O TEMPO TODO INTEIRO
Na proximidade da Estação Fluvial de Belém, deparamo-nos com o belo memorial que homenageia Sophia de Mello Breyner e Menez – Espaço entre a Palavra e a Cor, Sophia / Menez. Perante a obra de azulejos, compreendemos que se trata de um encontro singular em que a sensibilidade artística de dois nomes maiores da cultura contemporânea se completam naturalmente. Como lembra Maria Andresen, citando Arte Poética I: “Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar”. E assim se cruzam cidade, rio e mar, na praia donde partiram as “Navegações”. Se a pandemia impediu a justa cerimónia de inauguração do memorial no centenário de Sophia, a verdade é que ficámos com uma bela referência da poesia e da pintura, na luminosidade dos azulejos, que projetam o “luzir de azul e rio”, na cidade “oscilando como uma grande barca”. A leveza do monumento no traço e na cor é um apelo à leitura e à releitura de uma obra que sempre se renova.
Neste tempo natalício em que se lembram boas leituras, contamos com o volume Prosa (Assírio e Alvim) de Sophia de Mello Breyner Andresen, com organização e prefácio de Carlos Mendes de Sousa e posfácio de Maria Andresen de Sousa Tavares. Trata-se de um precioso repositório da autora, abrangendo Contos Exemplares, Histórias da Terra e do Mar e O Nu na Antiguidade Clássica, bem como os célebres A Menina do Mar, A Fada Oriana, O Cavaleiro da Dinamarca ou O Rapaz de Bronze. São textos memoráveis bem presentes na memória de várias gerações. E o autor do prefácio inicia a apresentação, recordando o fabuloso primeiro encontro de Sophia com Teixeira de Pascoaes, misto de enigma e de sonho. No termo de uma viagem de Amarante até ao Solar de S. João de Gatão, sozinha a cavalo, Sophia ter-se-ia perdido entre nevoeiros “nos campos, caminhos e atalhos”. Finalmente, a casa apareceu-lhe “grande, antiga, maravilhosa e branca”. Chegou ao destino pelo lado detrás e recorda-se do que o poeta lhe disse: “Por este caminho nunca tinha chegado ninguém”. E a casa é uma aparição, como a chegada de Sophia também o é. “Paisagem e poema tornam-se indistintos: tudo naquele lugar era igual à poesia de Pascoaes: era como se eu avançasse através de um poema de Pascoaes”. É o fascínio da poesia através da prosa. É o culto misterioso do sentido poético, como invocação lendária. O mesmo se passaria com Ruy Cinatti, “guru”, “arauto de todas as modernidades”, numa lembrança de juventude, em retrato “para sempre associado aos fins de tarde de uma primavera antiga, quando foi visto, “caminhando em equilíbrio sobre a beira do tanque”, a proclamar “ao sol e à brisa poemas de Ezra Pound”. Tem, assim razão Carlos Mendes de Sousa ao dizer que “toda a prosa de Sophia está profundamente impregnada por uma essencial matriz poética”. Basta lermos os seus textos (até os de pendor cívico e político) para verificar o reconhecimento da absoluta “unidade entre a poesia e a vida”. Como afirmará na revista da Gulbenkian, Colóquio, em 1960, de modo lapidar: “a Poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade inteira”.
E em Vila d’Arcos surgem os “jardins onde reconhecemos que a vida é um sonho do qual jamais acordamos, um sonho onde irrompem aparições prodigiosas como o lírio, a águia e o inesquecível rosto amado com paixão, mas onde tudo se transforma em esquecimento, distância, impossibilidade e detrito. Jardins onde reconhecemos que a nossa condição é não saber…”. Os exemplos são múltiplos e tocam-nos especialmente, como em O Jantar do Bispo, no momento em que tudo se desvanece por encanto depois da revelação de um negócio em que o telhado de uma igreja fora trocado pela dignidade do abade de Varzim. E cada palavra representa um sinal de justiça.
GOM