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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS À PRINCESA DE AGORA E SEMPRE


Minha Princesa de mim:


   Acordo cedo, muito cedo, no quarto grande e sem cortinas nas janelas que dão para um vale de campos livres e arborizados. Já clareia o ar lá fora, mas está ainda esconso e escuro o dia anunciado, deixo-me estar deitado, com a cabeça apoiada em almofadas altas, para contemplar melhor o desenrolar do novo dia. Virado a sul, vejo o horizonte incendiar-se pouco a pouco, pelo fogo do sol que se ergue a leste e vai acendendo o céu inteiro, para depois colorir a terra e iluminar, uma a uma, as coisas percetíveis. Pensossinto este primeiro momento dialético do dia que, ao unir-nos na sua luminosidade, marca-nos também na individualidade de cada existência: somos diferentes talvez por nos distinguirmos na comunhão do mesmo ser. E sei que lá longe, no outro lado da terra, nesse a que chamamos antípodas, este mesmo sol se apaga agora, e se desenrola sobre a mesma terra de lá o manto escuro da noite que, mais logo, chegará aqui. 


   Tais movimentos têm os seus tempos, mas são momentos contraditórios no espaço em que, simultaneamente, se verificam como o mesmo e o seu oposto: este sendo agora o que outro foi e voltará a ser. Quando me ocorre esta contemplação do mistério do ser que incessantemente se anula e regressa, no súbito silêncio do meu pensarsentir escuto o Bolero de Ravel, qual movimento perpétuo.


   Assim também, ao lento romper da bruma matinal pelo sol nascente, me acontece recair no torpor de um sono que termina, e me parece ouvir a noite moribunda a cantar-me, num sussurro de mãe que embala: dorme, meu menino, dorme bem. E caio, sem defesa, no turbilhão silencioso do movimento do mundo todo. 


   Não é fácil comungar o universo. Não sou, não somos, Deus. Mas é bom tentar. Como quando procuro falar contigo, e só o teu-nosso silêncio nos escuta e responde. Será que falaremos sempre? Como agora?


Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira