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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

"OS CORVOS"

 

De 1953 a 1967, o “DN” publicou ao domingo, sempre na mesma página, sem assinatura, mas com a marca indelével que todos sabiam de quem era, sob o símbolo da caravela e dos corvos de Lisboa, uma crónica semanal. Tratava-se dos imperdíveis “Os Corvos”, da autoria de Leitão de Barros, de que foram publicadas duas preciosas coletâneas, uma até 1959 e outra até 1961, ilustradas por João Abel Manta – com título de sabor queirosiano: “Sobre a Nudez Nacional da Publicidade o Manto Diáfano da Tipografia”. Reunia-se nessa gaiola um bando de corvos saídos de uma negra capoeira para dizerem, sem apelo nem agravo, de sua justiça… E assim se liam algumas bicadas certeiras nos “passarões” do tempo, como outrora “As Farpas” tinham alvejado a estupidez citadina. Nada de Lisboa passava despercebido ao cronista, desde a recuperação de Alfama, numa causa partilhada com Afonso Lopes Vieira, às ruínas do Carmo, ao restauro do Castelo, às vicissitudes da Avenida da Liberdade, passando pela falta de atenção à zona ribeirinha de Lisboa (causa pela qual tanto clamou no deserto), sem perder de vista a limpeza, o turismo e a hotelaria, na altura tão esquecidos. Atente-se num exemplo apenas, com o título “Alta Incultura”: “Nunca saem destes passarocos elogios com água na boca. Mesmo quando dizem tolices, é a seco. (Além disso, os ‘corvos’ estão de licença ilimitada sem vencimento – a única coisa sem limites que o Estado consente – e não tem pretensões nas altas esferas, pirâmides ou prismas). Assim, é sincero o seu aplaudir a este primeiro enlace que se vê dado esta semana (a visita do Ministro da Educação às agremiações populares) entre a nossa alta cultura e a nossa cultura popular – as duas manas sempre de relações frias, com pernóstica preocupação de não invadirem os respetivos ‘ladrilhos’ de que a pura e simples CULTURA é feita”. Os temas são muito diversos, avultando o combate ao mau gosto, à incivilidade, à pompa e à prosápia, ao ridículo, à mediocridade, à inveja e à censura. Joana Leitão de Barros e Ana Mantero em “Leitão de Barros – A Biografia Roubada” (Bizâncio, 2019) dão-nos o indispensável retrato, tantas vezes inesperado, do ambiente que rodeava a personalidade multifacetada e plena de imaginação, sem a qual não podemos compreender o Portugal do século XX.


E se falo de “Os Corvos”, não esqueço “Lisboa Crónica Anedótica” (1930), uma preciosidade “sui generis” no cinema mudo. É muito diferente de “Douro Faina Fluvial”, um caso genial. Na “Crónica”, há uma caricatura sobre “como se nasce, se vive e se morre em Lisboa”, desde os bebés do amanhecer aos ciprestes do pôr do sol. Ao contrário de Oliveira, há rábulas de atores populares, para gáudio do público – Nascimento Fernandes, um desajeitado sinaleiro, Vasco Santana, rotundo revisor no elétrico, o inconfundível Costinha, risonho guarda-freio, numa luzida lista com Berta Bivar, Chaby Pinheiro, Estevão Amarante, Alves da Cunha, Adelina Abranches, Maria Lalande, Teresa Gomes, Beatriz Costa, Erico Braga. São apontamentos ilustrativos, um pouco como “Os Corvos”, atualizando a “Lisboa em Camisa” de Gervásio Lobato. Graças a António Lopes Ribeiro, vi o filme, há sessenta anos, em casa de meus avós, com uma amiga da família, que a crónica destacava, Angélica Plantier, campeoníssima de Ténis, como Suzanne Lenglen ou João Vila Franca, notável enfermeira de guerra no Corpo Expedicionário Português, em Ambleteuse. Não esqueço esse momento, nem o documento único para vermos a cidade que desapareceu: a Praça da Figueira (que veremos no “Pátio das Cantigas”), as varinas, os aguadeiros, os saloios, os vigaristas dos contos, os elétricos à espera de quem se despede, os banhistas da Cruz Quebrada. Sem a câmara de Leitão de Barros tudo se teria perdido…


Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

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  De 10 a 16 de janeiro de 2022

 

“Literatura e Cidadania” será o curso que o Centro Nacional de Cultura organizará a partir de fevereiro. Apresentamos hoje a respetiva introdução para conhecimento dos interessados.

 

literatura e cidadania.jpgIlustração de Fernando Bento para o “Boletim Cultural das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian”

 

CINCO TEMAS

A série “Literatura e Cidadania” refere-se à língua portuguesa, sendo organizada em cinco sessões do seguinte modo. “As raízes e as origens – dos Trovadores ao Cancioneiro Geral” começa por analisar o modo como a literatura constituiu um importante esteio para a afirmação da identidade cultural, sendo decisivo o papel desempenhado pelo rei D. Dinis, como poeta na tradição de seu avô o rei Afonso X, o Sábio, de Leão e Castela. O tema de “Os Contos Tradicionais – de Bernardim à Peregrinação” pretende entender o “melting pot” social e cultural projetado na criação literária, desde os Nobiliários, das Crónicas e das tradições narrativas locais até à reflexão de ideias e às experiências romanescas, que articulam o lirismo e a história trágico-marítima evidenciados nas origens da literatura ou na dramaturgia de Gil Vicente, em ligação com a originalidade dos relatos de viagem, onde Fernão Mendes Pinto se singulariza. Já em “A Literatura e a Oratória – de Camões a Vieira” vamos encontrar a maturidade da língua portuguesa, primeiro na poesia com o genial épico e depois na prosa, através da oratória vieirina, que em muito supera os temas religiosos, traduzindo-se na afirmação de um pensamento ético e cívico, bem evidente ao longo da riquíssima produção literária. O quarto capítulo refere-se à evolução “Das Luzes ao Romantismo: Garrett, Herculano e a Geração de 70 – plantadores de Modernidade”, pretendendo uma análise ampla da idade romântica, na linha analítica de José-Augusto França, desde o século de D. João V e do consulado de Sebastião José, abrangendo a passagem de testemunho de D. Luís da Cunha e a preparação e afirmação do constitucionalismo liberal e do espírito regenerador – numa Europa profundamente influenciada pela necessidade de uma síntese entre idealismo e realismo, entre tradição e modernidade. Assim, além de Garrett e Herculano, Camilo, Júlio Dinis, Eça de Queiroz e Antero de Quental serão as referências marcantes de uma Literatura claramente orientada para uma cidadania crítica e ativa. O quinto capítulo intitulado “A ‘Renascença Portuguesa’ raiz da modernidade – ‘Orpheu’ sinal de futuro” reportar-se-á à génese e desenvolvimento do século XX, marcado por tons claros e escuros, nos quais o período ditatorial deixa na penumbra a cultura, que renasce em 1974, graças à democracia  e à prevalência do pluralismo, que foi favorecendo uma síntese muito rica, num mundo global em que a língua portuguesa, falada nos vários continentes, mas profundamente diversa, se enriqueceu mutuamente em diálogo com outras culturas. A presença fulgurante de Fernando Pessoa e a atribuição do prémio Nobel a José Saramago culminaram a afirmação de um conjunto rico de escritores da língua portuguesa, que demonstraram significativa criatividade.

 

UMA IDENTIDADE ABERTA E PLURAL

A decisão de adotar o galaico-português como língua oficial para os tabeliães e o Direito constituiu um impulso decisivo para a independência do Reino de Portugal. Pode mesmo dizer-se que a cultura se associou à definição pioneira das fronteiras em Alcanizes (1297) e à definição centralizadora do poder real em aliança com o poder municipal. A afirmação da literatura faz-se depois pela originalidade e força criadora de um Fernão Lopes, e pela articulação entre a forte tradição lírica e a necessidade de a projetar nos contos tradicionais, com ligações europeias, no contexto do fundo céltico e do ciclo bretão sob a influência do rei Artur, de Amadis de Gaula ou do Palmeirim de Inglaterra. Encontramos a procura de uma absoluta originalidade que se afirmará na “Peregrinação” em complemento da renovação apresentada por Cervantes. Entretanto, a lírica e a épica de Camões representam, com solidez, a maturidade de uma identidade cultural aberta, capaz de articular o maravilhoso cristão e o maravilhoso pagão, com reencontro das raízes clássicas gregas e latinas, em especial através da influência de Virgílio. Complementarmente, o Padre António Vieira supera significativamente uma lógica providencialista ou messiânica (diríamos sebastianista), concebendo a História do Futuro como uma artificiosa relação entre vontade e vocação universalista do humanismo enquanto cultura de convergência e de paz, como se vê numa leitura atenta da “Clavis Prophetarum”. A Monarquia dual ibérica e a Corte na Aldeia (1580-1640) suscitam uma literatura de resistência a que sucede um tempo marcado pelas riquezas vindas da exploração do ouro brasileiro, depois das tentativas sem sucesso de atrair os cristãos-novos emigrados através da ação de Vieira.

 

PERSPETIVAS DE MUDANÇA

O século XVIII português abriu perspetivas de mudança, que as guerras peninsulares interromperam ou perturbaram até à independência do Brasil. No entanto, a criatividade literária desenvolveu-se pelo reconhecimento progressivo das liberdades públicas – desde a Arcádia, envolvendo a Marquesa de Alorna ou Bocage, na importante transição do classicismo para o romantismo, abrindo-se novos caminhos, que culminaram, depois da Revolução constitucionalista liberal (1820), na emigração política e na guerra civil que irão marcar o Romantismo, como realidade complexa, de múltiplas influências e resultados. É o tempo em que Garrett e Herculano marcam um percurso de cidadania e de modernidade, assente na determinação e na vontade, para pôr Portugal ao ritmo da Europa, sem esquecer as suas raízes culturais e históricas. A conferência de Antero de Quental sobre “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” no Casino Lisbonense constitui um marco essencial no anúncio das novas tendências que o século XX concretizará. A “Renascença Portuguesa”, após a implantação da República, albergará no seu seio Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e António Sérgio – o saudosismo, “Orpheu” e a “Seara Nova”. O código genético do século XX cultural português definir-se-á através de uma matriz plural. A língua portuguesa, com uma afirmação global no mundo, abrangerá, assim, uma ampla diversidade cultural, cuja riqueza é tanto maior quanto melhor pudermos compreender essa complexidade. De José Régio a Sophia, de Cardoso Pires a Saramago e António Lobo Antunes, de Jorge Amado a Mia Couto, de Guimarães Rosa a Pepetela e Germano Almeida as diferenças marcam as complementaridades…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

MAIS OUTRA CARTA A JOSÉ SARAMAGO

 

Meu Caro José:


...e o padre Francisco Gonçalves, como lhe competia, respondeu, Todo o saber está em Deus, Assim é, respondeu o Voador, mas o saber de Deus é como um rio de água que vai correndo para o mar, é Deus a fonte, os homens o oceano, não valia a pena ter criado tanto universo se não fosse para ser assim, e a nós parece-nos impossível poder alguém dormir depois de ter dito ou  ouvido dizer coisas destas.


   
Ao escrever estas poucas linhas, mais do que as suas personagens, estaria o próprio autor inquieto. Você mesmo o confessa, meu caro José, ter-lhe-á sido difícil conciliar o sono depois de as ter pensado e redigido... A mente humana é muito sensível, por isso gosto de dizer que a expressão pensossinto me parece mais realista e acertada, e ainda mais conforme à inquietação que nos percorre e, por vezes, nos faz tremer, mesmo quando não tememos. Da ignorância diremos que é noite do espírito, escuridão, não temos medo necessariamente do que ela esconde, receamos, sim, a nossa própria incapacidade de desenhar as coisas e de, tão temerariamente quanto possível, as nomearmos. Noutro passo do seu Memorial, o José Saramago também se interroga sobre o significado de só Deus, o Sem Nome, saber o nome de tudo e todos, deixando-nos a nós, humanos, o labirinto que vamos semeando de invenções. Não ficou escrito assim, nem por esta ordem, mas assim veio habitar o meu pensarsentir.


   Aliás, a resposta do padre Francisco Gonçalves acima transcrita resulta de interpelação feita pelo padre Bartolomeu Lourenço, como significativamente o José conta no Memorial : Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isto para sabermos que homem era nem que água corria, a água que correu no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal, padre Francisco Gonçalves, isto dissera o padre Bartolomeu Lourenço antes de recolher ao seu quarto...


   
Tenho para comigo que a nossa humana inquietação brota duma qualquer mista consciência de perplexidade (ou, talvez, humilhação revolta) e de curiosidade (pertinaz, teimosa, ousada) - e, ao pensá-la assim, estou sentindo outra iluminação, um encanto novo no conto genético da tentação do fruto proibido da árvore do conhecimento. Será esse o paradoxo da condição humana, ou descoberta da nossa contingência na própria ânsia do cumprimento de uma promessa inicial e fundadora da nossa própria humanidade? Terão Adão e Eva errado por desejarem conhecer a verdade? Tal desejo não seria, afinal, já parte própria deles mesmo? Ou serão os erros cometidos condição necessária do conhecimento do bem e do mal?


   
No Memorial, eis o que diz padre Bartolomeu a Domenico Scarlatti: ... é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente que conhecer os erros. E praticá-los, não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro...


... Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo, não está homem livre de julgar abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico, e logo disse o padre, Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta.


 
Ou talvez fosse só Pilatos cético, pois Jesus, Deus que era, não só se manteve calado durante todo o processo, como quiçá entendia que não chegara a hora de revelar um vislumbre sequer da verdade ontológica que só a Deus pertence... A cada um de nós cabe a tarefa de procurar a verdade possível de encontrar, e só o amor posto nesse trabalho nos trará o perdão que o ter-se amado consegue. E bem diz, meu caro Saramago: Procura cada qual, por seu próprio caminho, a graça,  seja ela o que for, uma simples paisagem com algum céu por cima, uma hora do dia ou da noite, duas árvores, três se forem as de Rembrandt, um murmúrio, sem sabermos se com isto se fecha o caminho ou finalmente se abre, e para onde, para outra paisagem, ou hora, ou árvore, ou murmúrio, veja-se este padre que anda a tirar de si um Deus e a pôr outro, mal sabendo que proveito haverá na troca, e, se proveito houver, quem dele finalmente aproveitará, veja-se este músico que outra música que esta não saberia compor, que não estará vivo daqui a cem anos, para ouvir a primeira sinfonia do homem, erradamente chamada Nona...


   
Ao Deus sem nome - e talvez por isso mesmo - deram os humanos muitos nomes. Ao Deus desconhecido inventaram histórias e preceitos, de forma a torná-lo por vários gostos reconhecível. Mas há um - cujo nome está acima de qualquer nome - que nos envia o seu Primogénito a ensinar-nos o Santo Nome: PAI. E nós assim dizemos: Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o teu nome... Veja bem, meu caro José Saramago, como, por este caminho, me vou despindo de orfandade, e pensossinto que religiosa ou religioso é todo o ser humano que, dia a dia, sai de si para ir em busca do Pai...


Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 25.04.21 neste blogue.

EVOCAÇÃO DO TEATRO AVENIDA

 

Em 1888 abre ao público em Lisboa o teatro Avenida, situado na então ainda relativamente recente Avenida da Liberdade. Foi mandado construir por Miguel Angelo Lambertini, figura destacada nos meios culturais e empresariais. Inaugurou em 11 de fevereiro daquele ano: é de assinalar a iniciativa, num contexto urbano que, apesar do incremento decorrente da Avenida, não representava ainda o eixo cultural que viria mais tarde a alcançar.


Luciano Reis refere que o Teatro Avenida «registou o seu primeiro grande êxito com a opereta “O Burro do Senhor Alcaide” de D. João da Câmara, Gervásio Lobato e Ciríaco de Cardoso», autores de grande projeção na época e ainda hoje, sendo certo que a peça referida marcou uma época e confirmou a notável ainda hoje abrangência estilística e o sentido de espetáculo dos autores. (cfr. “Teatros Portugueses”, Ed. Sete Caminhos).


E Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos evocam o Teatro Avenida, reproduzindo a descrição feita na época por João Paulo Freire:


“Teatro acanhado, sem segurança para o público, em caso de incêndio, embora lhe tornassem obrigatória uma saída pela porta lateral. Entalado entre prédios de diminutas dimensões, o corredor que serve o bufete é de tal forma acanhado que em noites de enchente quase se não dá um passo. Exteriormente não tem recomendação possível. Internamente, à parte os defeitos já apontados, é simples mas gracioso”.


Acrescentam as duas autoras citadas que o Avenida foi explorado por sucessivos empresários de prestígio na época: Luis Galhardo, Luísa Satanela e Estêvão Amarante, Maria Matos e Mendonça de Carvalho e, anos depois, pela Nova Companhia do Teatro de Sempre, dirigida por Gino Saviotti, o qual marcou uma presença de grande qualidade no meio teatral português como diretor de companhia, como crítico e doutrinador e como professor no Conservatório Nacional. (cfr. “O Teatro em Lisboa no Tempo da Primeira República”, Ed. MNT 2004, pág. 50).


E assinala-se que a última empresa citada muito contribuiu para a atualização, digamos assim, dos repertórios tal como nesses anos 50/60 do século passado eram explorados em Portugal.


Mas voltando à época da fundação do Teatro Avenida, encontramos num autor francês já aqui citado, Henry Lionnet, uma descrição no mínimo desconfiada para mais não dizer, da exploração artística do Teatro Avenida.


Lionnet escreve em 1898. Começa por elencar os teatros - edifícios em Lisboa e no Porto e classifica-os basicamente a partir dos repertórios habituais, atribuindo ao Teatro Avenida uma como que vocação “para a opereta popular e para a revista”, o que significa de certo modo uma desqualificação relativamente a outros teatros em Lisboa e no Porto.


E afinal, ao longo do século passado, repita-se, o Teatro Avenida não poucas vezes marcou a cultura cénico-dramatúrgica da época!


Enfim: em 13 de dezembro de 1967, o Teatro Avenida, dirigido então por Amélia Rey Colaço na sequência do incêndio do Teatro Dona Maria II ocorrido em 1964, arde também!


Lá estive no dia seguinte. E escrevi então estes comentários que aqui reproduzo:


“O Avenida era um teatro feio, incómodo, anacrónico; muito embora - era um teatro. E hoje é um monte de ruínas que necessariamente nos fez lembrar, quando as visitamos na manhã do desastre, as ruínas do palco do Variedades, as ruínas do D. Maria II, as ruínas do Ginásio”.


É que todos estes teatros arderam!

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

92. A OBRA E O ANONIMATO


Pode separar-se a obra do seu autor.

Daí que possa haver bons escritores, cineastas, escultores, pintores e artistas em geral, e más pessoas ou maus cidadãos.

Nem as tendências pró-fascistas do futurismo italiano, nem o fascismo de Ezra Pound,  nem o alcoolismo e fúrias explosivas de Hemingway que findavam em maus-tratos e humilhações da esposa, nem a ideologia comunista de José Afonso, entre tantos exemplos, impediram o reconhecimento da sua obra.  

A separação entre a obra e o autor garante a pureza em termos da criação artística.

Seja o autor conhecido ou desconhecido.

Pelo que também é defensável que a não revelação da verdadeira identidade seja legítima, focando-se o destinatário da obra (leitor e público em geral) no livro, pintura, escultura, obra de arte, não sendo contagiado pelos efeitos mediáticos associados ao seu criador.     

Nesta perspetiva, também o anonimato pode garantir a pureza da obra. 

O que importa, de novo, é a obra, não o autor.

Surge na memória a decisão da escritora italiana Elena Ferrante de não querer aparecer em público nem revelar a sua verdadeira identidade. 

Mas se é a obra que importa, o anonimato pode de igual modo ser visto como uma forma de o autor preservar a sua liberdade, libertando-o de compromissos públicos e preconceitos pré-estabelecidos coligados a um nome, e recorrendo a pseudónimos, por exemplo.  

E se é falacioso fixar uma relação direta entre a obra e o seu autor, isso não exclui que para além de ser fundamental conhecermos a obra, também não o seja conhecer a circunstância em que foi criada pelo autor.

Pois se importa a obra, também importa o nome.  

Por maioria de razão num mundo em que o processo criativo visa um reconhecimento permanente do que permanecerá e será esquecido, rumo a uma imortalidade, exposição e glória mediática quase sempre desejada pelo do autor da obra.      

 

07.01.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

2022

 

As coisas da condição humana continuam a ser coisas simples, verdades antigas como a necessidade de entender o mundo, a procura da origem, a raiz dos fenómenos e dos sentires.


Poder falar destas realidades, é domínio de quem com extrema sabedoria, consegue a simplicidade de as dizer.


Descuidam – ou não?-  as gentes, no atribuir-se si mesmas utilidades com tamanha facilidade e jeito tão atreito ao seu milímetro, que explicam com aptidão o sucesso dos maus canais televisivos, bem como os seus viveres reveladores de que sem o tal vil metal, se descarnavam espalmadas as consequências das suas próprias descobertas.


Afinal, quando será que num novo ano, nos congratularemos com a coragem da pergunta sincera que as gentes farão ao seu pensamento, não recuando nas consequências do ato?


Afinal referimo-nos a uma prática de honestidade intelectual que descobre o átomo da mente não serventuário, nem dócil ao embuste em que se vive.


Afinal a condição humana continua a não ser apenas o discurso de lugares-comuns que tudo mostram para que pouco se veja.


Afinal o que está em jogo é a felicidade do homem numa historicidade que os tem dominado belicosamente numa relação de poder e não de sentido como afirmava Michel Foucault.


Cremos que a orientação no mundo, é uma necessidade humana que deve ser bem mais desenvolvida do que aquela que se investe nos ginásios para orientação física.


Vive-se um tempo de universo concentracionário e exposto sem pudor. Nem parece o quanto dele é ainda tabu, viagem, liberdade, coisas de substância da condição humana.


Sugere Drummond

(…)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


(extrato do poema “Receita de Ano Novo”)

 

Teresa Bracinha Vieira

ANO NOVO: 2022


Os fenomenólogos da religião fazem notar que, mesmo nas sociedades secularizadas, encontramos ainda algo dos mitos cosmogónicos, nomeadamente nos festejos da passagem de ano: folguedos e licenças, uma certa tonalidade orgiástica, alguma "confusão" social na noite de passagem de ano simbolizam o regresso ao estado indiferenciado e caótico de antes da formação do mundo pelos deuses. Volta-se, portanto, de algum modo ao caos das origens, para que o mundo se regenere e se reponha o cosmos: um mundo outra vez novo, ordenado, belo.


Aparentemente, é a repetição. Mas, de facto, é mesmo no novo que nos encontramos: 2022. Nunca houve nem nunca haverá um ano como este em que acabamos de entrar. É novo e único na História da Humanidade e do mundo.


Depois dos eufóricos festejos — este ano, por causa  da pandemia, quase nada —, também haverá alguns pensamentos de meditação.


É tão certo tratar-se de um ano novo que para nós constitui uma incógnita. O que acontecerá?, como será? Até certo ponto, o ano que começa  é programável, mas nunca de modo adequado, pois há o completamente imprevisível: não somos senhores absolutos do tempo, do futuro. Significativamente, em algumas línguas, existem duas palavras para dizer o futuro; no alemão , por exemplo: Futur e Zukunft. Nós, embora não tão acentuadamente, também temos futuro e advento. Para dizermos o futuro até certo ponto programável, pois é continuidade do presente, e futuro enquanto não programável, pois é o que chega, o que vem, não programável. Significativamente, o último livro da Bíblia, o Apocalipse, diz o que é Deus nesta referência ao tempo: “Deus  é Aquele que era, que é e que há-de vir”, quando esperávamos que dissesse: “e que será”. Sendo Deus Aquele que vem, a História está aberta à esperança que não engana.


Nestes dias festivos, lembramos mais os amigos, os familiares, aqueles e aquelas que levamos no coração. Ao menos por esta altura, há uma saudação, uma palavra, um encontro. Mas talvez nenhum de nós, nesta lembrança, tenha deixado de deparar-se com um buraco negro: um amigo, um familiar, uma amiga, que ainda o ano passado cá estavam e já cá não estão. E é uma falta e uma tristeza e um queixume e uma pergunta e talvez uma oração (afinal, rezar também é perguntar...).


Depois, há a História e votos para o novo ano. Foi no dia 1 de Janeiro de 2002 — há vinte anos — que o euro, a nova moeda dos europeus, começou a circular de modo palpável. Desde então, é possível circular de Lisboa a Atenas, a Helsínquia ou a Berlim sempre com a mesma moeda. Quantos acreditariam ainda há poucos anos que isto havia de ser possível? Afinal, há sonhos e utopias que se tornam realidades. No ano anterior, a 15 de Dezembro, houve a Declaração Comum dos Chefes de Estado e de Governo da União Europeia, aprovada na Cimeira de Laeken: "Num mundo globalizado, mas simultaneamente muito fragmentado, a Europa deve assumir as suas responsabilidades na gestão da globalização. O papel que deve desempenhar é o de uma potência que luta decididamente contra todas as formas de violência, terror ou fanatismo, mas que também não fecha os olhos às injustiças gritantes que existem no mundo". Mas hoje sente-se algum mal-estar e até se fala em ameaças de guerra…


O dia primeiro do ano é também o Dia da Paz. A guerra só traz destruição. Foi a 8 de Dezembro de 1967 que o Papa Paulo VI propôs a criação do Dia Mundial da Paz, que se celebraria no dia 1 de Janeiro de cada ano. Como é hábito, este ano o Papa Francisco também escreveu uma mensagem para este dia. Fica aí um apontamento.


Começa com uma constatação: “O caminho da paz permanence, infelizmente, arredio da vida real de tantos homens e mulheres e consequentemente da família humana, que nos aparece agora totalmente interligada. Apesar dos múltiplos esforços visando um diálogo construtivo entre as nações, aumenta o ruído ensurdecedor de guerras e conflitos, ao mesmo tempo que ganham espaço doenças de proporções pandémicas, pioram os efeitos das alterações pandémicas e da degradação ambiental, agrava-se o drama da fome e da sede e continua a predominar um modelo económico mais baseado no individulaismo do que na partilha solidária. Como nos tempos dos antigos profetas, continua também hoje a elevar-se o clamor dos pobres e da terra para implorar justiça e paz.”


Para a construção de uma paz duradoura, propõe três caminhos. 1. O primeiro é o diálogo entre as gerações como ponte entre o passado e o futuro: ele é a base, forma eminente de amor para a realização de projectos compartilhados e sustentáveis. 2. A instrução e a educação são “os alicerces de uma sociedade coesa, civil, capaz de gerar esperança, riqueza e progresso”. Impõe-se um novo paradigma cultural, através de “um pacto educativo global para e com as gerações jovens, que empenhe as família, as comunidades, as escolas e universidades, as instituiçoes, as religiões, os governantes, a Humanidade inteira na formação de pessoas maduras.” 3. O trabalho é indispensával para “construir e preserver a paz”: ele constitui “expressão da pessoa e dos seus dotes, mas também compromisso, esforço, colaboração com outros, porque se trabalha sempre com ou para alguém.” O trabalho “é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal”. Neste domínio, “é chamada a desempenhar um papel activo a política, promovendo um justo equilíbrio entre a liberdade económica e a justiça social.” Bom ano 2022!  

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 de janeiro de 2022

HOMEM DOS SETE OFÍCIOS…

 

José-Augusto França, com a perspicácia que sempre lhe conhecemos, afirmou que “Cottinelli Telmo foi talvez o artista modernista mais inteligente da sua geração”. E quando nos deparamos com a obra multifacetada do artista, reconhecemos que nos múltiplos campos em que interveio deixou marcas de originalidade, de inovação e de uma curiosidade excecional. Minucioso conhecedor do período em que o artista viveu, J.-A. França pôde evidenciar o papel desempenhado pelo arquiteto entre os seus contemporâneos num período muito rico de renovação das artes e do pensamento. Cottinelli (1897-1948) foi arquiteto, desenhador, cartunista, argumentista, decorador, músico, cineasta da “Canção de Lisboa”, poeta, ensaísta, articulista, comunicador nato. António Ferro e Duarte Pacheco escolheram-no pelas suas múltiplas aptidões como arquiteto-chefe da Exposição do Mundo Português (1940). E teve a missão impossível de coordenar doze arquitetos, dezanove escultores e três pintores, entre os quais Almada Negreiros. São múltiplas as marcas da obra que nos deixou, desde a Estação de Sul e Sueste à Standard Elétrica, passando pela Alta de Coimbra – sem esquecer, enquanto presidente do Sindicato dos Arquitetos, o lançamento do Congresso dos Arquitetos de 1948 e os caminhos totalmente novos que então suscitou, falecendo pouco depois num acidente trágico. Teve assim um papel essencial, abrindo um novo tempo, no fim da guerra, marcado pela entrada em cena de uma jovem geração de arquitetos, profissionais e artistas, pela exigência de democratização das novas gerações e pela emergência de uma corrente orientada para o fomento, ditada pela “Linha de Rumo” de Ferreira Dias, depois da morte de Duarte Pacheco (1943) e com a saída de António Ferro do SNI (1949).


Devo salientar um elemento importante. A aventura artística de José Ângelo Cottinelli Telmo teve um marco fundamental em 1920 no mundo da Banda Desenhada (“história de bonecos”, como então se dizia) no “ABC”, com as “Aventuras inacreditáveis do Pirilau que vendia balões”. Cinco anos antes, Stuart de Carvalhais lançara os mais duradouros heróis portugueses dos quadradinhos, “Quim e Manecas”. O “ABC” foi um importante magazine ilustrado, no qual colaboraram os melhores desenhadores modernistas – Emmérico Nunes, Jorge Barradas, Bernardo Marques, além de Stuart, na linha dos caricaturistas da escola do “Simplicissimus”. Cottinelli publicará a seguir “A Grande Fita Americana” (1921), paródia aos filmes e às vicissitudes da uma companhia de cinema. A BD e o cinema têm ligação umbilical. Perante o sucesso das séries de continuados, o jovem acabado de se formar em arquitetura é convidado a criar um jornal infanto-juvenil, o “ABCzinho”, que orientará de 1921 a 1929 e que constituirá um grande sucesso junto do público, no qual iremos encontrar Carlos Botelho, além de Jaime Martins Barata, Raquel Roque Gameiro ou Olavo d’Eça Leal. O aluno do Liceu Pedro Nunes e da Escola de Belas Artes e notável arquiteto tornou-se ainda um dos membros mais destacados da chamada “tribo dos pincéis”, envolvendo as famílias Roque Gameiro, Leitão de Barros e Martins Barata. Como afirmam Carlos Bandeira Pinheiro e João Paulo Paiva Boléo, numa obra notável (O Pirilau Que Vendia Balões…, Baleia Azul, 1999): “Cottinelli marcou indelevelmente a cultura portuguesa da primeira metade do século XX, conseguindo a proeza de fazer muito e bem. (…) Tinha assim o duplo dom de marcar cada género de atividade a que se dedicava e de fazer escola, tornando-se um modelo”… Eis como um genial cultor da Nona Arte (a arte que imediatamente se segue à Fotografia), combatente ativo da hesitação, contra a qual projetou um monumento irónico, foi uma referência cultural de essencial importância.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

De 3 a 9 de janeiro de 2022


“Uma Viagem das Arábias” de Leonor Xavier (Clube do Autor, 2011) é um fantástico relato de uma viagem sentida e vivida pela nossa querida e saudosa amiga.

 


A VIDA É UM MILAGRE
Leonor Xavier dizia: “a vida é um milagre, que procuro aproveitar, mas o forte é a minha relação de pasmo, de um imenso espanto e de gratificação” Era assim a Leonor. Um encontro em que estivesse era sempre uma oportunidade de alegria e de recordação. Tinha um especial talento para a generosidade e para fazer amigos. E gostava de lembrar a afirmação de Agustina Bessa-Luís: “a formosura do mundo é meu tesouro, pois dela faço torres de pensamento. E a grandeza do mundo não me tolhe, porque maior que tudo é a realidade de um coração que ama e sente”. Julgo que está aqui bem expresso aquilo em que sinceramente acreditava. Conhecia-a ainda antes de Direito, nas disciplinas económicas que me interessaram. Quando reencontrei Leonor foi no seu regresso do Brasil, em 1987, havia amigos comuns, trabalhos em conjunto, um grande entusiasmo - Helena e Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, Graça Morais, Raul Solnado, Agostinho da Silva, Ana Vicente, Eduardo Prado Coelho, Teresa Belo e mais recentemente José Tolentino Mendonça – o jornalismo cultural, a literatura, as artes, a poesia, as iniciativas do Centro Nacional de Cultura. Lembro-me de um tempo em que vinha à baila a palavra “escreviver”, na expressão de David Mourão-Ferreira. E Leonor tantas vezes repetia que assim se sentia, a saborear os acontecimentos da vida e o prazer de animar mil conversas, em tertúlias de geometria variável que eram sempre um motivo de novos temas e encontros… Era um tempo em que procurávamos que a afirmação de Emmanuel Mounier “o acontecimento é o nosso mestre interior” se tornasse uma verdadeira realidade. E o exemplo de Tristão de Athaíde ou Alceu Amoroso Lima teve a maior importância. Nessas amizades, “conversar com o António Alçada, segundo Leonor, era um exercício de alegria, pelo improviso, pelo encadeamento de fábulas e de histórias. Podia dizer que os portugueses dramatizam o calor do verão e o frio do inverno. Ou que os portugueses têm vergonha de ser felizes e os brasileiros têm vergonha de ser infelizes”.


TUDO O QUE ERA PORTUGUÊS…
Tudo o que era português entusiasmava-a, mas sempre com o sentido crítico, de exigir que não fizéssemos má figura. Mas a noção de ser português para Leonor era muito ampla. Lia o “Chiquinho” do Baltazar Lopes com genuína emoção, como coisa sua. Emocionava-se com essa obra que deve ser de leitura obrigatória para qualquer amante da língua portuguesa e dos nossos crioulos. Deleitava-se a recordar: “Depois deitávamo-nos de barriga para o ar, namorando o céu carregado de estrelas. Ao fundo o mar fazia um ronco de meter medo. As constelações eram rebanhos pastando, dávamos nomes de vacas conhecidas às estrelas mais brilhantes. Detrás das estrelas, Nossenhor era um velho pastor vigilante do seu gado (…) Ficávamos parados, possuídos de um respeito religioso pelos mistérios com que a monte envolvia nossos corações meninos”. Também amava profundamente o Brasil. Um dia, em Itabira, quando fomos homenagear Carlos Drummond de Andrade na velha casa de família, ele que dizia que a sua casa era uma casa portuguesa, a simpática guia que nos acompanhava emudeceu ao compreender que nada podia explicar, pois Leonor sabia tudo sobre o grande poeta. E em Minas Gerais, em Ouro Preto e em Congonhas, com ela, sentimos que estávamos em casa, ao ouvir: “Aleijadinho sua alma voou / encantada / porque as pessoas não morrem diz joão guimarães rosa / Ele está no outro lado da morte sem cor de candinho portinari / o pintor do menino balanço de gangorra feito anjo no ar / Em Ouro Preto posso ouvir as vozes mineiras / de Itabira de Drummond / e Conceição de Mato Dentro de josé aparecido / e também o Rio de millôr / dos que amei eu guardo as vozes”. Entre rir e pensar, numa conversa à mesa, onde se diz que não se envelhece, porque a palavra puxa a palavra, um dia Nélida Pinõn disse. “a morte é simplesmente deixar a sopa esfriar na mesa, cruzar a porta do jardim sem olhar para trás ao menos para dizer adeus a quem fica e tomar um caminho que não sabe para aonde o leva e do qual nunca mais se retorna”. Leonor achava que essa era uma boa definição de um caminho possível que aceitasse os maiores mistérios. E por um momento pegava no tema para o ligar à vida, à memória, às lembranças. Quando lemos “Casas Contadas”, percebemos que descreve uma extraordinária trajetória de vida, através do ambiente das 13 casas que habitou desde a infância. Acompanhamo-la passo a passo, para descobrir em cada recordação um motivo de vida e de compreensão das pessoas, das pequenas e grandes diferenças. E o último livro que escreveu ainda nos reserva surpresas, que esperamos ansiosamente, com o título “Adolescência”.  Leonor deixou-nos, assim, não só a memória do que fica, mas também o lado peregrino, que busca permanentemente os outros. A distância atraía-a como modo de tomar consciência dos limites. Demos a volta ao mundo e essas viagens ficaram memoráveis. Releio “Uma Viagem das Arábias” e não posso deixar de reviver essas aventuras, no Golfo Pérsico, Sultanato do Oman, Jordânia, Petra, Emiratos Árabes (onde encontrámos a lembrança do piloto árabe de Vasco da Gama) até à magia do Cairo…


DOS QUE AMEI GUARDO AS VOZES
Havia sempre com Leonor Xavier uma inesgotável capacidade de olhar e de nos fazer compreender melhor os segredos e enigmas da vida. Em cada viagem revelava-se a ideia de nos procurarmos no divertimento e no lado alegre da vida, os “Disparates do Mundo” de Chesterton. Quando li o “Livro de receitas dos Lugares imaginários” de Alberto Manguel imaginei-a a cozinhar Salada de Sol, Camarão Nautilus à moda do Capitão Nemo ou Pedaços de Imortalidade. E não precisei de fazer um esforço especial, uma vez que ela nos ensinou em vários dos seus livros receitas deliciosas e modos diversos de definir personalidades diferentes. Assim podia saborear a existência em todas as suas qualidades. Portugal e Brasil existiam juntos em Leonor. Tantas vezes o seu inconfundível pronunciar da nossa língua comum pressupunha essa preocupação de se fazer entender dos dois lados do Oceano. “A cultura comum permanece nos traços do património histórico, nos gestos de cortesia, na intimidade das famílias tradicionais. E liga-nos a língua portuguesa, sagrada união de facto. Mas sendo no discurso oficial designados países irmãos, Portugal e Brasil são irmãos separados à nascença. Separados de facto, porque não cresceram juntos, não têm os mesmos códigos, nem verdadeira cumplicidade. São diferentes no entendimento do mundo, nos rituais da vida e da morte, no traçado da condição humana. Temos tanto a aprender uns com os outros, portugueses e brasileiros, sobre o que nos aproxima e nos separa”. E assim Alberto Costa e Silva deixou claro, numa conversa que teve com Leonor Xavier, que “uma política da língua interessa a todos os países onde se fala o português, porque ele fortalece a nossa presença no mundo. Nós seremos nos séculos vindouros aquilo que for a nossa língua”. E assim continuaremos a encontrar-nos. Ainda há muito mundo para viajar.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS À PRINCESA DE AGORA E SEMPRE

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   Minha Princesa de sempre :

   Não recordo, não registei, nem sequer medi o tempo decorrido desde a última carta que te escrevi. Talvez por me sentir mais desvinculado da duração de tudo, finalmente mais preso à memória das coisas e das vidas como essencial substância da minha consciência do presente... como se este mais não fosse do que passado imperfeito! Sou hoje o que fui mais o que não cheguei a ser. Quero assim dizer que prevaleço nesse sentimento de mim em que, mais do que eu e a minha circunstância, me surpreendo como eu e a minha imperfeição. Já me não conjugo no futuro, não consigo completar-me. Tampouco me habita qualquer sentimento de perda, muito menos desejo ou vontade de ser agora o que não fui no devido tempo. Nem sequer rumino vadios pensamentos de culpa minha ou alheia. Não vou gritar, como a Traviata, "É tarde!" Tudo na nossa vida tem o seu tempo oportuno.

   Não é por deitarmos abaixo antigos ídolos ou antiquados símbolos que nos convertemos. Aquilo que for o ser novo e limpo, ou estará já dentro de nós, ou será mais um episódio da nossa imperfeição. Nesta nossa vida presente, queiramos ou não, há um tempo e um espaço que necessariamente nos condicionam quando agimos. O nosso estado de liberdade pertencerá sempre, por enquanto, a essa mística interior, alheia a qualquer espaço ou tempo que possa limitar-nos, algo tão misterioso que apenas podemos imaginar como o antiquíssimo futuro de nós... 

   Sempre te disse e escrevi, minha Princesa agora perdida entre estrelas de um universo em contínua expansão  -  que talvez seja a extensão do Deus desconhecido que procuramos  - , quanto me deixa perplexo, mesmo para além de qualquer angústia, pensarsentir a contradição desta nossa condição humana, hesitação constante (interminável?) entre o finito e o infinito, talvez interrogação sem resposta certa na finitude da nossa temporalidade, mas fé e esperança que o amor dos outros (e de nós) desenha na intemporalidade do infinito que, afinal, dia após dia, incansavelmente vamos desejando e desenhando. 

   Talvez cheguemos a esta idade do fim do nosso tempo apenas para confrontarmos a nossa pequenez com a infinita grandeza de Deus. Momento difícil este, em que finalmente realizamos que Deus não tem tamanho nem tempo, e que o "mundo" que nos espera estará certamente fora de nós e do nosso muito imaginar. 

   No início calendarizado de mais um Ano Novo, e quando completo o octogésimo da minha vida presente, contemplo o meu rio envolto em nevoeiro e procuro a ponte que me levará para fora do tempo e do espaço...

 

Camilo Martins de Oliveira