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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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HERBERT HAAG: 20 ANOS DEPOIS

 

O meu querido amigo Herbert Haag, talvez o maior exegeta católico do século XX, morreu fez este ano 20 anos: “partiu” no dia 23 de Agosto de 2001. Era realmente um dos maiores especialistas em ciências bíblicas, até porque dominava, para lá do latim e do grego, o hebraico, o aramaico, o ugarítico, o árabe...


O mistério da morte é que se parte sem deixar endereço. Ele acreditou, e eu com ele, que na morte não cairia no nada; pelo contrário, entraria em plenitude no mistério da infinita misericórdia de Deus, o Deus bom e amável, que Jesus anunciou por palavras e obras. Mas como é ninguém sabe. A morte é o mistério pura e semplesmente. O Absoluto tem duas faces: precisamente a morte e Deus.


Ficou a obra (Liberdade aos cristãos e A Igreja católica ainda tem futuro? estão traduzidos em português), a amizade, a saudade. Saudade, essa palavra que só a língua portuguesa tem e que, se tiver a sua raiz no latim salutem dare, donde vem também saudar, exprime o desejo de que, esteja onde estiver, esteja bem. Se a  ligação for com solitate, então exprime a tristeza de quem está só porque o amigo já não está e faz-nos falta.


Quando nos encontrávamos, íamos almoçar. E Herbert Haag, professor emérito da Universidade de Tubinga, encomendava sempre um vinho francês ou italiano excelente. E a conversa desdobrava-se para longe e na profundidade. Recordo todos esses diálogos iluminantes para mim. Aí fica algo do muito que lhe ouvi: "De certeza que Jesus não queria que um homem só governasse do ponto de vista religioso mais de mil milhões de pessoas. De certeza que também não queria que as mulheres fossem discriminadas. Jesus queria uma Igreja de discípulas e discípulos, uma Igreja fraterna e não uma Igreja com duas classes: clero e leigos." "Contra a vontade de Jesus, embora os leigos representem mais de 99% da Igreja e o clero menos de 1%, é o clero que tem tudo a dizer." "Durante trezentos anos aquilo que alegadamente só um sacerdote ordenado pode fazer, concretamente presidir à Eucaristia, foi feito por leigos, nomeadamente pelo dono ou a dona da casa onde os cristãos se reuniam para celebrar a Ceia do Senhor. Assim, porque é que o que então foi possível não há-de sê-lo também hoje?" "A lei do celibato imposto aos padres como obrigatório é contra a vontade de Jesus e tem provocado numerosos escândalos sexuais." "Hoje sabemos que o Homem apareceu por evolução. Portanto, também não houve nenhum pecado original que seria apagado pelo baptismo." "O bem e o mal pertencem à constituição desta criação. O mal moral vem do coração humano, e é preciso combater o mal com o bem." "Segundo a Bíblia, não se pode afirmar a existência do diabo. Já é tempo de acabar com os exorcismos, que são uma relíquia da Idade Média." "No 'Cântico dos Cânticos'  bíblico exalta-se o amor sexual de dois não casados." "O que está no Novo Testamento é que nos confessemos uns aos outros." "Se a sexualidade é um direito humano, então, quando um ser humano só pode viver a sua sexualidade de maneira homossexual, isso deverá ser-lhe permitido." "A presença de Jesus na Eucaristia não pode ser concebida de modo coisista. Não se legitima, pois, a adoração ao Santíssimo." "O problema na Igreja é que o padre tem medo do bispo, o bispo tem medo do papa, o papa tem medo da verdade." "A imagem de Deus no homem é a liberdade". "O Reino de Deus é já aqui." Sobre a divindade de Jesus dizia: "Jesus não é o Deus (hò Theós). Em Jesus está Deus. Deus identifica-se de modo especial com Jesus." Sobre a relação corpo e espírito, ouvi-o dizer: "Na evolução, o corpo humano desenvolve-se até ser possível ter possibilidades espirituais."


Um amigo pediu-me para lhe perguntar se acreditava na vida eterna. Ele respondeu-me: "Diga a esse amigo que sim. Na morte não cairei no nada, pois acredito que serei acolhido pessoalmente no mistério de Deus. Qual é o modo como isso acontecerá não sei. Ninguém sabe."


Como dou notícia no meu mais recente livro, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?, um dos meus encontros com ele foi numa Sexta-Feira Santa em sua casa, em Lucerna. Conversámos longamente sobre Jesus, a Sua história, os Seus desígnios, a Sua missão, o Seu Evangelho, a Sua morte e ressurreição, a Sua Igreja. Até foi nesse encontro que ele me pediu para ir buscar o Evangelho segundo São João em grego e ler aquele passo: “Àqueles e àquelas a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados”, e reparei então que Jesus não disse isso aos Apóstolos, mas aos discípulos (oì mathetai). Conversámos enquanto partilhávamos uma refeição ao anoitecer, uma refeição com pão, queijo e bom vinho. Já noite dentro, à saída para o hotel, perguntei-lhe em afirmação: “Professor, foi uma Eucaristia.” E ele, serenamente: “Claro que foi.”


Perto de morrer — contou-me o teólogo Hans Küng, que faleceu neste ano de 2021, como aqui referi em várias crónicas —, mandou chamar precisamente o seu amigo Küng — tinham sido colegas na Universidade  de Tubinga —, confessou-se, comungou e rezaram a ladainha da boa morte.


Em Janeiro do ano 2000, o seu bispo, o bispo de Basileia, retirou-lhe a confiança. Mas no testamento ficou escrito: "Morro como filho da Igreja Católica, à qual me liga uma dívida de gratidão sem limites, mas na qual também tive muito sofrimento."


Se mais alguma vez for a Lucerna na Suiça, já não irei bater à porta do número 26 da Haldenstrasse. O meu amigo teólogo Herbert Haag já lá não mora. Mas creio firmemente que havemos de reencontrar-nos. 

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de dezembro de 2021

O TEMPO TODO INTEIRO

 

Na proximidade da Estação Fluvial de Belém, deparamo-nos com o belo memorial que homenageia Sophia de Mello Breyner e Menez – Espaço entre a Palavra e a Cor, Sophia / Menez. Perante a obra de azulejos, compreendemos que se trata de um encontro singular em que a sensibilidade artística de dois nomes maiores da cultura contemporânea se completam naturalmente. Como lembra Maria Andresen, citando Arte Poética I: “Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar”. E assim se cruzam cidade, rio e mar, na praia donde partiram as “Navegações”. Se a pandemia impediu a justa cerimónia de inauguração do memorial no centenário de Sophia, a verdade é que ficámos com uma bela referência da poesia e da pintura, na luminosidade dos azulejos, que projetam o “luzir de azul e rio”, na cidade “oscilando como uma grande barca”. A leveza do monumento no traço e na cor é um apelo à leitura e à releitura de uma obra que sempre se renova.


Neste tempo natalício em que se lembram boas leituras, contamos com o volume Prosa (Assírio e Alvim) de Sophia de Mello Breyner Andresen, com organização e prefácio de Carlos Mendes de Sousa e posfácio de Maria Andresen de Sousa Tavares. Trata-se de um precioso repositório da autora, abrangendo Contos Exemplares, Histórias da Terra e do Mar e O Nu na Antiguidade Clássica, bem como os célebres A Menina do Mar, A Fada Oriana, O Cavaleiro da Dinamarca ou O Rapaz de Bronze. São textos memoráveis bem presentes na memória de várias gerações. E o autor do prefácio inicia a apresentação, recordando o fabuloso primeiro encontro de Sophia com Teixeira de Pascoaes, misto de enigma e de sonho. No termo de uma viagem de Amarante até ao Solar de S. João de Gatão, sozinha a cavalo, Sophia ter-se-ia perdido entre nevoeiros “nos campos, caminhos e atalhos”. Finalmente, a casa apareceu-lhe “grande, antiga, maravilhosa e branca”. Chegou ao destino pelo lado detrás e recorda-se do que o poeta lhe disse: “Por este caminho nunca tinha chegado ninguém”. E a casa é uma aparição, como a chegada de Sophia também o é. “Paisagem e poema tornam-se indistintos: tudo naquele lugar era igual à poesia de Pascoaes: era como se eu avançasse através de um poema de Pascoaes”. É o fascínio da poesia através da prosa. É o culto misterioso do sentido poético, como invocação lendária. O mesmo se passaria com Ruy Cinatti, “guru”, “arauto de todas as modernidades”, numa lembrança de juventude, em retrato “para sempre associado aos fins de tarde de uma primavera antiga, quando foi visto, “caminhando em equilíbrio sobre a beira do tanque”, a proclamar “ao sol e à brisa poemas de Ezra Pound”. Tem, assim razão Carlos Mendes de Sousa ao dizer que “toda a prosa de Sophia está profundamente impregnada por uma essencial matriz poética”. Basta lermos os seus textos (até os de pendor cívico e político) para verificar o reconhecimento da absoluta “unidade entre a poesia e a vida”. Como afirmará na revista da Gulbenkian, Colóquio, em 1960, de modo lapidar: “a Poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade inteira”.


E em Vila d’Arcos surgem os “jardins onde reconhecemos que a vida é um sonho do qual jamais acordamos, um sonho onde irrompem aparições prodigiosas como o lírio, a águia e o inesquecível rosto amado com paixão, mas onde tudo se transforma em esquecimento, distância, impossibilidade e detrito. Jardins onde reconhecemos que a nossa condição é não saber…”. Os exemplos são múltiplos e tocam-nos especialmente, como em O Jantar do Bispo, no momento em que tudo se desvanece por encanto depois da revelação de um negócio em que o telhado de uma igreja fora trocado pela dignidade do abade de Varzim. E cada palavra representa um sinal de justiça.

GOM

A VIDA DOS LIVROS

De 20 a 26 de dezembro de 2021


«O Marechal William Carr Beresford»
, da autoria de Marcus de la Poer Beresford (Tribuna da História, 2021), merece uma especial atenção, uma vez que relata a biografia de quem teve um papel ativo aquando da resistência portuguesa na Guerras napoleónicas.

 


UMA BIOGRAFIA IMPORTANTE
A leitura de biografias, quando se trata de personalidades marcantes, traz-nos muitas surpresas, sobretudo quando se revelam facetas surpreendentes com repercussões políticas e históricas. Refiro-me à tradição anglo-saxónica que, bem praticada, nos permite conhecer não apenas a vida e o percurso de quem é biografado, mas também o contexto em que a ação se desenvolve. O caso da obra O Marechal William Carr Beresford, biografia escrita por Marcus de la Poer Beresford (Tribuna da História, 2021), merece uma especial atenção, uma vez que se trata de um estudo bem fundamentado, sobre uma figura controversa com intervenção ativa na História política portuguesa, cujo melhor conhecimento da personalidade e da vida permite esclarecer alguns acontecimentos importantes, num período complexo, como é o das invasões napoleónicas. Estamos num momento pleno de fatores contraditórios e paradoxais. O Marechal Beresford foi um influente militar irlandês, condecorado pelos governos de Portugal, da Grã-Bretanha e de Espanha, que exerceu as funções de comandante supremo do Exército Português durante 11 anos, grande parte dos quais durante a Guerra Peninsular. Sobre ele, Arthur Wellesley, duque de Wellington, futuro primeiro-ministro britânico (1769-1852), com intervenção muito ativa no comando das mais importantes operações militares em Portugal durante as invasões francesas (1808-1812), afirmou que William Beresford, seu segundo-comandante, foi «o homem mais competente que eu já vi no Exército». A biografia de Marcus Beresford dá-nos conta de uma longa e profícua carreira militar. Filho natural do primeiro marquês de Waterford, Beresford alistou-se no Exército Britânico em 1785, tendo servido no Mediterrâneo, no Egito, na África do Sul e no Rio da Prata, chegando a Portugal em 1807-1808 ao arquipélago da Madeira, com a missão de garantir a defesa avançada do continente português, a fim de manter a sua independência, aquando da partida da corte para o Brasil e da resistência à primeira invasão francesa sob o comando de Junot. Assiste, porém, à assinatura da Convenção de Sintra (1808) que, no seu entendimento, se traduz num acordo leonino, em que Portugal sofre uma autêntica humilhação, tal a dimensão das concessões impostas pela França para a retirada do governo de Jean Andoche Junot (1771-1813). Após uma campanha vitoriosa no Norte do País sob o seu comando militar, Beresford é incumbido formalmente da reorganização do Exército português, que estava depauperado e sem uma estrutura capaz de responder positivamente às ofensivas de Napoleão, cujo exército tinha significativa superioridade estratégica e militar.


UMA REESTRUTURAÇÃO MILITAR
Desde a reforma do Conde de Lippe, no período pombalino, não havia medidas sistemáticas de reestruturação militar que permitissem adotar um sistema baseado numas forças armadas modernas e eficazes. Foi a campanha do Verão de 1809 que iniciou os preparativos para uma defesa efetiva do território português, numa verdadeira guerra de libertação nacional. Esta concentração de esforços foi uma exigência objetiva, fruto das dificuldades no relacionamento operacional de Wellington com as forças espanholas, o que determinou a integração das novas unidades militares portuguesas ao lado das forças britânicas veteranas, para os seus difíceis combates contra o exército napoleónico. Passou assim a haver condições para uma melhor cooperação anglo-lusa, podendo dizer-se que nasceu então um verdadeiro novo Exército português, em 1809-1810. Importa explicar que o regime de incorporação militar neste período foi o da mobilização geral perante uma ameaça estrangeira, diferente do serviço militar obrigatório ou conscrição e do antigo sistema mercenário, que tinha permitido a Gomes Freire de Andrade e a outros oficiais portugueses, como o primeiro Marquês de Loulé, alistarem-se em diversos exércitos europeus, incluindo na Legião Portuguesa, que foi até á Rússia, sob o comando de Bonaparte. William Beresford vai, nesta reforma do Exército, assegurar um reforço importante da disciplina, impedindo movimentos de abandono das fileiras militares ou a proliferação de refratários. Esta reorganização, seriamente disciplinada, revelar-se-á fundamental para o estabelecimento de uma cadeia de comando eficaz. As apreciações insuspeitas de diversos intervenientes nas guerras peninsulares sobre a boa prestação dos oficiais e regimentos portugueses, designadamente no Buçaco e na preparação em 1813 da invasão de França são, aliás, muito positivas, quer pela qualidade do comando quer pelos efeitos da formação ministrada. A qualidade do Exército, bem como as soluções técnicas nas Linhas de Torres Vedras funcionaram como poderoso meio de defesa que levou o Marechal André Massena e o seu exército a retirar do território português.


A COEXISTÊNCIA DE PARADOXOS
A complexidade da situação Peninsular determina, porém, relativamente a Beresford, uma apreciação paradoxal, referida pelo biógrafo desta obra. Com efeito, a reforma levada a cabo permitirá a criação de um Exército português organizado, que irá constituir um fator importante para a afirmação do novo regime constitucional depois de 1820 e sobretudo de 1834, com a Convenção de Évora Monte e a vitória liberal. Isto, para além da simpatia dos liberais portugueses que tinham estado emigrados em Inglaterra pela experiência parlamentar britânica. Merece, aliás, referência neste ponto o estudo de António Alves-Caetano sobre «Os Socorros Pecuniários Britânicos destinados ao Exército Português (1809-1814) – Subsídios para a História da Guerra de Libertação Nacional» (2013), no qual fica demonstrada a importância do contributo militar britânico para a preservação da independência nacional, até à expulsão das tropas francesas. Por outro lado, não pode esquecer-se a ação de um dos principais protagonistas da Revolução Liberal de 1820, Manuel Fernandes Tomás, o patriarca da liberdade, como encarregado dos abastecimentos das tropas britânicas (entre 1808 e 1811), que desembarcavam junto à foz do Mondego, na sua vila natal, sob o comando de Arthur Wellesley, como salienta José Luís Cardoso na importante publicação dos escritos políticos do prócere constitucionalista. Se dúvidas ainda houvesse, cabe referir, depois dos dramáticos acontecimentos que contribuíram para a Guerra Civil entre liberais e absolutistas e afastados os ecos do Congresso de Viena e a influência da Santa Aliança, a emergência da Monarquia francesa de julho de 1830 e a chegada dos Whigs (de Charles Grey) ao governo britânico ajudariam a criar um ambiente europeu favorável à vitória liberal de D. Pedro, depois da saída do governo de Wellington. Nunca a História política pode ter explicações unilaterais ou simplistas. Importa sempre entender a complexidade e os eventuais paradoxos, donde resultam as consequências fundamentais da evolução social, económica, política e cultural.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

À CONVERSA COM FREI IVO…


Minha Princesa de mim,


Foram bons os dias que passámos em Paris, ainda bem que pudeste vir ter comigo e partilhar concertos, exposições, infindáveis conversas. Antes de regressar ao Japão, ainda dei um pulo ao Saulchoir, por me terem dito que poderia encontrar-me com o Padre Yves Congar. Senti vontade de falar com esse dominicano - um verdadeiro mestre de teologia eclesial no Vaticano II, e não só - depois da conversa que tínhamos tido sobre a vocação militante e até missionária da tua irmã GM. É verdade que ela foi muito influenciada pelo seu amigo Cardeal Cardijn, mas entusiasmou-se sobretudo pela visão da Igreja como Povo de Deus (que se foi afirmando na sequência de um novo surto dos estudos da tradição bíblica e patrística sobre a continuação de Israel do Antigo para o Novo Testamento) e da função apostólica dos leigos, tal como apregoada por Pio XI (1922-1939), o Papa de Cristo-Rei, da Ação Católica e das missões... Sabes como sempre estive politicamente bem longe dos ideais demo-sociais da GM, mas não posso deixar de admirar a generosidade de carácter da jovem aristocrata que, às escondidas da família, se ia "vestir de operária" e trabalhar numa fábrica para iniciar uma das primeiras células da JOC! Foi quando te conheci, nos anos 20, tinha a tua irmã acabado o curso superior de assistência social, o primeiro em todo o mundo, na Rue de la Poste, em Bruxelas. E da JOC a missionária leiga no Congo, sempre por sugestão do Cardijn, foi um pulo. Por isso Pio XI a recebeu e agraciou e ela se casou tarde, que para freira não servia. Registo um comentário do Congar sobre esse apelo de Pio XI aos leigos: "Como já antes o tinham feito Leão XIII e Pio X, mas com renovada insistência, Pio XI convidou os leigos a tomarem a sua parte na missão da Igreja ou do seu apostolado. Isso não significava apenas a ação na ordem temporal, mas também atividades de evangelização e de testemunho. Se a Ação Católica oficialmente organizada supunha um certo "mandato" (palavra muito raramente empregue pelos papas), o apostolado leigo fundamentava-se na própria ontologia sobrenatural do cristão: batismo, confirmação, dons espirituais e carismas, dever de reconhecimento. O convite incansavelmente dirigido pelo papa a "participar no apostolado hierárquico" (Pio XII mudaria participar para cooperar) apoiou-se na revalorização do sacerdócio comum dos batizados". Nasceu frei Ivo (Yves Congar) a 13 de abril de 1904 na cidade de Sedan, naquela Alsácia-Lorena que alemães e franceses sempre disputaram. Talvez por isso - como Robert Schumann para a Europa - a sua vida tenha sido uma procura incessante da união das igrejas na Igreja universal. É curioso observar que aquilo que talvez seja o mais completo e brilhante tratado de eclesiologia, desde o Vaticano II - esse livro de frei Ivo intitulado "L’Église, de Saint Augustin à l´époque moderne" - tenha a sua primeira edição simultaneamente em francês e alemão: "Die Lehre von der Kirche von Augustinus bis zur Gegenwart". Essa publicação é recente, como sabes. O Padre Congar ia manuseando um exemplar dela, enquanto me falava da Constituição dogmática "Lumen Gentium", documento em que o Concílio Vaticano II definiu ou descreveu, pela primeira vez de forma sistemática e autorizada, a Igreja. Faz-se ali uma revisão e um aproveitamento do que de melhor a Igreja foi pensando de si ao longo de séculos, incluindo a forma que se afirmou no Vaticano I. "Mas, diz Congar, há uma libertação resoluta do assombramento da autoridade e da preponderância do jurídico, do societário, que pesava sobre a eclesiologia há século e meio. O concílio - acrescenta ele - fez a justiça de operar um recentramento vertical sobre Cristo e um descentramento horizontal sobre a comunidade e o povo de Deus...  ... Restitui-se assim a imagem de uma Igreja que comporta uma pluralidade de ministérios, segundo as missões, as tarefas, os carismas..." Sabes que tive a tentação de me meter pelo caminho da profissão religiosa, como vida de consagração a Deus e aos outros. Sem sacerdócio - sempre tive e tenho alguma reserva quanto a essa "unção" que nos chegou das religiões primitivas, nacionalistas, bairristas e concorrentes, que se organizaram hierarquicamente, com castas transmissoras dos poderes divinos... Sinto-me espiritualmente mais próximo, quer da mística dos primeiros eremitas e cenobitas, quer da "diakonia", do serviço da comunidade, do que do chamado "exercício do poder espiritual" (expressão que me arrepia). Será uma questão de sensibilidade, mas é assim. Opuseram-me, beneditinos e dominicanos, ao meu desejo de ser simplesmente um "converso", isto é, um "irmão-faz-tudo", a importância da minha educação e cultura, e a necessidade dela para a missão "pastoral" da Igreja, também chamada "seara do Senhor"... E, pensava eu, bem aventuradas são as mulheres que, desde as diáconas da Igreja primitiva - e mais próxima do ideal evangélico - sempre puderam servir com a humildade sublime da Mãe de Deus, sem se revestirem dos símbolos de poder que douraram os báculos dos bispos e puseram três coroas na cabeça do papa. Pois os ministros da Igreja, afinal, não devem ser reconhecidos no sentido político do que manda, mas no do que serve o evangelho. A própria administração dos sacramentos nunca pode esquecer-se desse conceito fundador que é o de Igreja-sacramento primordial, raiz e cultura (no sentido de ambiente vivificante) de todos os sacramentos - por isso mesmo missionária e medianeira para o mundo. Não quero nem posso negar a importância e necessidade dos gestos e dos ritos, para a fidelidade dos quais é certamente necessária uma qualquer organização eclesial. Mas quero, posso e devo dizer que aquilo a que habitualmente se chama "sacramentos" não são receitas médicas nem varinhas de condão. São sinais efetivos do primeiro sacramento do amor de Deus que é Jesus Cristo, cuja forma sacramental atual é a Igreja, seu corpo místico, animada, em cada um de nós, pelo Espírito Santo. Assim também, qualquer vocação monástica, por exemplo, é sacramento. Estar fora do mundo, para no mundo ser testemunho de Deus e medianeiro dos homens. É claro que frei Ivo me sorriu, com condescendência benevolente pela minha ignorância em matéria teológica. Mas também me falou mais - e muito generosamente - da essência da Igreja como sacramento e da importância da sucessão episcopal dos apóstolos na administração dos sacramentos dessa mesma Igreja. E nessa perspetiva esteve sempre presente, também, o seu carinho ecuménico. Em resposta às minhas interrogações sobre o acerto de decisões ou interpretações "dogmáticas" que uma hierarquia, nem sempre recomendável eticamente, foi fazendo ao longo da história, sacudiu por cima do ombro o escapulário do hábito branco e disse-me: "Olhemos para a frente. Temos conseguido, graças a Deus, com apoio em investigações científicas e históricas, compreender melhor a história que envolve a Igreja e a dela mesma - como pensamento e ação que se vão declarando na circunstância mutante do tempo, sejam eles da Igreja oficial ou de tanta gente que nela comunga mesmo quando a interroga... Aproximarmo-nos do sopro e da obra de Deus na história dos homens..." E apontou-me umas linhas do livro que tinha na mão. Conto-te o resto depois. Estou cheio de sono, isto é ciência de mais para a minha carruagem… Adeus, Princesa. "Num apontamento avulso, Camilo Maria vai tecendo considerações sobre ecumenismo cristão, diálogo inter-religioso e... a Europa no projeto de Robert Schumann e Jean Monnet! Curiosa analogia…

 

Camilo Martins de Oliveira

NOVA EVOCAÇÃO/TRANSCRIÇÃO DE HERCULANO

 

A cronologia mais justifica esta alternância, que aqui temos exercido, entre textos atuais e evocações históricas. E hoje, precisamente, faremos eco tardio mas atual de uma referência histórica, a saber, a realização de uma auto levado à cena em 1401 no Mosteiro da Batalha para de certo modo assinalar a sagração respetiva.

E nesse contexto, novamente transcreveremos a descrição do espetáculo, evocado por Alexandre Herculano nas “Lendas e Narrativas” e que aqui se cita.

O que se segue é pois a transcrição do texto de Herculano:

“Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso (…) Estas primeiras figuras eram seis, formando uma espécie de prólogo ao auto. (…) Feitas as vénias a El-Rei, a Idolatria começou o seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o género humano, a o que a Fé acudia com dizer que estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia acabar e que elas Fé não era culpada de ter chegado tão azinha esse dia.

Então o Diabo vinha, lamentando-se de que a esperança começasse a entrar no coração dos homens, que ele Diabo tinha juz antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e, com isto, careteava com tais momos e trejeitos, que o povo ria a rebentar o mais devotamente que era possível”…

E a seguir transcrevo a fala que Baltazar Dias declama perante o Presépio:

“Santo filho de /Divinal/Salvador de triste raça /Humana,/ que desceste lá do assento/Celestial/ Vós da glória imperador/ Eternal/ Aceita este ofertório/ Não real/ Si. É quanto posso:/ Não há al”…

E transcrevo ainda um comentário do próprio Herculano, publicado em 1837 e posteriormente recolhido nos “Opúsculos”.

Aí escreve:

“Em Portugal é provável começassem as representações cénicas pelo mesmo tampo em que principiaram na Espanha: mas nenhum vestígio restam desse teatro primitivo”…

Assim mesmo!

E acrescente-se que Alexandre Herculano situou a partir de Garrett a renovação do teatro português, que ele próprio não praticou como dramaturgo mas fê-lo como analista. Interessa pois recordar aspetos da análise que Herculano faz do próprio historial da renovação do teatro em Portugal.

Remeto pois, a propósito, para referências a escritos hoje históricos de Herculano sobre o teatro em Portugal. E vem então a propósito recordar a visão histórica que Herculano aplicava também ao teatro.

Luis Francisco Rebello cita-o com frequência na “Breve História do Teatro Português” remetendo ações de renovação sobretudo a partir de Garrett mas não só: e isto, numa perspetiva que não deixava esquecer a própria renovação historial.

E tanto como dramaturgo como historiador.

Vale pois a pena recordar designadamente o que Rebello escreveu sobre a abordagem global da renovação do teatro: “Herculano, num artigo publicado em 1835 no Repositório Literário em que se fazia eco das teorias do romantismo, exortava os autores portugueses a (e cita) “aproveitarem os nossos tempos históricos mais belos que os dos antigos”, assim mesmo.

E cita Herculano como romancista, mas destacando designadamente alguns títulos de teatro com destaque para “O Fronteiro de Africa” e “Os Infantes de Ceuta” que classifica como “drama lírico”.

E é de assinalar ainda que Rebello cita amplamente Alexandre Herculano como dramaturgo sem dúvida mas ainda como autor de “avisado conselho” (e em diversas intervenções) na analise histórica do teatro português. E a propósito da dramaturgia portuguesa da época transmite um “avisado conselho” (sic) de Herculano a propósito dos dramaturgos da época:

“Não seria melhor que estudassem o mundo que os rodeia e que vestissem os filhos da sua imaginação com os trajes da atualidade?”

Não seria melhor?

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

89. DA NATUREZA FINITA DA VIDA HUMANA À IMORTALIDADE


Os deuses sempre foram vistos como imortais.

Durante milénios, todas as grandes estruturas do universo estiveram associadas ao infinito e à imortalidade.

Galáxias, estrelas, planetas, eram considerados deuses e imortais. 

Mais divinizado era o deus solar, como Rá e Amon-Rá (deus do sol egípcio) e o Sol Invicto, do império romano. 

Por confronto, a natureza finita da vida humana sempre foi associada à mortalidade.

Nós, humanos, vemo-nos como seres frágeis, podemos morrer, enquanto outros elementos do universo, como as estrelas, eram tidos como imortais. 

Há quem creia que seremos imortais se conseguirmos parar e reverter o envelhecimento.

Há quem acredite numa química da imortalidade. 

Há quem avalize ser biologicamente possível a imortalidade, pois há animais tidos por imortais como, que conste, algumas medusas e um animal exíguo conhecido por hidra.

Interrogam-se, os cientistas, quanto a saber se um organismo complexo, como o nosso, pode alcançar a imortalidade.   

O “comprimido antienvelhecimento” será uma realidade nos próximos 10, 20, 30 anos.   

O envelhecimento é enfrentado como uma doença que se pode evitar. 

Mas atrasar, parar e reverter o envelhecimento, é envelhecer mais devagar e prolongar a vida, não a imortalizando.

Por que a fragilidade sempre foi um elemento da nossa substância, sendo os humanos frágeis numa escala temporal de 80, 90 anos, com a perspetiva de vivermos saudáveis até aos 100, 120, 130 ou mais.

Sucede que todas as estruturas do universo têm um fim, dado que não apenas a vida e mente humana é finita, como o é a vida na Terra, o sistema solar, estrelas, planetas, num universo que nasce, cresce e morre gerido pelas leis da física, condensando e agregando matéria intrinsecamente frágil.

Só que os humanos são frágeis e mortais numa escala temporal de várias dezenas de anos, ou um pouco mais, enquanto as grandes estruturas do universo o são numa escala de milhares ou milhões de anos, indiciando-se que tudo tem uma duração finita na escala temporal cósmica. 

Se o universo e a vida humana são mortais, em escalas temporais diferentes, a imortalidade existirá enquanto o ser humano o desejar e puder pensar nela.

É uma perspetiva inacabada do nosso lugar no cosmos, que cientistas nos ajudam a compreender, no meio do caminho com muitas pedras. 

Em que Deus, como ente sobrenatural e exterior à natureza, é um ser ou inteligência que está para além daquilo que a investigação científica pode alcançar.


17.12.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA


O GRANDE ALGORITMO


Estar com quem amamos, sentir o afeto nos olhos que se olham, nos sorrisos e rires que se mesclam em bolas de espontâneo cristal; escutar o timbre das vozes que nos afagam, as palavras ditas por silêncios, tudo no regaço do bem-estar do estar com os amigos de toda uma vida, é fortuna que espreita da alma, dando-lhe força para que agora a esperança não seja noturna.

Digo.

Mas será que temos consciência do domínio sobre nós dos veículos de estarmos juntos on line e do quanto nos abalam, tal o nível de alteração da experiência e do sentir humanos se transmitirem por ferramentas que insistem no quanto sim, tudo é esta realidade?

A pandemia da COVID-19 obrigou-nos a reunir por videoconferência, agora omnipresente.

O mundo foi-se fechando e a sofrer perdas definitivas, a modificar-se como se bastasse aceitar o quanto estes novos instrumentos ligados à inteligência artificial (IA) são capazes de amizade, curiosidade e dúvidas, aceitando de barato que a tecnologia mude a nossa perceção, conhecimento e realidade, e, sobretudo, descurando que ao fazê-lo está a mudar o curso da humana história.

Docemente permitimos entender que as máquinas excedam o pensamento humano enviando-nos muitos beijinhos e abraços e fotos dos nossos rostos sem máscara e até das cores das artes e dos emojis.

O romance prescindiu do ímpeto de nos abraçarmos, a mensagem WAPP desempenha esse papel e afinal nada falta.

E quando tudo isto começou?

Com a pandemia?

Não, não se creia assim. Antes dela as jogadas concebidas e executadas e armazenadas por humanos até na educação dos jovens, tinham sido aceites sem a originalidade da contestação sólida.

Assim, sacrificaram-se valores e caminhos de luz e luta e amor por jogos no interior de cada um que maximizassem as probabilidades de ganhar fosse o que fosse. Ganhar é o acervo com o qual passaram a dormir os nervosos jovens.

Ganhar seja o que for é a grande molécula antibacteriana ao contacto entre as gentes.

Sentir o afeto nos olhos que se olham é batismo que não colhe.

O novo antibiótico tem a dose certa da indiferença.

Tudo é assético.

Com a pandemia e com o que já funcionava antes dela e que enfim, lhe trouxe o êxito mundial, chegou o grande algoritmo.

 

Teresa Bracinha Vieira

PODER E AUTORIDADE

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No Evangelho, as três tentações de Jesus estão todas relacionadas com o poder. Antes de iniciar a sua vida pública, Jesus teve de decidir se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta segunda via que seguiu: "Eu não vim para ser servido, mas para servir", e servir até dar a vida, dar a vida para testemunhar a verdade e o amor. A verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da dominação.

Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável, tem de haver instâncias de poder. Toda a questão consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram de que Ministro, etimologicamente, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve? Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Por isso, Jesus disse aos discípulos, também ao Papa, bispos, cardeais, padres: "Sabeis que os chefes das nações governam-nas como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós seja vosso servo".

Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo latino augere, que significa aumentar, fazer crescer. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na liberdade e na dignidade, na realização plena de todos os seres humanos em todas as dimensões... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores, padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz crescer, quando preserva e aumenta a dignidade humana... Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos os que clamam por mais liberdade e dignidade...

Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a essa dignidade inviolável.

A grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Mas então esqueceu e ignorou o Evangelho. Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: "Perdido o sentido do Mistério, instala-se a 'indoutrinação' e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de poder".

A novidade do Deus cristão, revelado em Jesus, é que Ele é poderoso, infinitamente poderoso, mas o Seu poder não é de domínio, mas de criação: Força infinita de criar. Fez-nos livres, para estabelecer connosco uma aliança. Com todas as consequências...

Aí está a razão por que, quando se fala em Igreja, é difícil não se ser imediatamente confrontado com alguma situação de desconforto. De facto, a Igreja aparece frequentemente como uma hierarquia soberana e longínqua, que comanda, que proíbe, não se percebendo muitas vezes se essas ordens e proibições querem realmente o bem das pessoas ou, se, pelo contrário, não são expressão disfarçada de interesses económicos e políticos, enfim, do poder...

Num primeiro momento, pelo menos, a Igreja surge como uma hiperorganização. Mas não deveria ser assim. De facto, a palavra igreja em português (iglesia em castelhano, église em francês) vem do grego Ekklesía. Ora, a Ekklesía era a assembleia do povo. No alemão (Kirche), no inglês (Church), etc., a origem é outra: Kyrike (forma popular bizantina), com o significado de "pertencente ao Senhor" (Kyrios) e, por extensão, "casa ou comunidade do Senhor". De qualquer modo, na dupla etimologia, a Igreja, no Novo Testamento, significa a assembleia daqueles que acreditam em Cristo, que crêem nele como o Messias e se tornaram seus discípulos, querendo, portanto, segui-lo, fazendo durante a vida o que ele fez e confiando nele na própria morte, esperando também a ressurreição. A Igreja desde o início considerou-se a si mesma como a assembleia dos fiéis a Cristo, dos que pertencem ao Senhor: o sinal dessa pertença era o baptismo e reuniam-se, celebrando, na Ceia, a sua memória, até que Ele venha.

Evidentemente, sendo constituída por homens e mulheres, a Igreja precisou de dar-se a si mesma o mínimo de organização. Por isso, nela, há diferentes funções e serviços. A palavra correcta é precisamente serviços. Significativamente, o Novo Testamento não fala de hierarquia (poder sagrado), mas de diakonia, que quer dizer ministério, serviço (mas também os Ministros dos Governos não esqueceram já que ministro é aquele que presta um serviço?).

Que é que isto tudo quer dizer? A Igreja não é, na sua raiz, uma hiperorganização, mas assembleia convocada por Deus e reunida em Cristo. Então, o Papa, antes de ser Papa, é cristão; o bispo, antes de ser bispo, é cristão, um seguidor de Cristo; um cardeal, um cónego, um padre são discípulos de Cristo, que têm uma missão de serviço. Que devem servir, precisamente como qualquer cristão. Não há de um lado a hierarquia que manda e do outro os cristãos leigos que obedecem. Há sim a comunidade dos que acreditam em Cristo, que procuram ser seus discípulos e que prestam serviços uns aos outros e a todos, segundo os dons e as tarefas que foram dados a cada um para bem de todos.

  

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 11 de dezembro de 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR


O flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade.


“Pour le parfait flâneur, pour l'observateur passionné, c'est une immense jouissance que d'élire domicile dans le nombre, dans l'ondoyant, dans le mouvement, dans le fugitif et l'infini. Être hors de chez soi, et pourtant se sentir partout chez soi ; voir le monde, être au centre du monde et rester caché au monde, tels sont quelques‑uns des moindres plaisirs de ces esprits indépendants, passionnés, impartiaux, que la langue ne peut que maladroitement définir.”, Charles Baudelaire, Le Peintre de la vie moderne.


No livro Psychogeography de Merlin Coverley lê-se que o flâneur é um observador solitário que caminha pelas ruas de uma cidade. Ao errar sem destino, ao parar simplesmente para olhar, o flâneur cedo se tornou uma figura ideal e literária do séc. XIX, inseparável da poesia de Charles Baudelaire (1821-1867).


O flâneur deseja para sempre unir-se à multidão, fluir no movimento contínuo da cidade, tornar-se fugitivo e infinito. Ser em toda a parte, ver o mundo e fazer parte de tudo mas manter escondida a sua existência. O flâneur é em simultâneo a imersão e o isolamento, a parte e o todo, o observador e o observado, o perseguidor e o perseguido, o eu e o outro, o passado e o futuro.


Ao dissolver-se na multidão, o flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade e deixa-se intoxicar pelo seu movimento que não pára. Mas o flâneur é sempre uma figura nostálgica porque apesar de proclamar admiração pela vida urbana reconhece também a redundância cada vez mais evidente do pedestre desocupado e só e que sobretudo aos olhos da cidade moderna se torna inútil e indolente.


Segundo Coverley, Paris era um livro pronto a ser lido por Baudelaire mas a sua configuração labiríntica destruída por Haussmann impediu a existência real do flâneur. Para Coverley, a vida de Baudelaire espelha a trajetória do flâneur que batalha constantemente contra o advento da modernidade.


A expansão de Paris, no séc. XIX, impediu a cidade de ser compreendida no seu todo. A destruição das antigas ruas e a sua reordenação sufocada com trânsito, domesticou qualquer tipo de intenção exploratória e o desejo do caminhante pelo enigmático, pelo misterioso e pelo oculto tornou-se totalmente obsoleto. O andar ficou assim reduzido a um passeio turístico, o errar ficou limitado ao olhar para as montras. Na cidade moderna o flâneur tem de se adaptar ou então perece. Para Merlin Coverley, o flâneur de Baudelaire é assim o testemunho de um modo de vida prestes a desvanecer para sempre.

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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   De 13 a 19 de dezembro de 2021

 

“Catedral e Museu Diocesano de Santarém” é uma obra coordenada pelo Padre Joaquim Ganhão, na qual se apresenta não apenas um rigoroso levantamento do património artístico da Sé Catedral de Santarém, mas igualmente um inventário precioso do Museu Diocesano de Santarém.

 

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OS BENS CULTURAIS RELIGIOSOS

Importa recordar que a Comissão Pontifícia para os Bens Culturais da Igreja considera os Museus Eclesiásticos e a Arte Sacra como fatores de aprofundamento da espiritualidade e da fé. Nesse sentido “a Igreja deve evitar o perigo do abandono, da dispersão e da devolução das peças (…), instituindo quando for necessário, ‘depósitos dos museus’ que possam garantir a conservação e fruição no âmbito eclesial. As peças de menor importância artística também testemunham no tempo o empenho das comunidades que as produziram e podem esclarecer a identidade das comunidades atuais. (…) De qualquer modo, é indispensável que as obras conservadas nos museus e nos depósitos eclesiásticos permaneçam em contacto direto com as obras que ainda se encontram em uso nas diversas instituições da Igreja” (Carta Circular, 2001). Nesta linha integra-se o projeto da requalificação da Sé Catedral de Santarém que teve a sua génese em 2011 aquando das comemorações dos 300 anos da edificação do templo, no âmbito da Rota das Catedrais, com consequente abertura do Museu, que passou a constituir uma referência fundamental no património cultural português. Em resultado dessa relevante intervenção foram atribuídos dois importantes prémios à intervenção: pela Fundação Calouste Gulbenkian, o Prémio Vilalva (2014) e pela Europa Nostra, o Prémio Europeu do Património Cultural (2016). No livro “Catedral e Museu…” reúne-se uma dezena de  estudos históricos e artísticos sobre o edifício do antigo Colégio Jesuíta, contando com contributos de especialistas reconhecidos, como: Miguel Soromenho, João Cabeleira, Maria João Pereira Coutinho, Sílvia Ferreira e Maria Alexandra Gago da Câmara. Saliente-se a coordenação técnica de Eva Raquel Neves – sob a dinâmica direção do Padre Joaquim Ganhão, sob o impulso de D. José Traquina.

 

UMA HISTÓRIA MUITO RICA

A atual Sé Catedral foi construída sobre o antigo Paço Real na Alcáçova Nova, oferecido pelo rei D. João IV, em 1647, para construção do Colégio Jesuíta de Nossa Senhora da Conceição, que teria a traça dos Arquitetos Mateus Couto, tio e sobrinho. Depois da extinção da Companhia de Jesus, a Igreja e edifício viriam a albergar sucessivamente Seminário, Liceu Sá da Bandeira e até Tribunal. O monumento que chegou aos nossos dias e que agora surge em todo o seu esplendor, singulariza-se pela grandeza, equilíbrio e harmonia da fachada, pelos notáveis tetos pintados na nave e capela-mor, pelo retábulo desta com embutidos de pedraria polícroma, pelos ricos altares laterais de talha dourada e pelos mármores da Capela de Nossa Senhora da Boa Morte de João António Bellini de Pádua. Merecem ainda referência os diversos painéis de azulejos e os retábulos em estuque de Francesco Marca. A monografia sobre a Catedral é completada por um estudo das coleções do Museu Diocesano, com cerca de 150 peças, reunindo o contributo de cerca de 50 especialistas dos principais museus nacionais e das Universidades. O conjunto de peças que foi possível reunir demonstra a tomada de consciência sobre a riqueza das paróquias da diocese – permitindo-se um esforço comum de conhecimento, valorização e preservação de acervos de grande qualidade, numa região com uma extraordinária riqueza no tocante ao património cultural, histórico e artítico. Pode, pois, dizer-se que esta ação coordenada concretiza o cumprimento escrupuloso da Convenção de Faro, do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (assinada em 2005). De facto, há uma apreciável ligação entre património material e imaterial, bem como o reconhecimento pela sociedade do valor da criação cultural e artística.

 

LEMBRAR UM TRABALHO LONGO

Saliente-se o importante texto de Pedro Canavarro, no qual nos dá conta da grande persistência que foi necessário ter para se chegar ao ponto em que nos encontramos e os desafios que continuam presentes. Houve inicialmente receios e resistências, mas finalmente foi possível encontrar reconhecimento da riqueza do património escalabitano, designadamente na exposição “Encontros de Cultura – oito séculos de missionação” em S. Vicente de Fora com a apresentação da coleção de objetos sacros e não só, em prata indiana do século XIX provenientes do património de D. António Pedro da Costa, Bispo de Damão e Arcebispo ad honorem de Cranganor, além do conjunto de peças da Diocese de Santarém de sacras, galhetas, uma bacia com gomil e caldeirinha com hissope… Graças aos Bispos D. Manuel Pelino e D. José Traquina foi possível chegar ao ponto atual, ficando-nos do Sermão da Sexagésima do Padre António Vieira a magnífica expressão: “Para um Homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas – olhos, espelho e luz” – é exatamente o que encontramos neste trabalho extraordinário.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença