CRÓNICAS PLURICULTURAIS
92. A OBRA E O ANONIMATO
Pode separar-se a obra do seu autor.
Daí que possa haver bons escritores, cineastas, escultores, pintores e artistas em geral, e más pessoas ou maus cidadãos.
Nem as tendências pró-fascistas do futurismo italiano, nem o fascismo de Ezra Pound, nem o alcoolismo e fúrias explosivas de Hemingway que findavam em maus-tratos e humilhações da esposa, nem a ideologia comunista de José Afonso, entre tantos exemplos, impediram o reconhecimento da sua obra.
A separação entre a obra e o autor garante a pureza em termos da criação artística.
Seja o autor conhecido ou desconhecido.
Pelo que também é defensável que a não revelação da verdadeira identidade seja legítima, focando-se o destinatário da obra (leitor e público em geral) no livro, pintura, escultura, obra de arte, não sendo contagiado pelos efeitos mediáticos associados ao seu criador.
Nesta perspetiva, também o anonimato pode garantir a pureza da obra.
O que importa, de novo, é a obra, não o autor.
Surge na memória a decisão da escritora italiana Elena Ferrante de não querer aparecer em público nem revelar a sua verdadeira identidade.
Mas se é a obra que importa, o anonimato pode de igual modo ser visto como uma forma de o autor preservar a sua liberdade, libertando-o de compromissos públicos e preconceitos pré-estabelecidos coligados a um nome, e recorrendo a pseudónimos, por exemplo.
E se é falacioso fixar uma relação direta entre a obra e o seu autor, isso não exclui que para além de ser fundamental conhecermos a obra, também não o seja conhecer a circunstância em que foi criada pelo autor.
Pois se importa a obra, também importa o nome.
Por maioria de razão num mundo em que o processo criativo visa um reconhecimento permanente do que permanecerá e será esquecido, rumo a uma imortalidade, exposição e glória mediática quase sempre desejada pelo do autor da obra.
07.01.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício