CRÓNICAS PLURICULTURAIS
93. POESIA E LIBERDADE
OSIP MANDELSTAM: IN MEMORIAM
Vivemos sem sentir o chão nos pés,
A dez passos não se ouve a nossa voz.
Uma palavra a mais e o montanhez
Do Kremlin vem: chegou a nossa vez.
Seus dedos grossos são vermes obesos.
Suas palavras caem como pesos.
Baratas, seus bigodes dão risotas;
Brilham como um espelho as suas botas.
Cercado de um magote subserviente,
Brinca de gato com essa subgente.
Um mia, outro assobia, outro geme.
Somente ele troveja e tudo treme.
Forja decretos como ferraduras:
Nos olhos! Nos quadris! Nas dentaduras!
Frui as sentenças como framboesas.
O amigo Urso abraça as suas presas.
Osip Mandelstam, poeta russo da primeira metade do século XX, escreveu um poema contra Estaline, apontando-o como o assassino de bigode de baratas, sendo preso e exilado num campo de trabalhos forçados, onde morreu.
Terá dito, da União Soviética, ironizando e enquanto vivo, segundo testemunho da mulher: “Não te podes queixar, em mais nenhum sítio há tanto respeito pela poesia, até se mata por causa dela”.
Ironizava que ninguém prezava tanto a poesia como os regimes totalitários, onde um poema lhe custou a vida.
Ao tentar derrubar o ditador com um poema empenhado e de risco total, provou que a poesia não pode coabitar com a negação da liberdade, podendo ser tida como perigosa.
A poesia é a afirmação por inteiro da liberdade, do refletir sobre a vida e o ser humano, havendo uma tensão não resolvida entre ela e o poder quando questiona a negação da vida em dignidade e a atividade criativa.
O poema resistiu e ficou, para memória futura, 131 anos após o nascimento do seu autor, a 14 de janeiro de 1891, que morreu no Gulag, Sibéria, em 1938, com 47 anos.
14.01.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício