"OS CORVOS"
De 1953 a 1967, o “DN” publicou ao domingo, sempre na mesma página, sem assinatura, mas com a marca indelével que todos sabiam de quem era, sob o símbolo da caravela e dos corvos de Lisboa, uma crónica semanal. Tratava-se dos imperdíveis “Os Corvos”, da autoria de Leitão de Barros, de que foram publicadas duas preciosas coletâneas, uma até 1959 e outra até 1961, ilustradas por João Abel Manta – com título de sabor queirosiano: “Sobre a Nudez Nacional da Publicidade o Manto Diáfano da Tipografia”. Reunia-se nessa gaiola um bando de corvos saídos de uma negra capoeira para dizerem, sem apelo nem agravo, de sua justiça… E assim se liam algumas bicadas certeiras nos “passarões” do tempo, como outrora “As Farpas” tinham alvejado a estupidez citadina. Nada de Lisboa passava despercebido ao cronista, desde a recuperação de Alfama, numa causa partilhada com Afonso Lopes Vieira, às ruínas do Carmo, ao restauro do Castelo, às vicissitudes da Avenida da Liberdade, passando pela falta de atenção à zona ribeirinha de Lisboa (causa pela qual tanto clamou no deserto), sem perder de vista a limpeza, o turismo e a hotelaria, na altura tão esquecidos. Atente-se num exemplo apenas, com o título “Alta Incultura”: “Nunca saem destes passarocos elogios com água na boca. Mesmo quando dizem tolices, é a seco. (Além disso, os ‘corvos’ estão de licença ilimitada sem vencimento – a única coisa sem limites que o Estado consente – e não tem pretensões nas altas esferas, pirâmides ou prismas). Assim, é sincero o seu aplaudir a este primeiro enlace que se vê dado esta semana (a visita do Ministro da Educação às agremiações populares) entre a nossa alta cultura e a nossa cultura popular – as duas manas sempre de relações frias, com pernóstica preocupação de não invadirem os respetivos ‘ladrilhos’ de que a pura e simples CULTURA é feita”. Os temas são muito diversos, avultando o combate ao mau gosto, à incivilidade, à pompa e à prosápia, ao ridículo, à mediocridade, à inveja e à censura. Joana Leitão de Barros e Ana Mantero em “Leitão de Barros – A Biografia Roubada” (Bizâncio, 2019) dão-nos o indispensável retrato, tantas vezes inesperado, do ambiente que rodeava a personalidade multifacetada e plena de imaginação, sem a qual não podemos compreender o Portugal do século XX.
E se falo de “Os Corvos”, não esqueço “Lisboa Crónica Anedótica” (1930), uma preciosidade “sui generis” no cinema mudo. É muito diferente de “Douro Faina Fluvial”, um caso genial. Na “Crónica”, há uma caricatura sobre “como se nasce, se vive e se morre em Lisboa”, desde os bebés do amanhecer aos ciprestes do pôr do sol. Ao contrário de Oliveira, há rábulas de atores populares, para gáudio do público – Nascimento Fernandes, um desajeitado sinaleiro, Vasco Santana, rotundo revisor no elétrico, o inconfundível Costinha, risonho guarda-freio, numa luzida lista com Berta Bivar, Chaby Pinheiro, Estevão Amarante, Alves da Cunha, Adelina Abranches, Maria Lalande, Teresa Gomes, Beatriz Costa, Erico Braga. São apontamentos ilustrativos, um pouco como “Os Corvos”, atualizando a “Lisboa em Camisa” de Gervásio Lobato. Graças a António Lopes Ribeiro, vi o filme, há sessenta anos, em casa de meus avós, com uma amiga da família, que a crónica destacava, Angélica Plantier, campeoníssima de Ténis, como Suzanne Lenglen ou João Vila Franca, notável enfermeira de guerra no Corpo Expedicionário Português, em Ambleteuse. Não esqueço esse momento, nem o documento único para vermos a cidade que desapareceu: a Praça da Figueira (que veremos no “Pátio das Cantigas”), as varinas, os aguadeiros, os saloios, os vigaristas dos contos, os elétricos à espera de quem se despede, os banhistas da Cruz Quebrada. Sem a câmara de Leitão de Barros tudo se teria perdido…
Guilherme d'Oliveira Martins