FOTÓGRAFO DE PALAVRAS…
Ao percorrer as fotografias de Manoel de Oliveira, que vieram de Serralves até à Gulbenkian, lembrei-me de João Bénard da Costa, sempre saudoso amigo, e tive desejo de o reencontrar ali para podermos lentamente, perante cada uma daquelas imagens discorrer livremente sobre os mistérios da criação e da arte. Por momentos, ele ficou ali, em espírito, bem presente. E tive a boa ilusão de que se nos juntava o cineasta e fotógrafo. E recordámos “Douro, Faina Fluvial”, vinte minutos geniais, de 1931, com fotografia de António Mendes, que se torna obrigatório ver e rever. Luigi Pirandello, que assistiu à estreia, a convite de António Ferro, não teve dúvidas em reconhecer logo, contra alguns espectadores distraídos, a genialidade do autor e das imagens.
A imaginação flui, ao assistirmos à meticulosa colocação das fotografias nos seus sítios. Sentimos um verdadeiro prazer no encontro da poesia de cada uma daquelas imagens – como as da jovem noiva do artista, Maria Isabel, a olhar a câmara ou junto da serenidade das águas. E vem à mente a frase que Agustina e Oliveira fizeram dizer a Francisca-Fanny Owen: “a alma é um vício”. João Bénard logo acrescentava que o cinema também o é, do mesmo modo que a fotografia. Na criteriosa escolha desta mostra, isso vê-se muito bem. Ruy Belo, no poema que escreveu a propósito da morte de Marilyn Monroe, demonstrou o sentido e alcance poético da ligação entre alma e vício, no sentido em que o belo é tão difícil de captar que obriga a procurar entender o que está para além do que se vê ou do que parece perceber-se.
Passo a passo, vemos na escolha de António Preto, a partir de um acervo de milhares de fotografias, que é mesmo esse vício de alma que encontramos na aparente normalidade das imagens – família, férias, filmagens, ideias em estado puro. A casa refletida no farol do automóvel alimenta o sonho. E, não por acaso, anuncia-se para breve na Casa do Cinema Manoel de Oliveira uma mostra sobre as relações artísticas do cineasta com Agustina Bessa-Luís. São a literatura e a imagem, a memória e a vida, a arte e a técnica que se encontram. E Manoel de Oliveira é uma figura de fascínio, que cultivou pela imagem a busca do fundo do espírito e da alma. Neste período fecundo do inesperado fotógrafo estão os catorze anos em que esteve sem filmar, desde “Aniki-Bobó”(1942) até “O Pintor e a Cidade” (1956). E as imagens fixam o que ficou por realizar, como o documentário sobre o Aero Club do Porto ou “O Saltimbanco”. Quantos espíritos por aqui circulam, quantos caminhos diferentes se abrem…
Em 1952, o artista é chamado a fazer a fotografia de uma jovem que acaba de morrer. Daqui sairá o argumento, que leva ao filme “O Estranho Caso de Angélica” (2010), que marca o registo onírico que o cineasta gostava de cultivar. Imanência a reclamar a transcendência. Isaac, fotógrafo sefardita, que está numa modesta pensão de Peso da Régua para testemunhar em imagens a faina agrícola da vinha no Douro, é chamado inesperadamente, numa noite que se revelaria funesta, a fazer o retrato da jovem de uma família influente. O tema ilustra a metáfora que liga a fotografia, o cinema, a alma, a morte e a vida, evidentes no fugaz sorriso de Angélica, a belíssima jovem, que consumirá Isaac. A descoberta de Manoel de Oliveira fotógrafo, nesta extraordinária reunião de imagens, continuará a constituir uma surpresa, mesmo para quantos já conheciam esta faceta do seu talento. É um reencontro mágico, a que não podemos ficar indiferentes, que abre novos caminhos e que, encantatório, permitirá continuar a ver com olhos de ver o modo como um homem da imagem nos permite entender melhor a vida das palavras.
Guilherme d'Oliveira Martins