não são Hulot.


“The narrative and stylistic innovations of cinematic modernist (...) occur (...) in response to ‘the disconnection of human actions form traditional routines or patterns of human relationships... what is commonly referred to as modern ‘alienation’. (...) Tati's updating of comedian comedy certainly was motivated by his belief that people in the modern world are increasingly alienated and his hope that his films could at least in part overcome, or provide respite from, this alienation. His comic style was very much a response to the rapid modernization he witnessed occurring in France after the war and the social conditions modernization gave rise to, particularly what he viewed as increasing passivity of modern people.” (Turvey 2019, 11)


A comédia de facto serviu de base para os teóricos da vanguarda e Turvey no seu livro deixa isto bem claro. É conhecida, por exemplo, a influência dos Salões dos Humoristas, realizados em Lisboa, na construção do modernismo português. José-Augusto França explica em História da Arte em Portugal. O Modernismo. (Editorial Presença 2004), que nestes salões estrearam-se muitos nomes do próximo futuro da nova arte nacional, tais como: Cristiano Cruz, Almada Negreiros, Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, Canto da Maia, Mily Possoz, Eduardo Viana e Bernardo Marques. (França 2004, 14-15)


Sendo assim o livro em muito clarifica como Jacques Tati vê a vida das cidades e a arquitetura do pós-guerra. Aqui aprende-se que os vanguardistas do início do século XX se refugiavam no humor para resgatar humanidade em todas as manifestações artísticas. Por isso, também a arquitetura se humaniza quando é cómica, isto é, quando é invadida por situações inesperadas, pelo erro, pelo acaso e sempre que não é perfeita, imaculada, completa e estruturadamente encenada. Tati é um vanguardista que pretende introduzir o quotidiano na prática da arte, dentro da ideia de que, subvertendo, revolucionando e acrescentando algo cómico, ao diário e ao banal, se descobrirá a vida real.

Ana Ruepp