CRÓNICA DA CULTURA
Lídia Jorge. A compreensão reside na continuada interpretação.
Acedo à amizade que partilho com Lídia numa substancial eternidade do dito e do que fica por dizer, quando sabemos de cor como disseminamos silêncios viventes, troianos, pontuais, numa arte de hermenêutica de ilimitada abordagem.
Em 1981 quando li O Dia dos Prodígios percecionei o quanto a Lídia poderia fazer dos livros sobre os livros; o quanto esta magnifica escritora poderia vir a ser considerada como aquela que age nas palavras num todo significante raramente encontrado.
E aguardei.
Aguardei para ler outro e outro livro da Lídia Jorge, num contexto de paz entre o significado e a compreensão. Numa circunstância de corpo-receção, de ouvido cumulativo à mão cheia de mundo, pois que a obra não era, nem nunca fora, nem é efémera ou vulgar.
Sim Lídia, hoje entendo a promessa que fazemos à felicidade e a outros núcleos de histórias íntimas, e tudo de tal forma força que, de facto, só é menor a violência exterior das mulheres na forma de exercer o poder, tal como afirmas na entrevista de maio deste ano à revista Ler. Todavia, atamos realmente as relações de um jeito muito perverso, remetendo, quantas vezes, para o lado masculino, o vencer a todo o preço.
Querida Lídia, eu também digo muitas vezes o quanto somos muito próximos nos comportamentos de outros que julgamos não assumir e o quanto somos muito distantes daqueles que não vendem a alma por um punhado de palavras.
Acresce mesmo dizer, e a propósito da minha leitura do teu livro A Noite das Mulheres Cantoras, que me falta a tolerância à ganga ética dos tristes que de si se enamoram e cegam, numa mão cheia de incongruências.
Afinal como não sabermos andar cinco centímetros acima do chão?
Acima do chão para amar, suspender, espantar, seduzir, ouvir, rever, herdar, inovar, pintar, recusar, numa experiência pessoal que é processo de mosaico?
A Ilíada e a Odisseia têm-me acompanhado toda a vida. Fausto é para mim uma questão de fúria e até Nadime Gordimer me prova o quanto é cerco a história de cada um dos seus livros. Contudo, queridíssima Amiga Lídia Jorge, bem sei que sabes que a filologia é um somatório de amor e logos, mas sem amálgama alguma, é sim, a escultura da palavra, a figuração explicativa de significados que de modo tão exclusivo sabes concretizar.
Maestrina ao longo da tua obra exprimes o sentido fonte como um espelho que olha para outro espelho, trocando luz. Assim O Cais das Merendas; assim e numa variedade responsiva o Combateremos a Sombra, livro de encontro e colisão entre a consciência e a forma significante, livro só teu enquanto escritora.
Deixa que diga ainda o quanto O Belo Adormecido englobando os contos do desejo, ou de um desejo, tem a morosidade bastante à revelação da natureza do ser enquanto pessoas afinadas ou não pela música que nos possui. Ingrediente da própria intriga do ser? Não o interpretei assim, mas antes um ser sobre as nossas paixões, nunca demasiadamente enigmáticas, e, no entanto, plenas de concatenações de antenas estritamente privadas e que, por vezes, até escapam ao nosso entendimento.
Diria que aqui e além o teu romance, O Grande Gatão é uma história tão plena das aventuras pelas noites de luar quanto o é, de muitas formas, o empenho da mulher insubmissa que reside pelo livro A Maçon.
Registei e registo que nos Invernos em que se digladiou para a libertação, uma mulher, face a um marido que a queria na dimensão do bico do seu lápis, vem a ter ela personagem no teu livro O Marido e Outros Contos.
Toda esta escrita, tua escrita, querida Lídia é de uma extraordinária limpidez e inquietação seminal.
Repetirei que tem a escrita de Lídia Jorge o privilégio de exigir a sua leitura de lápis na mão, e o privilégio de gerar réplica no leitor. Fazê-lo pensar também como a mãe das Musas.
No meu interpretar, a obra de Lídia Jorge é uma experiência que modifica a consciência.
É amiúde uma escrita inesperada e no campo estético, poderosa, possuidora de voz, humor, desígnios, aflições, consolos e tão aguarela de Cézanne que a paisagem das nossas perceções tem a frescura das tempestades após a calmaria.
A maturidade desta escrita implica que a compreensão resida na continuada interpretação, e nos alerte sempre que afinal o regresso a casa, só é regresso a uma casa como a vida.
Teresa Bracinha Vieira
Obs. Reposição de texto publicado em 2011.