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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 31 de janeiro a 6 de fevereiro de 2022

 

O caso de Lourdes Castro merece especial atenção. A sua obra e a sua vida confundem-se, permitindo-nos compreender plenamente a amplitude dos conceitos de cultura e de património cultural.

 

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UM NOME FUNDAMENTAL

Recebemos a palavra cultura do humanismo renascentista, a partir de uma etimologia tirada da atividade agrícola. Falamos de uma sementeira, de lançar a semente à terra e de colher o que a natureza nos dá. Enquanto os gregos falavam de “paideia” e os romanos de “humanitas” era da troca de saberes e experiências e da aprendizagem que se tratava. Já relativamente à ideia de património cultural, está em causa o dever de preservar o que vem dos nossos pais, não apenas o que recebemos das gerações que nos antecederam, mas também o que acrescentamos e aperfeiçoamos, para legar a quem nos vai suceder. Daí o conceito dinâmico que abrange as pedras vivas e as pedras mortas, a natureza e a paisagem, a criação contemporânea e a evolução das técnicas e instrumentos, e no momento presente o mundo digital. Lourdes Castro compreendeu tudo isso de um modo exemplar. “A surpresa do desenho, a simplicidade da forma, o contorno da sombra fascinou-me tanto que ainda hoje para mim é nova” (como testemunhou a Joana Galhardo Frazão). Ao seguirmos o seu percurso é impressionante o modo como soube trilhar caminhos absolutamente inesperados e novos. Com o grupo “KWY” (Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, José Escada, João Vieira, Gonçalo Duarte, Jan Voss e Christo), abriu horizontes além-fronteiras, ultrapassando a dimensão paroquial, libertando-se da censura e nunca mais parou no caminho criador através do repensar das raízes. Em “O Grande Herbário das Sombras” reencontrou a Natureza e a vegetação da Ilha da Madeira, domínio da laurissilva, sua terra natal, com uma centena de espécies botânicas, que permitem ligar o labor da artista à criação essencial e transcendente. Como recordou José Carlos Seabra Pereira, a obra envolve “a imanência do mundo criado e a Transcendência que lhe dá sentido último”. É o dom da vida que está em causa, como fica demonstrado no filme “Pelas Sombras” de Catarina Mourão (2010), no qual se apresenta o encantamento “com a magia no quotidiano das coisas”. Por isso, a artista afirma: “a minha pintura é esta: o viver, o estar cá”. E assim a sua arte foi-se tornando o espaço à sua volta. “Não a posso transportar. Ela nem quereria mudar de sítio”.

 

A ARTE NUNCA FOI SÓ UM FAZER

José Tolentino Mendonça, graças a quem devo ter conhecido pessoalmente Lourdes Castro, afirmou que, para ela, “a arte nunca foi simplesmente um fazer. A arte era um intransigente pensamento sobre o estar. Por isso, não deixa apenas obras que podemos ver nos museus de arte contemporânea. Ela deixa uma visão. E tal constitui um facto político raro”. Lembrando o “Teatro de Sombras”, verdadeiro património imaterial posto em prática primeiro com René Bertholo e depois com Manuel Zimbro, trata-se de arte em movimento, e recordo a conversa que tivemos, sobre como foram os primeiros passos no Centro Nacional de Cultura, em 1954, com José Escada. Não por acaso, o Centro era uma casa onde o teatro tinha uma especial importância, sob a influência extraordinária de Fernando Amado e de Almada Negreiros. E Lourdes Castro, no tempo da fugaz passagem em Belas-Artes, começou a fazer teatro com Amado no Centro, e foi no espaço do teatro que a jovem começou por apresentar os primeiros passos nas artes plásticas. E vem à memória a peça “Antes de Começar” de Almada Negreiros, encenada por Fernando Amado, nos princípios que conduziriam à criação da “Casa da Comédia” e à amizade que se prolongará no tempo, pela vida fora, com o pintor Manuel Amado, companheiro, com sua mulher Teresa, em férias e viagens na Madeira e Porto Santo. E está aqui a preciosa chave, capaz de ligar a descoberta das sombras, a representação teatral e a paixão pela vida. E, ainda para mais, há o encontro simbólico entre a memória do primeiro modernismo, com Almada Negreiros ou a lembrança de Fernando Pessoa, muito presente nesse tempo e no grupo, quando o poeta do “Livro do Desassossego” começava a ser descoberto, e o papel pioneiro de um outro modernismo, totalmente novo, da geração de “KWY”. E foi essa pulsão vital que levou Lourdes Castro a realizar esses fantásticos livros de artista, que explicou simplesmente – “porque havia tesouras, havia papel, havia tempo, gostava de livros…”. E, ao apresentá-los, Paulo Pires do Vale compreendeu bem como a artista continuou a criar, mesmo quando se retirou da intervenção ativa. “Na verdade, não deixou de criar”, continuou, sim, a “transformar a própria vida”, a “dar-lhe maior atenção” (Público, 9.1.22). E na exposição “Tudo o que Eu Quero”, Helena de Freitas e Bruno Marchand, na Gulbenkian, puseram em destaque as sombras na sua múltipla dimensão, absolutamente singular e inovadora – silhuetas bordadas em lençóis brancos, retratos de amigos em plexiglas, flores e folhagens. Foi da realidade viva que a artista partiu, através de uma imaterialidade que constituiu a procura da essência da própria vida. “As suas sombras tornam-se progressivamente mais leves. A presença aprofunda-se na ausência e cumpre-se no desaparecimento” (Anne Bonin).

 

O TEATRO DE SOMBRAS

José Tolentino Mendonça refere três momentos no caminho de Lourdes Castro. “A primeira etapa é aquela que vai até ao ‘Teatro de Sombras’ e constitui talvez a parte mais reconhecível da sua produção artística”. A segunda etapa foi a do movimento das sombras, como se uma parede deixasse de ser um obstáculo, descobrindo-se no branco do muro intransponível uma passagem na transparência - como Lourdes procurou demonstrar ao seu amigo quando o surpreendeu a explicar como se compreende o espaço. E lembrei-me, ao ler esse relato, do enigma que sempre há nos jardins japoneses, como em Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen, representação do mundo, na história contada por João Bénard da Costa no filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes, e revivida na viagem japonesa que fiz com Tolentino Mendonça. Também então não pudemos descobrir a décima quinta pedra, sendo-nos feita a pergunta sobre se compreendêramos tudo. O certo é que há sempre enigmas sem solução. Por fim, a terceira etapa foi a dos jardins madeirenses – a Praia Formosa, a Quinta do Monte, o lugar de exílio de Carlos de Habsburgo, e o Jardim do Caniço… De facto, o jardim tornou-se a própria obra (cf. Expresso, 14.1.22). “O meu jardim é a minha tela”. A Natureza é que tudo faz. Haveria lentamente que entrar nesse ritmo. Lourdes Castro preparava-se, afinal, para a última viagem, em direção ao Jardim das Nuvens. A obra de arte deixara de se limitar a um espaço contido, às fronteiras de uma tela ou de um lençol, abriam-se os horizontes, e não havia fronteiras intransponíveis nesse teatro de nuvens.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim: 


   Gabriel Fauré (1845-1924), compositor francês, foi mestre de capela na igreja da Madalena, em Paris. Gosto de o pensarsentir como um agnóstico de alma profundamente religiosa, e talvez seja no seu Requiem que ele assim tal qual mais se revela. Li algures - não me recordo de onde nem quando - a notícia de que essa obra foi executada pela primeira vez na própria igreja da Madalena, nas exéquias de um paroquiano. No final, o pároco perguntou a Fauré que peça era aquela, pois não a conhecia. O compositor respondeu que era uma missa de requiem sua, o que lhe valeu uma reprimenda e a injunção de não voltar a repeti-la ali, pois no acervo da Madalena já havia coisas dessas em número suficiente... Por outro lado, sei que a primeira intenção de Fauré foi comemorar a morte do pai, terminando a primeira versão da obra já para acompanhar a morte da mãe, dois anos mais tarde. Digo-te isto por sentir que a mansidão da música desta encomenda de almas se inspira muito na devoção de um amor filial. 


   É verdade que, como muito bem aponta Lionel Salter na apresentação do registo da peça na EMI (entre os Great Recordings of the Century), interpretada pela Orchestre de la Société des Concerts du Conservatoire e os Choeurs Elisabeth Brasseur, sob direção do belga André Cluytens, e com os solistas Victoria de los Angeles (soprano espanhola) e Dietrich Fischer Dieskau (barítono alemão), este Requiem se afasta muito dos modelos clássicos, de Mozart a Cherubini, da ênfase teatral do Requiem dramático de Verdi, em que o homem tremendo de terror fala, balbuciando, em morte eterna, e sobretudo da visão apocalíptica grandiosa de Berlioz, com as suas "fanfarras fulminantes"... O próprio Gabriel Fauré disse, em carta a um amigo, que o meu Requiem é tão meigo como eu. O meu Requiem... já alguém disse que ele não exprime o susto da morte, já lhe chamaram uma cantiga de embalar a morte. Mas é assim que sinto a morte: como feliz libertação, aspiração à felicidade do além, mais do que um trânsito doloroso. Compreendo Fauré:  todo ele, pensossinto eu, se exprime essencialmente nessa prece pelo descanso do coração na mão de Deus, na sua mão direita, como sonhou o nosso Antero, e que o breve Pie Jesu exprime: Pie Jesu, Domine, / dona eis requiem. / Pie Jesu, Domine, / dona eis requiem sempiternam. Escuto hoje esse sereno pedido de ternura («piedoso Jesus, Senhor, dá-lhes descanso, / misericordioso Jesus, Senhor, dá-lhes eterno descanso») na voz de Victoria de los Angeles e, já noutro registo, nas dos meninos do Choir of New College de Oxford, sob a direcção de Edward Higginbottom (ERATO). Na verdade, fui buscar ambos os discos, para me acompanharem na reflexão sobre a primeira das Cinq méditations sur la mort - autrement dit sur la vie, de François Cheng (Albin Michel, Paris, 2013). A morte, afinal, terá o mérito de – traduzo - nos levar a tomar consciência do que é, na essência, a noção de vida. Vem-nos ao espírito uma palavra que parece caracterizar essa noção: a palavra «devir». Sim, é isso a vida: algo que advém e que devém. Logo que vinda, entra em processo de devir. Sem devir, não haveria vida: a vida só é vida enquanto devir. A partir daí, compreendemos a importância do tempo. É no tempo que aquilo se passa. Ora, é precisamente a existência da morte que nos confere o tempo. Vida-tempo-morte: eis um todo indissociável, a não ser que seja morte-tempo-vida. Façamos os malabarismos que quisermos, não conseguiremos escapar a essas três entidades concomitantes e cúmplices, que determinam qualquer fenómeno vivo. Pois se o tempo nos parece um terrível devorador de vidas, ele é simultaneamente o seu grande fornecedor. Sujeitar-nos ao seu domínio é o preço que temos de pagar para entrar no processo do devir. Esse domínio manifesta-se por incessantes ciclos de nascimentos e de mortes; fixa a condição trágica do nosso destino, condição essa que também poderá ser fundação de uma certa grandeza. 


   
Nesse sentido, para o sino-francês François Cheng, refugiado em França aos vinte anos, sem saber uma palavra da língua local, hoje membro da Académie Française, poeta e pensador que respira uma espiritualidade alimentada de taoísmo e cristianismo (que descobriu, anos depois de chegar à Europa, em Assis, pelo exemplo da São Francisco), a morte corporal, que tanto nos angustia e assusta, pode revelar-se como a dimensão mais íntima, mais secreta, mais pessoal, da nossa existência. Pode ser esse núcleo de necessidade à volta do qual a vida se articula. Neste sentido, é mesmo revolucionário o Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis, que à morte corporal chama «nossa irmã». Abre-se-nos então uma mudança de perspetiva: em vez de encararmos a morte como um espantalho, a partir deste lado da vida, poderíamos encarar a vida a partir do outro lado, que é a nossa morte. Nessa postura, enquanto estivermos em vida, a nossa orientação e os nossos atos serão sempre impulsos para a vida. 


   
O mesmo Cheng conta, no seu opúsculo Assise - une rencontre inattendue (Albin Michel, Paris, 2014) como, em 1971, no momento em que se naturalizava francês, teve o privilégio de escolher um nome próprio: François. É certo que tal nome tem o condão de significar «francês», minha nova cidadania. Mas a razão mais determinante foi que, dez anos antes, em 1961, me tinha encontrado com o irmão universal que todo o Ocidente conhece, e no qual qualquer ser, mesmo vindo de longe, se pode reconhecer: Francisco de Assis. 


   
O autor deste encantador livrinho, Princesa de mim, que te aconselho a ler, fez questão em publicá-lo anexando-lhe o Laudato si´... esse canto franciscano das criaturas, que acaba assim: 


               Louvado sejas, meu Senhor,
               pela nossa irmã, a Morte corporal,
               a quem nenhum homem vivo pode escapar.
               Infelizes os que morrem
               em pecado mortal;
               felizes aqueles que ela surpreende
               a fazer a tua vontade,
               pois não lhes será ruim segunda morte.
 


               Louvai e bendizei o meu Senhor,
               dai-lhe graças
               e servi-o com toda a humildade!
 


   
Fiz esta tradução da versão francesa de François Cheng, por dele falarmos agora. Lembro-me todavia de já te ter enviado outra minha versão para português, essa diretamente feita do dialeto úmbrio original, em que foi composto o Laudes Creaturarum - ou Cantico di Frate Sole, assim chamado por virtude da 2ª estrofe (versos 5 a 9) - provavelmente em 1224-25, em São Damião (Assis), onde Cheng também se demorou, 736 anos depois. Para ilustrar o que se diz a seguir, deixo-te hoje, sem tradução, essa estância, como São Francisco a cantou: 


               Laudato sie, mi´Signore, cum tucte le tue creature,
               Spetialmente messor lo fratre sole,
               Lo qual´è iorno, et allumini noi per lui.
               Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore:
               De te, Altissimo, porta significatione.
 


   
Pelos vistos, Princesa de mim, o nosso Sto. António não teria tido grande dificuldade em traduzir o seu português alfacinha para um dialeto italiano... Quiçá menos ainda em comungar nesse amor universal, divino, telúrico e humano. Já muitos autores observaram também como o texto franciscano «os laços que tece com a cultura latina, essa escrita ornamentada com rimas e assonâncias, poderosamente ritmadas pelo modelo dos salmos...» (Danielle Boillet) ou sublinharam, como Frédéric Ozanam (Les Poètes franciscains en Italie au treizième siècle, Paris 1882), o «valor humano e religioso deste texto». Traduzo: 


   O poema de São Francisco é bem curto, e todavia nele encontramos toda a sua alma: a sua fraterna amizade das criaturas; a caridade que guiava esse homem humilde e tímido através das querelas públicas; esse amor infinito que, depois de ter procurado Deus na natureza e de o ter servido na humanidade sofredora, a mais não aspirava do que a encontrar a morte. 
 


   
E é por este santo pobre de Deus que o intelectual, e também poeta, chinês, François Cheng verá em Jesus Cristo a Via (dao) do seu taoísmo de raízes milenares. A fechar esta carta, Princesa, traduzo-te um trecho significativo do Assise - une rencontre inattendue, onde, através dum chinês que escreve em francês também eu experimento um encontro meu que, louvado seja!, é sempre inesperado: 


   O que ele vê diz-lhe que, apesar de tudo, há sempre razão de louvor. E que outra coisa louvar, se não a própria Criação, com o esplendor do céu estrelado e a magnificência da terra fecunda, essa Criação que, certo dia, a partir do Nada, fez advir o Tudo? Ao louvar, vemos desenrolar-se todo o processo do advento, uma doação total, pela qual só podemos e devemos dizer o nosso reconhecimento. Ele reconhece o facto de que milagrosamente o Ser é, e de que graças a esse facto primeiro, ele mesmo, por minúsculo que seja, ele é. Ao louvar, mergulha totalmente no infinito, no Aberto. Sabe-se parte legítima de uma imensa aventura em devir, a da Vida, com tudo o que ela comporta de desafios e paixões, de dores e de alegrias, de corridas para o abismo e de elevação para a transcendência. Os sofrimentos de cada um e de todos só podem ser ultrapassados no abandono constante à marcha da Via, a única que não nos trairá. Por experiência, Francisco sabe que o que move a aventura da Vida não se limita à potência material, antes é o próprio amor. Por isso, depois de ter louvado as criaturas, cada uma enquanto dom único, ele distingue em particular o destino humano: «Louvado sejas tu, meu Senhor, pelos que perdoam por amor de ti; que suportam provações e doenças; felizes os que se mantêm em paz, pois que, por ti, ó Altíssimo, serão coroados!» 


   
Eis o que cantam os versos 23 a 26 do Laudes Creaturarum: 


               Laudato si´mi´Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore
               Et sostengo infirmitate et tribulatione.
 


               Beati quelli ke´l sosterrano in pace,
               Ka da te, Altissimo, sirano incoronati.
 


   
Há muita vida, Princesa, para além da vanglória e do conforto, da desilusão e do pessimismo, de tudo o que afinal é esse individualismo tacanho que ensombra os nossos dias... 


Camilo Maria   

Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 24.06.18 neste blogue.

BREVE EVOCAÇÃO DO TEATRO DE JOSÉ SARAMAGO


Aqui fazemos uma breve referência à (também breve) obra dramática de José Saramago, nascido em 1922 e falecido em 2010, o que de certo modo torna cronologicamente oportuna esta citação. A ela certamente voltaremos, mas parece oportuno esta primeira referência, independentemente, note-se, do que eu lhe dedico como análise na “História do Teatro Português”, que aqui tenho citado. E justamente, a primeira referência que aqui faço será exatamente a evocação desse conjunto de peças, na altura da publicação da História acima citada.

E justamente: aqui evoco o que na época escrevi, tendo em vista uma análise, admite-se que incompleta mas sempre válida (na minha opinião), acerca da dramaturgia de Saramago, tal como deve ser citada.

Como referi,  efetivamente Saramago, depois da adaptação, com Costa Ferreira, de um conto seu (“Fim de Paciência”) escreveu, a partir de 1970,  peças que trazem para  cena o temários dominantes do autor: “A Noite” (1979), visão realista da noite de 25 de abril de 1974 numa redação de jornal, “Que Farei com Este Livro”  (1980) onde o protagonista, mais do que Camões é “Os Lusíadas” e alegorias heterodoxa e azedas, “A Segunda Vida de Francisco de Assis”  e “In Nomine Dei”, ambas reflexo das angústias do autor. E acrescento agora “Don Giovanni ou O Dissoluto Absurdo” datada esta publicação de 2005.

E ainda acrescento que estas duas últimas serviram de base à ópera “Blimunda” de Azio Corghi.

Entretanto, importa fazer algumas citações de comentários críticos.

Assim, Luis Francisco Rebello, em “100 Anos de Tetro Português”, considera “A Noite” como “texto essencialmente dialético no seu aparente naturalismo e de uma invulgar eficácia teatral” . Especifica: “Obra de um realismo exemplar, a sua rigorosa estrutura, a perfeita definição dos carateres e a confrontação ideológica entre eles, a segurança do diálogo, revelaram um autêntico dramaturgo que a peça seguinte, um drama histórico tendo como protagonista o autor dos Lusíadas a que chamou «Que Farei com Este Livro» (1980) plenamente confirmou»…

E mais haverá nesta linha de criação: a ela voltaremos num temário que documenta a ligação por vezes inesperada entre o teatro e o romance!

DUARTE IVO CRUZ  

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO


LXXXIV - AFETOS LINGUÍSTICOS E (NÃO) ESTRATÉGIA


Os afetos existem e são fundamentais.

Os afetos linguísticos não são muito diferentes daquilo que se passa entre pessoas. Por vezes estamos apaixonados, amanhã divorciados.  

Tem de haver um conhecimento contínuo de um reconhecimento recíproco atualizado permanentemente.

Mas não há uma sensibilidade política e da sociedade civil para facilitar uma cooperação lusófona, atentas as dificuldades burocráticas para quebrar as barreiras alfandegárias institucionalizadas, mesmo em termos estritamente culturais, apesar de o fator língua agarrar mais de perto tal realidade.

Também há alunos lusófonos, nomeadamente dos PALOP, que tendem a diminuir os seus estudos em Portugal, não pela ausência de afetos, mas porque querem dominar o inglês, tido como língua global.  

Toda a cooperação é interessada, no sentido de eficaz, trabalhada, pois se o não for não é cooperação.   

Não podemos utilizar os afetos para ocultarmos incompetências.   

Não há estratégia? Porquê?  

É porque se não quer ter estratégia?    

A própria ausência de estratégia é uma estratégia.  

Essa estratégia global deve ter várias estratégias. 

Mas o discurso dos afetos permanece, mesmo que de quando em quando, o mesmo sucedendo nas relações pessoais.

Oculta, por vezes, um mero interesse de natureza comercial ou económica, o que é redutor e acaba por prejudicar.

 

28.01.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

OS DETERMINADORES

 

A realidade tem mostrado que em momentos de poucos anúncios publicitários, os comerciantes queixam-se de fortíssimas quedas nas vendas, o que significa que os indivíduos que fizeram menos compras, fizeram menos compras apenas por uma razão: as mesmas lhe não eram necessárias.


Na verdade, o incitamento à compra do que não faz falta é um gasto incluído como custo de produção, o que pode significar também que este crescimento económico pode ser uma forma de aumento do desperdício.


Não se entende que aumente a produção de um produto que custa vender porque as pessoas se não convencem do interesse do mesmo, e este facto, não coloca em causa que “talvez” existam mercadorias sem interesse.


Ao invés, se se produzissem com critério bens de utilidade, a fome e outras carências da humanidade tenderiam a eliminar-se.


Os economistas afirmam sempre que quanto mais se produz um bem mais barato ele se torna, o que do ponto de vista do consumo não será absolutamente substantivo se a redução dos custos for apenas para o lado da produção, e o aumento da procura não determinar a baixa do preço do bem.


Enfim, meia dúzia de reflexões leva-nos também a questionar a razão da exploração intensiva da mulher tender a não se alterar com o crescimento económico.


Todos sabemos que todos os interesses se encontram ligados por processos económicos. Todos sabemos que muitas das falsas premissas não são discerníveis com facilidade. Todos sabemos que a vida quotidiana de um povo tem a marca da economia.


Contudo, acima de tudo, ter consciência da importância da autodeterminação é ter consciência do que terceiros nos impõem, e nós a conseguirmos resistir-lhes como quem compreende que entregar as rédeas não será nunca conhecer caminho próprio.


A realidade
 mostra-nos que ao serem outros que decidem o que vamos comprar, em tudo nos identificamos com quem entra num comboio cujo destino ignora.


Mas,
 como li algures, um fabricante de armas não estará interessado em que as mesmas sejam denegridas por uma escola.


como fazer-lhe frente, como se atrever?

                                     

Teresa Bracinha Vieira

TUDO PROFANO, TUDO SAGRADO

 

Embora simplificando muito, pode-se dizer que ao longo da história da humanidade reflexiva se impuseram três concepções fundamentais de mundo. Assim: uma concepção dualista: na raiz, há dois princípios - o princípio do bem e o princípio do mal; uma concepção monista: em última análise, há só a matéria, ou Deus e a Natureza fazem uma só realidade; o monoteísmo: o Deus transcendente e pessoal, absolutamente perfeito em si mesmo, criou o mundo a partir do nada.


Porque é que Deus criou e continuamente cria? Apresentou-se permanentemente como razão da criação a maior glória de Deus. Mas um Deus que criasse para a sua maior glória seria um Deus carente e egoísta, portanto, um Deus contraditório, um Deus que não é Deus. Assim, Deus não criou pelo seu interesse, mas apenas para o bem e a felicidade das criaturas. O único interesse na criação é o bem-estar e a realização plena das criaturas.


Isto significa que Deus não tem inveja da felicidade do ser humano. Deus, na concepção cristã, é o contrário de um Deus invejoso, pois criou apenas por amor da criatura e permanentemente promove e potencia os dinamismos da sua total realização.


A outra consequência fundamental da concepção cristã da criação por Deus é a autonomia. De facto, se Deus criou sem precisar de criar, portanto, se a criação tem como única razão a liberalidade generosa de Deus no seu excesso amoroso, o resultado do acto criador só podem ser criaturas autónomas. Deus não absorve a criatura; pelo contrário, fá-la ser ela mesma, de tal modo que é necessário concluir que precisamente a presença criadora de Deus a toda a criatura implica e funda a sua autonomia e independência relacional. Criação e autonomia encontram-se numa relação de proporção directa: quanto mais Deus está presente mais a criatura é autónoma. O mundo segue, portanto, as suas leis, e os seres humanos enquanto criaturas livres têm de procurar os caminhos para uma conduta humana em autonomia e dignidade.


Se a realidade mundana e humana existe porque Deus na sua liberdade originária criadora a quis, este mundo é mesmo real e não um simples lugar de passagem ou um mundo provisório a caminho da realidade verdadeira no outro mundo. A relação viva com Deus também passa pela resposta à pergunta de cariz heideggeriano: O que é que corre na corrente? Na corrente, corre a fonte, mas a corrente não é a fonte. Se a fonte for Deus e tudo o mais a corrente, então estamos sempre em Deus e em comunhão com todos e com tudo, ao mesmo tempo que somos remetidos para a autonomia solidária e a responsabilidade adulta.


"Fazer amor é sagrado. É tão sagrado comer como fazer amor ou rezar." Aí está uma afirmação que produzi numa comunicação ao III Simpósio do Clero, em Fátima, em 31 de Agosto de 1999, e que, apesar de constituir um simples parêntesis no discurso, foi objecto de primeira página em jornais diários. Uma evidência que foi notícia! Trata-se na realidade de uma evidência. Não se afirma, de facto, como doutrina oficial da Igreja que o casamento é um sacramento, significando sacramento precisamente que o amor em corpo é sagrado, experiência santa de Deus?


Quando se estuda a fenomenologia da religião, aparecem como categorias primeiras as do sagrado e do profano: há um espaço sagrado e um espaço profano, um tempo sagrado e um tempo profano. Mas, deste modo, não surge Deus acantonado nos espaços e nos tempos sagrados? Depois, haveria o imenso espaço e tempo profanos, com pequeníssimas ilhas de sagrado, de tal modo que a quase totalidade da existência se passaria no profano (de pro-fanum: em frente e fora do templo).


Aos poucos, a Bíblia dá indicações de que é necessário acabar com esta separação dicotómica do sagrado e do profano. Diz-se expressamente que com a morte de Cristo o véu do Templo se rasgou de cima abaixo. Se Deus criou exclusivamente por amor, toda a realidade é ao mesmo tempo sagrada e profana: tudo é profano, pois pertence à autonomia, e simultaneamente tudo é sagrado, pois Deus é sempre presença infinita a todas as criaturas. O ser humano é tão religioso quando reza como quando estuda ou realiza qualquer outra dimensão do seu ser. Já não há o imenso deserto do profano, com pequenas ilhas de sagrado. Como diz o filósofo e teólogo Andrés Torres Queiruga, num exemplo feliz, também no casamento, os que se amam tanto se amam na cama como quando trabalham para a família ou estão a comer, a descansar ou a passear.


Precisamos certamente de tempos e espaços de meditação, de celebração festiva, ritual e simbólica, não porque aí Deus esteja presente com mais intensidade, mas porque nós mesmos precisamos de dar-nos conta e tomar consciência mais intensamente de uma realidade que é sempre simultaneamente profana, no sentido de vivida autonomamente, e sagrada, no sentido de que está sempre imersa e referida a Deus, fonte do ser e de ser.


Isto não significa, porém, que concretamente o tempo seja homogéneo: de facto, o kairós, o instante do começo de uma pessoa, por exemplo, ou o instante da sua morte não formam um continuum no tempo. Há o tempo qualitativo. Por outro lado, este mundo em que nos encontramos não é um simples lugar de passagem: ele é real e verdadeiro, pois é o mundo de Deus, que ele mesmo quis e criou, para estabelecer uma aliança de liberdade com homens e mulheres livres. O que se passa é que está ainda a caminho, em processo, ainda não chegou à sua consumação, ainda não é o que será, e nós próprios também não somos ainda o que seremos.

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 de janeiro de 2022

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Place de l’Étoile


A curta-metragem Place d l’Étoile, de Eric Rohmer, feita para o filme Paris vu par… (1965) explora o espaço público como meio primordial da nova cidade planeada por Haussmann. Neste caso específico, Rohmer ao conhecer bem toda a área circundante à Place de l’Étoile e por ter trabalhado no topo dos Champs Élysées, queria mostrar o seu interesse por este espaço aberto e circular.


A Place de l’Étoile é o ponto de encontro de doze grandes avenidas cujo centro é definido pelo imponente Arco do Triunfo (1906-1936). No filme, Rohmer explica que a praça em si, supostamente assinalada como um lugar de prestígio, é uma espécie de terra de ninguém, pois é totalmente ignorada e subestimada por seus transeuntes ativos e apressados que conhecem e percorrem somente o seu perímetro. A cada 50m uma rua tem de ser atravessada. Os semáforos que regularizam o movimento dos carros nas ruas periféricas em nada facilitam a circulação dos peões - resultando assim num desconforto descontínuo somente superada pela idade ou pelo carácter de cada indivíduo. As obras, que desde 1964 constroíem na praça o metro regional, também contribuem para aumentar o problema da circulação automóvel e pedestre.


Ora Jean-Marc, o herói desta história, antigo corredor dos 400m, trabalha como vendedor numa loja de fatos para homem na Avenida Victor Hugo. Todas as manhãs, Jean-Marc apanha o metro para ir para o trabalho. A sua última paragem é L’Étoile. Um dia ao sair da estação de metro e aborrecido por uma mulher ter pisado o seu pé, choca sem querer com um senhor que passa na Place de l’Étoile. Uma desavença aí se inicia até que o senhor colapsa no chão e Jean-Marc com medo foge em corrida, pensado que o senhor está ferido ou até mesmo morto. Durante as semanas seguintes, Jean-Marc prudentemente evita a Place de l’Étoile. Cuidadosamente tenta contornar a praça utilizando as suas ruas periféricas, mas nem sempre é bem sucedido. Mas para seu grande alívio um dia vê o senhor no metro.


A história deste filme depende totalmente da estrutura geométrica da Place de l’Étoile. A sua configuração é capaz de determinar os encontros, o itinerário, os desvios, a corrida, as interrupções que descrevem a história de Jean-Marc.


Por isso Jean-Marc é a figura necessária para estabelecer a ligação entre o espaço físico e o espaço psicológico daquele lugar específico.


Rohmer, a propósito deste filme cita Guy Débord e a sua teoria da Dérive. Debord define a Dérive como o modo experimental que liga o comportamento humano às condições de uma determinada sociedade urbana. Rohmer escreve que todo o ser humano gosta de ter a possibilidade de se deslocar a um lugar através de duas ou mais maneiras diferentes, porque o seu devaneio será sempre capaz de o conduzir até lá. E aqui Rohmer crítica abertamente a vida urbana moderna que ao proibir a divagação, o desvio e o acaso contribui para a destruição de Paris. (Baecque e Herpe 2014, 181)


A cidade moderna de Haussmann trouxe a definitiva cisão entre o humano e a natureza - é o triunfo do artificial esplendoroso sobre o natural, o tecnológico funcionalista sobre o intuitivo, a ordem longa e larga sobre o imprevisível.

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

De 24 a 30 de janeiro de 2022


Fernando de Albuquerque (1942-2022), cidadão e aristocrata, o Morgado de Mateus, foi exemplo de quem soube ligar em permanência a história longa à memória presente que sempre se vai reconstruindo.


NO SOLAR DE MATEUS…
Quando nos despedimos com o afeto de uma amizade de mais de quarenta anos em novembro passado por ocasião da entrega do Prémio Vasco Graça Moura da Cidadania Cultural a Emílio Rui Vilar não poderia suspeitar que seria a última vez que nos encontrávamos neste mundo. Registo, porém, o sorriso de sempre do Fernando – o mesmo desde que o conheci, graças a Francisco Sá Carneiro, num velho encontro, animado pela ideia de contruirmos uma democracia social e cultural, que pudesse pôr Portugal numa Europa moderna e num mundo global, no qual a língua portuguesa se afirmasse num projeto de paz e de desenvolvimento, com novas independências africanas, nova relação com o Brasil e uma complementaridade viva num mundo global. E o Solar de Mateus tornou-se um lugar de encontros e de afirmação de uma cultura plural, aberta, cosmopolita, criativa e exigente. A democracia tinha de cultivar a qualidade. Portugal deveria tornar-se um ponto de encontro do que melhor se fazia, deixando o velho estigma de velha ditadura, isolada e pobre. Quem visita a Casa de Mateus apercebe-se de que não há cultura sem vida, sem o fervilhar das ideias e das iniciativas, sem as personalidades que animam a história. Fernando de Albuquerque, cidadão e aristocrata, o Morgado de Mateus, foi o exemplo de quem sempre foi capaz de ligar em permanência a história longa à memória que sempre se vai reconstruindo. Conheci-o no momento em que a democracia se contruía, em 1974. Era a realização da liberdade que estava em causa e, conhecendo a antiga linhagem donde provinha, senti-lhe sempre uma grande coerência, menos preocupada com o passado e mais empenhada num futuro de modernidade e de mudança. Desde cedo, tive o gosto de percorrer os salões da velha casa, nunca como um museu, mas como um lugar onde encontrava amigos e pessoas interessantes, preocupados com o futuro do Portugal democrático na relação com a Europa e o mundo, fazendo da cultura um fecundo diálogo. Os seminários Repensar Portugal, no final dos anos setenta, foram essenciais para a abertura de novos horizontes, assim como os Encontros Internacionais de Música, a instituição do Prémio D. Diniz, os Seminários de Tradução de Poesia Viva, o Instituto Internacional Casa de Mateus, as Residência de Artistas, a atividade agrícola e turística, tudo constituiu um modo ativo de ligar memória e desenvolvimento, democracia e arte. E não esquecemos a atribuição do Prémio Morgado de Mateus, apenas destinado a figuras excecionais no domínio da cultura, a Miguel Torga e a Carlos Drummond de Andrade (1980) e a Vasco Graça Moura (2013). Todos foram verdadeiros símbolos daquela casa extraordinária. E invoco ainda a memória de um amigo comum, que também nos deixou – Vasco Graça Moura fazia parte da alma de Mateus. O seu talento e a sua cultura fizeram e fazem parte da história desta casa maravilhosa. Estou a ver, Fernando, no seu passo miudinho, cuidando para que tudo se passasse com simplicidade e inexcedível qualidade, para que nos sentíssemos bem a fruir o natural requinte e a permitir que a cultura fluísse, em diálogo genuíno e rico entre a tradição e o futuro. E foi com especial honra e gosto que condecorei na Casa de Mateus em nome do Estado português, em representação do Presidente Jorge Sampaio, Gustav Leonhardt numa justíssima homenagem à figura marcante do panorama musical mundial, demonstração de uma cultura sem fronteiras.


MONUMENTO EMBLEMÁTICO DO BARROCO
Numa viagem em Portugal, se há monumento emblemático do barroco nortenho é o Solar de Mateus, a que Fernando, na tradição de seus antepassados e especialmente de seu pai, instituidor da Fundação da Casa de Mateus, se entregou de alma e coração com entusiasmo e cuidadoso respeito pela essência do património cultural como realidade viva. O Palácio foi mandado contruir, na primeira metade do século XVIII, pelo terceiro Morgado de Mateus, D. António José Botelho Mourão, presumivelmente desenhado por Nicolau Nasoni, constituído pela imponente casa principal, uma capela, adega e maravilhosos jardins. A aplicação dos pináculos sobre os telhados e uma decoração elegante concede um carácter único ao monumento setecentista, cuja importância é enriquecida por uma biblioteca de 6000 volumes, no seio da qual se destaca a notável Edição Monumental de “Os Lusíadas” (1817), graças ao quinto Morgado de Mateus, D. José Maria de Sousa Botelho Mourão e Vasconcelos, influente diplomata, designadamente no período napoleónico. A direção artística da obra esteve a cargo do pintor François Gerard, sendo as gravuras, estampadas por Durand, da autoria de Alexandre Desenne e de Alexandre Fragonard (filho do célebre Jean-Honoré). O Morgado conservou em seu poder as primeiras provas tipográficas e as estampas em cobre que se encontram na biblioteca da Casa. São dois autênticos monumentos nacionais, a casa e a obra de arte. Fernando de Albuquerque sempre o compreendeu, procurando afirmar essa responsabilidade como uma atenção especial à cultura enquanto sinal presente de vitalidade e de cidadania. 

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS À PRINCESA DE AGORA E SEMPRE


Minha Princesa de mim:


   Acordo cedo, muito cedo, no quarto grande e sem cortinas nas janelas que dão para um vale de campos livres e arborizados. Já clareia o ar lá fora, mas está ainda esconso e escuro o dia anunciado, deixo-me estar deitado, com a cabeça apoiada em almofadas altas, para contemplar melhor o desenrolar do novo dia. Virado a sul, vejo o horizonte incendiar-se pouco a pouco, pelo fogo do sol que se ergue a leste e vai acendendo o céu inteiro, para depois colorir a terra e iluminar, uma a uma, as coisas percetíveis. Pensossinto este primeiro momento dialético do dia que, ao unir-nos na sua luminosidade, marca-nos também na individualidade de cada existência: somos diferentes talvez por nos distinguirmos na comunhão do mesmo ser. E sei que lá longe, no outro lado da terra, nesse a que chamamos antípodas, este mesmo sol se apaga agora, e se desenrola sobre a mesma terra de lá o manto escuro da noite que, mais logo, chegará aqui. 


   Tais movimentos têm os seus tempos, mas são momentos contraditórios no espaço em que, simultaneamente, se verificam como o mesmo e o seu oposto: este sendo agora o que outro foi e voltará a ser. Quando me ocorre esta contemplação do mistério do ser que incessantemente se anula e regressa, no súbito silêncio do meu pensarsentir escuto o Bolero de Ravel, qual movimento perpétuo.


   Assim também, ao lento romper da bruma matinal pelo sol nascente, me acontece recair no torpor de um sono que termina, e me parece ouvir a noite moribunda a cantar-me, num sussurro de mãe que embala: dorme, meu menino, dorme bem. E caio, sem defesa, no turbilhão silencioso do movimento do mundo todo. 


   Não é fácil comungar o universo. Não sou, não somos, Deus. Mas é bom tentar. Como quando procuro falar contigo, e só o teu-nosso silêncio nos escuta e responde. Será que falaremos sempre? Como agora?


Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

EVOCAÇÃO DE ESPAÇOS TEATRAIS NA ILHA DA MADEIRA


Faz-se hoje referência à tradição de edifícios vocacionados para a atividade cultural na Madeira. E desde já é de assinalar que para lá da indiscutível beleza natural e urbana, o meio em que se inscreve, independentemente da valorização socioeconómica respetiva e como tal também indiscutível, pode não parecer propriamente dominado pelas atividades e tradições do espetáculo teatral...


Mas muito embora: existe na Madeira uma tradição cultural de teatros e edifícios de espetáculo, que vem do século XVIII. Assim, a chamada Comédia Velha data de 1780 e sobreviveu até 1829. O Teatro Grande foi edificado junto ao Palácio de São Lourenço em 1776 e demolido em 1833. E seguiram-se numerosas salas de espetáculo: o Teatro do Bom Gosto, assim mesmo, o Teatro Thalia, ou o Teatro Baltazar Dias que, na sucessão de mudanças políticas, se chamou Teatro D. Maria Pia, inaugurado em 1888 e sucessivamente denominado Theatro Funchalense e Teatro Manuel de Arriaga, até à homenagem ao grande poeta madeirense Baltazar Dias.


No início do século passado, este Teatro (então) D. Maria Pia marcava já pela qualidade da sala e pela dimensão, com frisas, duas ordens de camarotes, plateia e geral, pela beleza arquitetónica exterior e interior: mas marcou também por ser, pelo menos deste o início do século XX, propriedade da Câmara Municipal do Funchal, o que na época não era muito habitual!...


Mas na Madeira os teatros não se concentram apenas no Funchal, longe disso.


Assim registe-se que existe na Calheta como que uma tradição de centros culturais que têm motivado e justificado sucessivas reestruturações de edifícios. Vejamos um caso mais recente.


Desde logo, remontando a 2004/5, assinala-se a articulação da antiga Casa das Mudas, assim mesmo denominada, com um chamado Centro das Artes.


Efetivamente, tal como tivemos ensejo de referir em estudo efetuado no âmbito do Centro Nacional de Cultura, o Centro Cívico do Estreito da Calheta foi inaugurado naquele ano e corresponde a reformulação da antiga Casa das Mudas, segundo projeto de Carlos Baptista, Freddy Ferreira César, Rodrigo Cascais e Alexandre Sousa.


O edifício denominado Centro das Artes-Casa das Mudas, projeto do arquiteto Paulo David, que citamos ao referir que o projeto como que simula “um grande conjunto de peças esculpidas através também da utilização de basalto”.


E salientamos no nosso livro a aproximação à paisagem, num conjunto, precisamente, que se integra no paisagismo vertiginoso da montanha a pique sobre o mar.  (in “Teatros em Portugal – Espaços e Arquitetura” ed. Mediatexto e CNC pág, 101).

DUARTE IVO CRUZ

Obs: Reposição de texto publicado em 12.01.19 neste blogue.

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