A VIDA DOS LIVROS
De 20 a 26 de dezembro de 2021
«O Marechal William Carr Beresford», da autoria de Marcus de la Poer Beresford (Tribuna da História, 2021), merece uma especial atenção, uma vez que relata a biografia de quem teve um papel ativo aquando da resistência portuguesa na Guerras napoleónicas.
UMA BIOGRAFIA IMPORTANTE
A leitura de biografias, quando se trata de personalidades marcantes, traz-nos muitas surpresas, sobretudo quando se revelam facetas surpreendentes com repercussões políticas e históricas. Refiro-me à tradição anglo-saxónica que, bem praticada, nos permite conhecer não apenas a vida e o percurso de quem é biografado, mas também o contexto em que a ação se desenvolve. O caso da obra O Marechal William Carr Beresford, biografia escrita por Marcus de la Poer Beresford (Tribuna da História, 2021), merece uma especial atenção, uma vez que se trata de um estudo bem fundamentado, sobre uma figura controversa com intervenção ativa na História política portuguesa, cujo melhor conhecimento da personalidade e da vida permite esclarecer alguns acontecimentos importantes, num período complexo, como é o das invasões napoleónicas. Estamos num momento pleno de fatores contraditórios e paradoxais. O Marechal Beresford foi um influente militar irlandês, condecorado pelos governos de Portugal, da Grã-Bretanha e de Espanha, que exerceu as funções de comandante supremo do Exército Português durante 11 anos, grande parte dos quais durante a Guerra Peninsular. Sobre ele, Arthur Wellesley, duque de Wellington, futuro primeiro-ministro britânico (1769-1852), com intervenção muito ativa no comando das mais importantes operações militares em Portugal durante as invasões francesas (1808-1812), afirmou que William Beresford, seu segundo-comandante, foi «o homem mais competente que eu já vi no Exército». A biografia de Marcus Beresford dá-nos conta de uma longa e profícua carreira militar. Filho natural do primeiro marquês de Waterford, Beresford alistou-se no Exército Britânico em 1785, tendo servido no Mediterrâneo, no Egito, na África do Sul e no Rio da Prata, chegando a Portugal em 1807-1808 ao arquipélago da Madeira, com a missão de garantir a defesa avançada do continente português, a fim de manter a sua independência, aquando da partida da corte para o Brasil e da resistência à primeira invasão francesa sob o comando de Junot. Assiste, porém, à assinatura da Convenção de Sintra (1808) que, no seu entendimento, se traduz num acordo leonino, em que Portugal sofre uma autêntica humilhação, tal a dimensão das concessões impostas pela França para a retirada do governo de Jean Andoche Junot (1771-1813). Após uma campanha vitoriosa no Norte do País sob o seu comando militar, Beresford é incumbido formalmente da reorganização do Exército português, que estava depauperado e sem uma estrutura capaz de responder positivamente às ofensivas de Napoleão, cujo exército tinha significativa superioridade estratégica e militar.
UMA REESTRUTURAÇÃO MILITAR
Desde a reforma do Conde de Lippe, no período pombalino, não havia medidas sistemáticas de reestruturação militar que permitissem adotar um sistema baseado numas forças armadas modernas e eficazes. Foi a campanha do Verão de 1809 que iniciou os preparativos para uma defesa efetiva do território português, numa verdadeira guerra de libertação nacional. Esta concentração de esforços foi uma exigência objetiva, fruto das dificuldades no relacionamento operacional de Wellington com as forças espanholas, o que determinou a integração das novas unidades militares portuguesas ao lado das forças britânicas veteranas, para os seus difíceis combates contra o exército napoleónico. Passou assim a haver condições para uma melhor cooperação anglo-lusa, podendo dizer-se que nasceu então um verdadeiro novo Exército português, em 1809-1810. Importa explicar que o regime de incorporação militar neste período foi o da mobilização geral perante uma ameaça estrangeira, diferente do serviço militar obrigatório ou conscrição e do antigo sistema mercenário, que tinha permitido a Gomes Freire de Andrade e a outros oficiais portugueses, como o primeiro Marquês de Loulé, alistarem-se em diversos exércitos europeus, incluindo na Legião Portuguesa, que foi até á Rússia, sob o comando de Bonaparte. William Beresford vai, nesta reforma do Exército, assegurar um reforço importante da disciplina, impedindo movimentos de abandono das fileiras militares ou a proliferação de refratários. Esta reorganização, seriamente disciplinada, revelar-se-á fundamental para o estabelecimento de uma cadeia de comando eficaz. As apreciações insuspeitas de diversos intervenientes nas guerras peninsulares sobre a boa prestação dos oficiais e regimentos portugueses, designadamente no Buçaco e na preparação em 1813 da invasão de França são, aliás, muito positivas, quer pela qualidade do comando quer pelos efeitos da formação ministrada. A qualidade do Exército, bem como as soluções técnicas nas Linhas de Torres Vedras funcionaram como poderoso meio de defesa que levou o Marechal André Massena e o seu exército a retirar do território português.
A COEXISTÊNCIA DE PARADOXOS
A complexidade da situação Peninsular determina, porém, relativamente a Beresford, uma apreciação paradoxal, referida pelo biógrafo desta obra. Com efeito, a reforma levada a cabo permitirá a criação de um Exército português organizado, que irá constituir um fator importante para a afirmação do novo regime constitucional depois de 1820 e sobretudo de 1834, com a Convenção de Évora Monte e a vitória liberal. Isto, para além da simpatia dos liberais portugueses que tinham estado emigrados em Inglaterra pela experiência parlamentar britânica. Merece, aliás, referência neste ponto o estudo de António Alves-Caetano sobre «Os Socorros Pecuniários Britânicos destinados ao Exército Português (1809-1814) – Subsídios para a História da Guerra de Libertação Nacional» (2013), no qual fica demonstrada a importância do contributo militar britânico para a preservação da independência nacional, até à expulsão das tropas francesas. Por outro lado, não pode esquecer-se a ação de um dos principais protagonistas da Revolução Liberal de 1820, Manuel Fernandes Tomás, o patriarca da liberdade, como encarregado dos abastecimentos das tropas britânicas (entre 1808 e 1811), que desembarcavam junto à foz do Mondego, na sua vila natal, sob o comando de Arthur Wellesley, como salienta José Luís Cardoso na importante publicação dos escritos políticos do prócere constitucionalista. Se dúvidas ainda houvesse, cabe referir, depois dos dramáticos acontecimentos que contribuíram para a Guerra Civil entre liberais e absolutistas e afastados os ecos do Congresso de Viena e a influência da Santa Aliança, a emergência da Monarquia francesa de julho de 1830 e a chegada dos Whigs (de Charles Grey) ao governo britânico ajudariam a criar um ambiente europeu favorável à vitória liberal de D. Pedro, depois da saída do governo de Wellington. Nunca a História política pode ter explicações unilaterais ou simplistas. Importa sempre entender a complexidade e os eventuais paradoxos, donde resultam as consequências fundamentais da evolução social, económica, política e cultural.
Guilherme d’Oliveira Martins
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