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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

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  De 28 de fevereiro a 6 de março de 2022

 

«O Mundo e a Igreja – Que Futuro?» da autoria do Padre Anselmo Borges (Gradiva, 2021) é um conjunto muito atual de reflexões sobre as consequências do pontificado do Papa Francisco

 

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UMA INTERROGAÇÃO

Interrogando-se sobre como devemos encarar hoje os valores éticos, Anselmo Borges afirma no seu último livro, agora dada à estampa - O Mundo e a Igreja. Que Futuro? (Gradiva) – que assistimos a uma inversão na pirâmide de valores, já que o dinheiro se tornou um valor central e a medida de todos os valores. Nesta obra, contamos com um conjunto oportuno e bastante claro de reflexões sobre as responsabilidades da Igreja Católica na sua relação com o mundo contemporâneo, numa perspetiva de exigência crítica e de coerência, em lugar de acomodação ou de indiferença. E em diversos passos do livro somos levados a recordar a obra fundamental “A Largueza do Reino de Deus” do Padre Alves Correia, tantas vezes recordado por Anselmo Borges no seu magistério. “Onde está a honra, a dignidade, o valor da palavra dada, a solidariedade, a família como esteio que segura os valores, a escola que forma pessoas íntegras e assim bons profissionais, alguns princípios orientadores da humanidade e para a Humanidade?”. Afinal, importa refletir, pensar para além do imediato e superar o imediatismo e as certezas baseadas na superficialidade. Urge compreender que não há explicações unívocas, já que a complexidade é a regra humana. Essa a lógica das bem-aventuranças – entender a humanidade como realidade plural. O homem não se fez para o sábado, mas o sábado para o homem e Jesus Cristo foi acusado de se relacionar com todos, recusando condenar a mulher adúltera…

 

SABEDORIA E CONFINAMENTO

E o Padre Anselmo Borges recorda o que Edgar Morin disse a propósito desta pandemia e no contexto dela: “Não digo que a sabedoria é permanecer toda a vida num quarto, mas para dar um exemplo: pensando apenas no nosso modo de consumo e alimentação, é talvez o momento de nos desfazermos de toda esta cultura industrial, cujos vícios conhecemos, o momento para nos desintoxicarmos. É também a ocasião para tomarmos consciência de modo duradouro dessas verdades humanas, que todos conhecemos, mas que estão recalcadas no nosso subconsciente: o amor, a amizade, a comunhão, a solidariedade, que fazem a qualidade de vida”. E assim um decálogo para a felicidade não pode ser confundido com uma receita de boticário. Exige-se compromisso pessoal e sentido de entreajuda. O início da alegria é começar a pensar nos outros. A melancolia deve dar lugar a uma atitude positiva e prospetiva. Não são o poder, o dinheiro ou os prazeres efémeros que podem dar alegria, mas o amor. Daí a necessidade de ter sentido de humor, de não nos levarmos demasiado a sério, de saber agradecer, de saber perdoar e de pedir perdão, de ter o gosto do compromisso e de saber ter o desprendimento em que se baseiam as bem-aventuranças, bem como de compreender a importância do diálogo fraterno e da oração, abandonando-nos nas mãos de Deus, por sabermos que somos amados. Longe da indiferença (e isto é uma responsabilidade de todos os homens e mulheres de boa vontade, como tanto insistiu o Bom Papa João XXIII) trata-se de saber partilhar, falando olhos nos olhos, entendendo a relação pessoal como permanente revelação do alfa e do ómega da dignidade humana. E o livro é um apelo constante à compreensão mútua, segundo o testemunho vivo de Jesus Cristo. Nos últimos dois anos, perante a inesperada pandemia e a demonstração de como assistimos a uma destruição avassaladora da natureza e do meio ambiente, tomamos consciência de que não podemos esconder-nos ou ser indiferentes. Importa compreender as ameaças e os riscos, a distinção entre o que é passageiro e o que é permanente. A crise ambiental obriga-nos a compreender os limites, combatendo o desperdício e prevenindo a destruição irreversível dos recursos que são património comum da humanidade toda. A crise económica e social agravou, por outro lado, as desigualdades e as injustiças e esqueceu uma distribuição equitativa de recursos não apenas entre os cidadãos de hoje, mas também relativamente às gerações futuras. À crise financeira de 2008 somou-se a situação sanitária, à ilusão monetária sucedeu a paragem brusca da atividade económica em todo o mundo, com todas as consequências conhecidas, das quais resulta que as desigualdades aumentaram, os mais ricos ficaram mais ricos e os mais pobres ficaram mais desprotegidos. A crise migratória pôs a nu o medo dos outros e a recusa das diferenças, exigindo uma verdadeira solidariedade planetária, que continua a faltar. E urge recordar o apelo do Papa Francisco a que os migrantes sejam acolhidos com prudência, reclamando um novo Plano Marshall para os países mais pobres, para estancar a hemorragia de assola o mundo.

 

QUE DEMOCRACIA, QUE CIDADANIA?

A crise política tem levado à fragilização da democracia e da cidadania, obrigando a que cuidemos mais da qualidade das instituições, do Estado de Direito, dos direitos fundamentais e da dignidade humana. A democracia precisa de melhor legitimação, de mais responsabilidade de todos e de mais participação cidadã. E a palavra do Papa Francisco tem de ser mais ouvida, apontando para que os princípios humanos se tornem compromissos de justiça: “A democracia baseia-se no respeito mútuo, em que todos possam contribuir para o bem da sociedade e em considerar que opiniões diferentes não só não ameaçam o poder e a segurança do Estado, como, num confronto honesto, se enriquecem mutuamente e permitem encontrar soluções mais adequadas para os problemas que é preciso enfrentar”. Os conflitos da sociedade, sendo naturais, não podem gerar a tentação da violência e da cegueira. A crise das relações humanas está, porém, na raiz de muitas das dificuldades e bloqueios atuais. A atenção, o cuidado, o respeito mútuo, a solidariedade estão na ordem do dia. A crise na educação, a desvalorização da cultura, a subalternização do dom e da troca, da comunicação e da capacidade de aprender obrigam a encontrar um contrato social que permita favorecer a coesão, o desenvolvimento e a justiça distributiva capazes de fazer da equidade uma prática comummente aceite. A liberdade religiosa e a paz entre as religiões revelam-se mais necessárias que nunca, uma vez que sem compreensão dos limites e sem a coragem de pôr em comum o que verdadeiramente nos pode unir, nada conseguiremos. E assim, longe da ideia de “ópio do povo”, o que importa é a procura dos fundamentos de uma ética cordial, baseada na compreensão do outro, no respeito mútuo e na salvaguarda da liberdade, da autonomia pessoal e da dignidade humana. A recusa do paternalismo e do clericalismo liga-se à necessidade de uma prática cristã mais madura e mais humana. Daí que o Papa Francisco insista em que não pode haver ecumenismo com proselitismo. Mais do que as palavras, importa fazer prevalecer os atos e os exemplos. E as reflexões de Anselmo Borges constituem preciosos auxiliares nesse sentido.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

PENSAR UMA EUROPA PACÍFICA

  


Por volta de 1715, um padre francês, o abade de Saint-Pierre, publicava uma obra intitulada "Projeto para tornar a paz perpétua na Europa", em que defendia a criação de uma instância europeia política, acima das nações, que asseguraria o governo da paz entre elas e uma sociedade europeia harmonizada. Oitenta anos mais tarde, Immanuel Kant retoma o propósito e o título de "Projeto para a paz perpétua", para adiantar a ideia de que os governos dos povos devem assentar num sistema representativo e com separação de poderes, e as nações formarem uma aliança federal. Surge esta proposta em contraponto à vocação hegemónica da revolução francesa, que Napoleão viria a incarnar. Curiosamente, é depois da derrota do imperador francês, antes e depois de Waterloo que, no Congresso de Viena (1814-15), as quatro potências vencedoras (Rússia, Prússia, Áustria e Reino Unido) discutirão o projeto... Até ao Congresso de Berlim (1878), e deste até à Conferência de Londres (de dezembro de 1912 a agosto de 1913) o Concerto Europeu discutirá e procurará resolver pacificamente questões que vão da vigilância sobre a França à sua integração no grupo, da revolta liberal em Nápoles à independência da Grécia e constituição da Bélgica, do comércio de escravos à repartição colonial da África (situações estas em que Portugal estará diretamente envolvido)... É também a era da constituição da super-Alemanha de Bismarck, do Risorgimento italiano e da redução dos Estados Pontifícios ao Vaticano, do definhamento do império otomano, e a anexação da Bósnia-Herzegóvina pela Áustria-Hungria, da oposição entre esta e Napoleão III, da derrota deste (em 1870) no conflito franco-alemão precedendo a IIIª República e prenunciando a 1ª Grande Guerra. Esta, cujos motivos Barbara Tuchman tão bem explanou em "The Tower of Proud", marca o fim do séc. XIX e de "uma certa Europa". No seu "Le Concert Européen - aux origines de l’Europe (1814-1914)", Jacques Alain de Sédouy encontra nesse tempo uma consciência de comunidade europeia como cultura e civilização comuns e garante da paz. É curioso ver como foi Alexandre I da Rússia um dos seus mentores, e aquele que mais acreditava na cristandade como fundamento da Europa. Interessante também, ver-se como já então se considerava a hipótese da participação turca. A revolução bolchevique, cem anos depois de Alexandre I, implantando a União Soviética e dividindo, na sequência da 2ª Grande Guerra, a Europa em dois blocos, exclui (até quando?) a Rússia do projeto comunitário, enquanto a preocupação em opor, ao fundamentalismo islâmico, um estado muçulmano democrático abre a perspetiva da inclusão europeia da Turquia hodierna. Citando Sédouy, vamos então ao séc. XIX: "É Castlereagh, ministro britânico dos negócios estrangeiros, que correntemente fala de ‘commonwealth of Europe’. É Alexandre I que evoca ‘a grande aliança’ dos Estados europeus. É Metternich que, referindo-se ‘aliança’, fala do «grande sistema pacífico da Europa» e escreve a Wellington em 1824: «Desde há muito que a Europa tem, para mim, o valor de Pátria». São os negociadores do tratado que funda a independência da Bélgica que declaram em fevereiro de 1831: «Cada nação tem os seus direitos próprios; mas a Europa também tem o seu, foi a ordem social que lho deu. É Guizot que, diante da Câmara, a 18 de novembro de 1840, distinguindo claramente a Europa das potências que a constituem, declara: ‘A grande política e o interesse superior da Europa e de todas as potências na Europa é a manutenção da paz em toda a parte, sempre’. É o Congresso de Paris de 1856 que declara a Turquia «admitida a participar nas vantagens do direito público e do concerto europeus». São os participantes no Congresso de Berlim m 1878 que se dizem, no preâmbulo do tratado que assinam, animados de ´um pensamento de ordem europeia´. São os embaixadores das potências em Constantinopla que, nas diligências feitas por ocasião das crises que sacodem o Império Otomano, entre 1880 e 1912/13, falam sempre «em nome da Europa». Outro paralelismo curioso entre aspetos do Concerto Europeu e a presente União Europeia é o da "hierarquia" de Estados. Leia-se esta carta de Frederico de Gentz, braço direito de Metternich, ao príncipe Karadja, em 1818: «O sistema político que se estabeleceu na Europa desde 1814 e 1815 é um fenómeno inédito na história do mundo. Ao princípio do equilíbrio ou, melhor dizendo, dos contrapesos formados pelas alianças particulares, princípio que governou e, por demasiadas vezes, também perturbou e ensanguentou a Europa durante três séculos, sucedeu um princípio de união geral, reunindo a totalidade dos Estados por um laço federativo, sob a direção das principais potências... Os Estados de segunda, terceira e quarta ordem submetem-se tacitamente, e sem que nada jamais tenha sido estipulado a esse respeito, às decisões tomadas em comum pelas potências preponderantes; e a Europa parece enfim não formar senão uma grande família política, reunida sob um aerópago de sua própria criação, cujos membros se garantem, a si mesmos e a cada uma das partes interessadas, o gozo tranquilo dos seus direitos respetivos. Esta ordem de coisas tem os seus inconvenientes. Mas é certo que, se a pudermos tornar duradoura, seria a melhor combinação possível para assegurar a prosperidade dos povos e a manutenção da paz que é uma das suas primeiras condições". Proximamente refletiremos sobre esta questão da organização política da Europa e, antes ainda, na definição do próprio conceito de Europa: como será possível abrir um projeto europeu que traduz uma herança cultural própria da cristandade europeia, mas também se inspira no ideal da paz, a outras nações dispostas a partilhar politicamente aquilo a que Bourlanges chamou «a afirmação organizada de uma interdependência de valores escolhidos»?

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 21.09.12 neste blogue.

CENTRO DAS ARTES DO ESPETÁCULO DE SEVER DO VOUGA

  


Sever do Vouga é um bom exemplo de interiorização do espetáculo e da cultura da própria expansão dos equipamentos de cinema – e designadamente daquilo que temos referido como a geração dos cineteatros.

Porque a partir sobretudo dos anos 50 do século passado, procedeu-se ao que podemos chamar uma verdadeira descentralização cultural-patrimonial, que muito beneficiou da generalização do espetáculo de cinema, mas numa época em que o espetáculo teatral ainda tinha uma capacidade de descentralização que nas décadas seguinte diminuiu mas que depois novamente se generalizou.

Repito: aquilo a que temos chamado a geração dos cineteatros, ao longo sobretudo da segunda metade do século passado, mas já com antecedente assinaláveis, muito contribuiu para a cultura e para a descentralização do espetáculo, sobretudo a partir do cinema, mas sem descurar a capacidade para outras manifestações. E isso refletiu-se, durante décadas, na atividade teatral.

Um bom exemplo encontramo-lo em Sever do Vouga, e é com interesse que se refere aqui a evolução.

Em 1951 é inaugurado em Sever do Vouga um denominado Cineteatro Alba. Com o mesmo nome temos notícia do Cineteatro de Albergaria-a-Velha, inaugurado um ano antes. E no mesmo ano de 1950 entra em funções o Cineteatro de Estarreja. Era o grande apogeu daquilo que temos precisamente denominado a geração dos cineteatros: e muitos temos aqui referido.

Pois o antigo Cineteatro Alba de Sever do Vouga dá lugar, em 2001, ao atual Centro de Artes e Espetáculos, inaugurado este em 16 de novembro de 2001. Do anterior edifício evocam-se aspetos arquitetónicos que o singularizam: designadamente uma imensa janela que domina a fachada, aberta ao foyer mas sobretudo aberta à cidade e enquadrada por duas paredes que singularizam o edifício em si.

E o interior é ainda valorizado por uma galeria envidraçada que mais qualifica o projeto arquitetónico.

O Centro de Artes e de Espetáculos está ligado à Câmara Municipal de Sever do Vouga. Esta municipalização de atividades culturais é em si mesma muito louvável, pois de outra forma haveria certamente mais problemas de exploração e atividade cultural. 

 

DUARTE IVO CRUZ

Obs: Reposição de texto publicado em 13.10.18 neste blogue.

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

  


LXXXVIII - SÍNTESE AO REDOR DA LÍNGUA E DA LUSOFONIA
3. ALGUMAS BREVES PERSPETIVAS LINGUÍSTICAS E LUSÓFONAS


Rumo a uma visão mais abrangente, escreve Adelino Maltez: “Consideramos, com efeito, que a Comunidade Lusíada é um passo para a recriação do espaço maior, exigindo uma nova leitura da respublica christiana com a Ibéria, a América de Língua Portuguesa, a América de Língua Castelhana e a África dos PALOP e, portanto, a criação de uma comunidade onde a união ibérica se extinguiria como fantasma, porque é mais aquilo que, pelo futuro nos une, do que aquilo que, no passado, nos dividia”.[1]


Temos responsabilidades históricas para com outros povos com que partilhamos um idioma comum, estando em causa o futuro da lusofonia, agudizado por Castela, com a sua mentalidade altiva e imperial, que dificilmente a abandonará. O que não exclui a recriação de um espaço maior predominantemente lusófono, liderado por um lusófono, potencialmente o Brasil, por se nos afigurar ser portador, em termos de ser e dever ser, de maior tolerância e humanismo, por confronto com uma hipotética liderança de raiz castelhana.


Refira-se o texto de uma autora polaca onde sobressai a ideia de que na Europa de leste se formou a crença de que “(…) o imperialismo e a Lenda Negra de Portugal não constituíam uma realidade tão grave como a de Espanha. A convicção apoiava-se em elementos da automitificação portuguesa incluindo a famosa “Carta de Pero Vaz de Caminha” que apresentava o primeiro contacto com os recém-chegados portugueses e os índios do Brasil como verdadeiramente excecional, produtivo e pacífico”[2] (em confronto com o relato desumano de Bartolomeu de Las Casas). E acrescenta: “Na Polónia, a Lenda Negra ligada a Espanha direcionou a nobreza para o exemplo da expansão portuguesa a Oriente, considerada menos culposa e mais atraente, especialmente devido às viagens de Vasco da Gama ou ao povoamento de ilhas desabitadas, mais do que a sua colonização na América do Sul”[3], além do contraste intra-ibérico das corridas de touros.


O que não significa que Portugal e demais mundo lusófono se devam sentir orgulhosamente sós. Justifica-se, sim, que possam dialogar com outros espaços, em igualdade, numa perspetiva de humanismo universal.


O conceito de lusofonia, além de ter em si o significado de um espaço geolinguístico, baseia-se no reconhecimento de um universo comunicacional real da língua portuguesa e no assumir dos benefícios dos dinamismos que um bloco linguístico-económico-cultural comporta, de uma realidade complexa plasmada na aceitação de um idioma comum como oficial, que outros blocos comprovam como útil, sob pena de se beneficiarem interesses de terceiros, também eles fundados no mesmo conceito linguístico-estratégico. 


Não se esgota no uso de uma língua comum, mas de tudo o que o diálogo por ela facilitado proporciona: na aproximação dos povos e países, na ciência, na economia, na política, no desporto, em todos os alinhamentos. 


Todavia, é óbvio que, por serem tais aproximações e parcerias facilitadas pela língua, ela assume uma importância básica e prévia a quaisquer entendimentos. Natural e lógico que as primeiras preocupações lusófonas se voltem para as questões linguísticas, da sua defesa, difusão, enriquecimento e ensino.


Se a adoção do português foi um ato de soberania, a do termo lusofonia não resultou de iniciativa própria ou comum de todos os seus destinatários. Se é verdade que o conceito de língua portuguesa é tido como objetivamente linguístico e politicamente neutro,  é verdade que não existe essa consensualidade no que toca ao de lusofonia.


25.02.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

 

[1] Curso de Relações Internacionais, Principia, p. 341.
[2] Cieszynska, Beata Elzbieta, O(s) mito(s) da Península Ibérica na Polónia e em outros países do antigo “Bloco de Leste”, p. 56, no livro Europa de Leste e Portugal, Esfera do Caos, 1.ª edição, 2010, tendo como coordenadores José Eduardo Franco, Teresa Pinheiro e a autora ora citada.
[3] Ibidem, p. 60.

CRÓNICA DA CULTURA

Paz é de onde não se necessita fugir.

  


A indiferença no cultivar do diálogo a todos os níveis, começando pelo próprio núcleo familiar, privando o mundo do tempo fundamental para a troca de experiências através das narrativas, permitiu que uma rotina de horrores se instalasse entre os homens, e as guerras fossem seus reinos de viver, vida ou morte.


Esquecem os homens, ou nunca registaram com dolorosa indignação, que os combatentes das guerras, voltam delas mudos porque os campos de batalha geram experiências incomunicáveis.


As experiências a que nos reportamos não são indizíveis, mas foram invivíveis o que é outra realidade que suporta a densidade da mudez.


A violência doméstica é também uma guerra de trincheiras em território ocupado por uma vida miserável.


Permitiu-se, aplaudiu-se mesmo, que bastavam os tratados e as convenções para intimidar os inimigos da paz, e tanto eram suficientes que nos cabia apenas coar o pessimismo que nos causasse incertezas e medos através de ferozes propagandas.


Como? Se jornais e televisões e demais interesses, habilmente promovem anestesias e banalizações que reforçam a invisibilidade dos algozes?


Desentendimentos económicos, religiosos, rivalidades étnicas, divórcios virulentos, entre outras realidades, são em si bombas atómicas de preparo às que respondem como tal.


As guerras tal como se instalam são atos de força bruta que embalam os desenfreados interesses ao colo.


A arte, cremos, só ela, pode transmitir a aproximação à verdade total de um testemunho do sofrer. No entanto, não sendo ela fundamentalista, tem mais dificuldade em expor através da sua liberdade, o caminho de interpretação e esperança de que afinal a vida pode ser outra coisa.


Em rigor, as guerras podem ser enfrentadas pela formação de novas sensibilidades, entre as quais os diálogos, com o condão dessa formação.


Contudo, a nossa humanidade desenraizada é incapaz de sensibilizar os outros, nomeadamente os jovens, de que a bandeira da paz é sinónimo de um amanhã menos sombrio.


Assim, os conflitos geram celeiros de torturas e as gentes cegas são catalisadoras de desumanidades atrozes, as gentes projetam uma indiferença absolutamente condenável que mata o que a vida na esperança mais preza.


Fomos todos responsáveis pela ausência de políticas que salvaguardassem a saúde, o emprego, a casa, o suprir da pobreza, enfim, o evitar destas guerras instaladas, motivadas pelo roubo desenfreado do ar que se respira corrupto e impune de quem o fabrica na paz das guerras.


E afinal paz é ter força para as possíveis harmonias.


Paz é de onde não se necessita fugir.

 

Teresa Bracinha Vieira

A RELIGIÃO VAI ACABAR?

  


A religião chegou ao fim?

Eis uma daquelas perguntas que volta sempre de novo. E não faltam as profecias a anunciar o fim da religião. No entanto, a profecia está longe de ver a sua confirmação. Neste tempo de ateísmo, pelo menos 85% da Humanidade continua a afirmar-se religiosa A religiosidade é uma dimensão profunda e constitutiva do Homem, como a música, a estética, a ética…

No longo processo da hominização, quando se deu o salto para a humanidade, apareceu no mundo uma forma de vida inquieta que leva consigo constitutivamente a pergunta pelo sentido último e total e a sua busca. Precisamente esta questão é a raiz do dinamismo cultural e religioso. E o que mostra a história das religiões é que não bastam as realizações culturais como resposta à totalidade da questão do sentido, pois também elas são contingentes e minadas pelo efémero e mortal. Por isso, desde o início, a resposta do "verdadeiramente positivo" é vista em forças supra-humanas, mais tarde, em deuses e Deus. Trata-se sempre de "objectivações" que transcendem o mundo empírico e a história dada. O que constitui a religião, como escreveu Karl-Heinz Ohlig, é a experiência de contingência, a abertura ao sentido e a correspondente esperança num Sentido "transcendente".

A ideia de que é possível varrer do mundo o incognoscível, o mistério e a transcendência pela ciência não se confirma de modo nenhum. De facto, há o incognoscível, o mistério último. Evidentemente, o cientista tem de partir da vontade de procurar explicações, razões e causas cada vez mais abrangentes e finalmente completas dos fenómenos. No entanto, como escreveu o filósofo Luc Ferry, se esta vontade é legítima, por outro lado, se a tomarmos como "princípio ontológico absoluto", será sempre de certo modo votada ao fracasso. De facto, nenhuma explicação científica poderá alguma vez encontrar uma "causalidade última", porque, nesse processo explicativo, ou pára-se de modo arbitrário na busca das causas, tornando-se a explicação incompleta ou pretende-se descobrir uma "causa primeira", caindo na metafísica e abandonando a racionalidade empírico-científica. "Na ciência, não existem senão explicações limitadas de fenómenos eles mesmos limitados".

Precisamente desta abertura para o incognoscível e para o mistério erguer-se-á sempre a pergunta por Deus, e esta pergunta infinita é que dá ao Homem aquela dignidade e aquela seriedade das quais a nossa sociedade de banalidade raquítica parece estar cada vez mais distanciada, absorvida como anda na logomaquia sofista e rídicula e no consumo sofisticado e pedante.

Claro que Deus não é demonstrável - Deus só pode ser "esperado" como Sentido último e transcendente para todas as esperanças. No entanto, mesmo quando se considera os "mestres da suspeita" e os críticos da religião na modernidade, talvez só de Freud se possa dizer que, ao pressupor uma aceitação desiludida da realidade, aceitou como possível uma vida sem religião. Os outros, na sua aparente contundência crítica, não deixam de manifestar alguma reserva quanto à iminência do fim da religião - por exemplo, o "louco" de Nietzsche confessa que a sua notícia da "morte de Deus" ainda está a caminho - e abrem perspectivas globais de esperança quase religiosa, não se contentando, portanto, com o mundo fenoménico: Comte falou da "religião da Humanidade", o marxismo apontou para a utopia de uma sociedade reconciliada, Nietzsche para a perspectiva de um Superhomem futuro, Ernst Bloch para o Reino de Deus sem Deus. Mesmo Freud escreveu numa carta a J. J. Putnam, em 1915: “Quando me pergunto porque é que sempre procurei com seriedade ser solícito e, quanto possível, bondoso com os outros e porque é que não o deixei de fazer quando verifiquei que se é prejudicado por isso e massacrado, pois os outros são brutos e infiéis, não conheço qualquer resposta.”

"O potencial de angústia e de experiências negativas parece ser tão grande e o dinamismo da esperança de Sentido tão forte" que "haverá sempre religião", concluía o teólogo Karl-Heinz Ohlig, especialista em história e ciências das religiões.  O que se passa é que agora as religiões já não podem ignorar a razão crítica e, por outro lado, a cultura e a religião já não se identificam, de tal modo que, nas sociedades pluralistas, as religiões já não são normativas para todos os domínios da realidade, que se tornaram autónomos. Mas, precisamente por isso, ficam libertas para o que é o domínio específico da sua competência -- a questão do Sentido. Ora, este domínio "parece afectar de modo tão central a vida humana que até agora não se pode afirmar um fim da religião nem é de esperar para o futuro".

Face à questão de Deus, a situação da razão é paradoxal. Por um lado, parece constitutiva a sua referência a Deus: não é próprio do ser humano ter de colocar a questão do Fundamento último, a questão do Sentido último enquanto Sentido de todos os sentidos, e não está Deus co-implicado na experiência do limite, portanto, paradoxalmente também nas experiência do mal, da morte e das vítimas da História? Por outro, a razão não pode demonstrar Deus, já que essa demonstração implicaria que Ele é menos do que ela: o Deus demonstrável é um ídolo.

Deus é dado essencialmente numa experiência de fé, de entrega confiada, que pode e deve ser articulada racionalmente. Então, a experiência mais profunda e autêntica de Deus, aquela que não engana, é a do amor. Essa foi a revolução de Jesus de Nazaré.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 de fevereiro de 2022

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Uma compo­nente essencial do espaço público é a sobreposição de funções.


No livro The Fall of Public Man de Richard Sennett (W. W. Norton & Company, Inc., 2017), lê-se que as ideias de Barão Haussmann, para Paris, no séc. XIX foram baseadas na homogeneização. Os novos bairros da cidade destinavam-se a uma só classe e na cidade antiga central ricos e pobres foram separados. Este foi o início da função única no planeamento urbano, isto é, um desenho urbano em que cada espaço na cidade está destinado a um uso particular. A desagregação da cidade em que um espaço corresponde a uma função, por princípio pode parecer ordenada, operante e rentável. Mas na opinião de Sennett, uma compo­nente essencial do espaço público é a sobreposição de funções. Historicamente, assim que as necessidades funcionais numa determinada área mudam o espaço já não consegue responder a estas mu­danças e acaba por ser abando­nado.


“Think, for Instance, of what a city of atoms, with a space for each class to live, for each race to live, for each class and race to work, means for attempts at racial or class integration, either in education or in leisure: displacement and invasion must become the actual experiences involved in the supposed experience of intergroup rapprochement. Whether such forced mixings would ever work in racialist or highly class-segregated societies is an open question; the point is that a city map of single-functions, single-spaces makes all such problems worse.” (Sennett 2017, 367)


Se uma cidade se apresentar como uma cidade de átomos - desagregada e fragmentada - com espaços especí­ficos para cada classe e para cada etnia viver e trabalhar, sempre que houver tentativas de integração, quer seja através da educação ou através do lazer, essas experiências de aproximação intergrupal podem agravar problemas que possam existir. Pensa-se verdadeiro que uma cidade que separa classes, etnias e funções possa pôr fim à criação de complexidades incontroláveis. Porém, Sennett escreve que a destruição da multiplicidade de funções e que a conceção do espaço de modo a que os usos não possam mudar à medida que os usuários mudam, é racional só em termos de investimento inicial. A atomização da cidade e a consequente destruição do espaço público, imposta por urbanistas, cria uma comunidade com sede de contacto humano.


Para Sennett, os esforços urbanísticos de Haussmann puseram um término definitivo ao cruzamento entre habitar, trabalhar, educar, tratar e socializar dentro e ao redor de uma única casa - na cidade pré-industrial lojas, escritórios e habitação situavam-se muitas vezes concentrados num só edifício. Quanto mais as cidades se fragmentam e morrem mais as pessoas deixam a cidade. Sennett declara que o desenvolvimento urbano moderno faz com que o próprio contacto social somente através de centros comunitários pareça uma resposta à morte social da cidade. (Sennett 2017, 368)


A cidade moderna opõe a comunidade à sociedade e naturalmente à multidão. Psicologicamente, o indivíduo protege-se contra a multidão: “The bourgeois man in the crowd developed in the last century a shield of silence around himself. He did so out of fear. This fear was to some extent a matter of class, but it was not only that. A more undifferentiated anxiety about not knowing what to expect, about being violated in public, led him try to isolate himself through silence when in this public milieu.” (Sennett 2017, 369)


A multidão é desconfortável e automaticamente coloca o indivíduo em isolamento, confrontado somente com a sua solidão: “Strangers on crowded streets give each other little clues of reassurance which leave each person in isolation at the same time: you drop your eyes rather than stare at a stranger as a way of reassuring him you are safe; you engage in the pedestrian ballets of moving out of each other’s way, so that each of you has a straight channel in which to walk; if you must talk to a stranger, you begin by excusing yourself and so forth…” (Sennett 2017, 369)


Desde o séc. XIX, que se pensa que a multidão tem o poder de pôr em causa a segurança de uma cidade. Desde então, existe a ideia de que a multidão precisa estar sob controlo, porque se acredita que a multidão é o modo pelo qual as paixões do indivíduo se deixam corromper e se expressam sem limites - a multidão tem a fama de ser capaz de transformar um indivíduo banal num monstro. Para Sennett, essa imagem da multidão está associada à ideia de que as pessoas que se expressam ativamente numa multidão são vistas geralmente como potencialmente perigosas: “…the people actively expressing their feelings in crowds are seen usually as the Lumpenproletariat, the under-classes, or dangerous social misfits.” (Sennett 2017, 369)


Sennett explica que no início do séc. XX, estudos relacionados com a psicologia social mostravam e expandiram exageradamente a ideia de que a multidão pode induzir a uma espécie de exaltação e loucura psicótica - a saúde psicológica de um indivíduo ao ser então analisada variava de acordo com o facto de pertencer ou não a um determinado grupo social. Esta suposição, ainda que pouco infundada, implicitamente levou à ideia de que apenas um simples espaço claramente demarcado e que permite o contacto entre um número limitado de indivíduos, mantém a ordem.


Esta imagem moderna, acerca da multidão, teve inevitavelmente ressonância no planeamento urbano moderno. Na cidade moderna persiste a ideia de que quanto mais simplificado o ambiente (reduzindo o número de funções e de interligações) haverá ordem e controlo - numa multidão ninguém se conhece e há mais liberdade. Na opinião de Sennett, uma cidade segregada é assim uma cidade fechada e aprisionada, sob permanente vigilância e escuta.


A vida na cidade moderna apresenta como característica esta contradição permanente - a ânsia de liberdade e abertura associada ao desejo de segurança e de previsibilidade. A cidade moderna aproxima somente os iguais, põem em contacto as pessoas que acreditam nas mesmas coisas, que partilham as mesmas expectativas e que pensam e atuam da mesma maneira. E por isso, qualquer pequeno desentendimento se pode tornar numa luta sangrenta porque os limites estão bem traçados e qualquer sentimento de invasão pode incrementar as diferenças. Num ambiente segregado é mais difícil conviver e aceitar a diferença - a presença do outro torna-se uma constante ameaça. Nestas circunstâncias e numa cidade fragmentada a ideia de pertencer a um mundo maior e mais complexo parece assustador e leva a um isolamento e a uma frustração ainda maior do indivíduo e do seu pequeno núcleo social - uma comunidade é então sinónimo de proteção emocional contra a sociedade em geral e por isso uma barreira territorial dentro da própria cidade: “This new geography is communal versus urban; the territory of warm feelings versus the territory of impersonal blankness.” (Sennett 2017, 372)

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

  

De 20 a 26 de fevereiro de 2022.

 

Na celebração dos 450 anos da publicação de “Os Lusíadas” de Luís de Camões, importa não apenas recordar o épico e a sua obra, mas também o lugar que ocupa no desenvolvimento e afirmação da cultura da língua portuguesa.

 

UMA ESCOLHA SINGULAR
Quem considera a escolha como símbolo da identidade portuguesa do nosso mais notável poeta, cuja data da morte foi escolhida para Dia Nacional, manifesta alguma surpresa, uma vez que segundo a regra da maior parte das nações essa escolha relaciona-se com um facto histórico, uma batalha, uma conquista ou uma revolução. A escolha de um vate é motivo de admiração. Mas há razões antigas para tal essa escolha. Não por acaso, pouco depois do início da monarquia dual, o recém entronizado Filipe I, quando veio a Lisboa, quis encontrar-se com o poeta, só então tendo conhecimento da sua morte. E Severim de Faria relata o sucedido: “sabendo que era falecido mostrara disso sentimento, porque desejava de o ver por sua fama, e fazer-lhe mercê”. O episódio leva-nos a lembrar como Camões não foi suficientemente reconhecido em vida, ao invés do que aconteceria depois da sua morte. E o certo é que, com o decurso do tempo, o poeta foi-se tornando um verdadeiro símbolo, venerado pelos admiradores do seu talento e da sua qualidade poética, mas também por quantos erigiram a sua obra épica como um sinal de resistência, de autonomia e de sentido de independência. E ainda Severim de Faria fala da importância da narrativa de “Os Lusíadas”, porque relata a viagem de Gama até à Índia e o seu regresso, incluindo no curso dos acontecimentos os episódios mitológicos, as referências fabulosas, como a da Ilha dos Amores, mas também notas científicas e alusões a uma plêiade de varões ilustres. E assim encontramos as lições de Virgílio e Horácio no tocante ao culto da Arte Poética, à fidelidade aos acontecimentos e à apresentação de imagens, capazes de motivar os leitores para a compreensão da importância de uma viagem que abriu novos horizontes na história do mundo. E se dúvidas houvesse, não podemos esquecer como Diogo do Couto admirou a obra de seu amigo Luís de Camões, que, com a “Peregrinação” Fernão Mendes Pinto, constitui um meio essencial para o conhecimento dos portugueses, mas, essencialmente, da humanidade.


O EXEMPLO DE CAMÕES
Ao longo dos séculos, o exemplo de Camões foi-se fortalecendo. Nos alvores do romantismo e da defesa da liberdade, Bocage e Garrett apontaram com clareza o papel fulcral desempenhado pelo genial poeta, cuja obra congregava qualidades essenciais para a emancipação dos portugueses. E entende-se por que razão, em 1880, num momento em que à decadência havia que saber contrapor uma nova Renascença, liberais, democratas, republicanos e socialistas reclamaram mudanças, levantando a bandeira de Camões, como sinal de emancipação, progresso e humanidade. E assim Luciano Cordeiro, secretário perpétuo da Sociedade de Geografia e jornalista, deu início aos preparativos de uma verdadeira celebração cívica, com extraordinários efeitos sociais e políticos. A partir desta iniciativa, a imprensa lisboeta tomou a dianteira na defesa de uma causa emancipadora, pela divulgação por meio de jornais e revistas da ideia de que urgia comemorar Camões, pois esta era uma "festa na nação" e não uma festa de partido, de escola ou de grupo. Segundo os promotores, o evento "tinha o objetivo de estabelecer a convergência de todos os indivíduos em torno da Pátria de que Camões era símbolo".


UMA MENSAGEM EMANCIPADORA
E como se chegou ao ano de 1880 e ao dia 10 de junho, em vez do que se entender, como até então, no esteio da ideia de Gonçalo Coutinho, a ideia de que o ano da morte era o ano de 1579? Luciano Cordeiro baseou-se nos documentos encontrados nos arquivos, segundo os quais a 24 de setembro de 1571, Camões obteve de D. Sebastião o alvará que lhe permitiu imprimir “Os Lusíadas” por um período de dez anos, saindo a obra em 1572, em Lisboa, em casa do impressor António Gonçalves. Em 28 de ju­lho desse mesmo ano, D. Sebastião concederia ao poeta uma tença anual de 15000 réis, a pagamento desde 12 de março, pelos serviços que este lhe havia prestado na Índia, e não apenas para o compensar pela publicação de “Os Lusía­das”. A tença foi paga irregularmente, mas sempre na sua totalidade, dela beneficiando, por ordem de Filipe I, rei de Portugal, a mãe do poeta, que ainda vivia. Foi graças a esta documentação que ficou a saber-se que a morte de Camões ocorreu na cidade de Lisboa, a 10 de junho de 1580. E foi essa chave que se tornou decisiva para assumir plenamente a celebração do grande símbolo cultural, que o Brasil também comemora, lembrando a proclamação libertadora de Joaquim Nabuco. Eduardo Lourenço disse, por isso: «Camões não é apenas um poeta com mais talento que outros para adaptar à ainda inadaptada língua nossa a música de Petrarca filtrada por Garcilaso, e com que consumado brilho e artificio, pois sem eles não se pertencia à juventude dourada e boémia que, por breves e eternamente lamentados momentos frequentou. Felizmente (para nosso egoísmo póstumo), os mais famigerados erros, a inconstante fortuna e o amor ardente impuseram-lhe a errante vida que aprofundando e trasmudando em ouro o destino mundano a que porventura estaria votado o converteram no autor de “Os Lusíadas”». Como afirma Ivo de Castro, Camões é o criador de uma obra superiormente comprometida com um estádio decisivo da língua pátria. É a maturidade poética do português que aqui se encontra, gerada na confluência dos valores da tradição medieval peninsular (num idioma afirmado originalmente na criação trovadoresca), das inovações quinhentistas e da capacidade e originalidade renovadora do genial poeta. Afinal, a obra épica revela-se premonitória na compreensão de outras culturas e civilizações e na legitimação de novas tendências nas trocas transcontinentais. Conhecem-se hoje pouco menos de quatro dezenas de exemplares de “Os Lusíadas” com data de 1572 espalhados por diversas bibliotecas de Portugal e do Mundo. A edição prínceps deverá ser a que apresenta o pelicano do frontispício virado para a esquerda, tendo o sétimo verso da primeira estância a redação “E entre gente remota edificarão / Novo Reino que tanto sublimarão”. Mas segundo Kenneth David Jackson, da Universidade de Yale, as diferenças que encontramos no interior das coleções encontradas poderão dever-se à introdução de correções nas provas tipográficas no processo longo de impressão da obra por António Gonçalves. Como diz José Carlos Seabra Pereira, o legado próximo de Camões atesta a “qualidade interpelativa e gerativa do épico”. Camões tornou-se figura projetada em mito. Não entraremos, porém, no debate sobre o mistério da edição (e de uma eventual contrafação), mas verificamos que a paixão existente neste debate demonstra bem a importância icónica de uma obra tornada símbolo nacional.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CONTRA OS FUNDAMENTALISMOS...

  


Valerá a pena debruçarmo-nos sobre a história de Deus nas culturas dos homens antes de Cristo, a saga da Revelação, o percurso a que um agnóstico, Régis Debray, chamou itinerário de Deus. Ou, ainda, procurarmos, noutras tradições do pensamento e da fé, raízes espirituais, frutos e concordâncias do Cristianismo e do Ocidente cristão. Fá-lo-emos, à procura de pilares e pontes para o diálogo entre civilizações e culturas, com que teremos, sob ameaça de confrontos violentos, de responder a um tempo-mundo em que comunicações e migrações nos põem, todos os dias, em casa uns dos outros. Falámos da identidade cristã de Europa, olhemos agora para o enraizamento da cristandade europeia. O Cristianismo, enquanto religião do Deus incarnado no homem e na história, nesta tem as suas múltiplas raízes. Num estudo sucinto, notável pela erudição e pela profundidade da análise ("Jésus l´Héritier - Histoire d´un métissage culturel"), Christian Elleboode, professor na Universidade Católica de Lille, parte à descoberta das raízes do cristianismo na história dos homens. Do animismo primitivo aos deuses das civilizações da agro-pastorícia, do Egipto e da Mesopotâmia à Pérsia e ao monoteísmo israelita, onde nasce, como herança e antítese, o Deus da misericórdia e do amor universal que Cristo incarna e apregoa, há todo um caminho de revelação da transcendência pela imanência. Ao fim do percurso, uma conclusão: "Crente ou incréu, judeu ou cristão, é fundamental, para que haja diálogo, romper com a obsessão da procura do aspeto original de cada religião, reconhecer as suas dívidas culturais e aceitar finalmente a mestiçagem como um fenómeno que em nada altera a identidade dos indivíduos. Pelo contrário, é a ideia de pureza original que confunde as pistas e se torna fonte de conflitos. Hoje, num mundo mais global, em que os valores cristãos se encontram em diáspora e, simultaneamente, interrogados e contestados em sua casa, quer pela imigração de outras gentes, credos e culturas, na "nossa" Europa, quer sobretudo pelo materialismo e o economicismo consumista e ganancioso que o próprio "Ocidente" gerou, devemos refletir sobre as raízes espirituais da Europa e sobre a fidelidade como condição do diálogo. Não falamos de negociação nem de relativismo: não se trata de uma possível troca de valores, trata-se de um esforço comum na procura de um sentido da história e para o futuro. Ou do que, para um crente, é a comunhão dos homens no universo de Deus. Quando, ao esbofetearem-me a direita, eu ofereço a esquerda, não me submeto, mas interrogo: se disse ou fiz mal, diz-me o quê; se não, porque me bates? O diálogo e o entendimento são exercícios difíceis, só possíveis a prazo, onde seguem a fé e a esperança, e se constroem, dia a dia, pela fidelidade do amor. Situam-se numa perspetiva diametralmente oposta à das relações "líquidas" que Zygmunt Bauman aponta como causa de precaridade. Interrogar o outro, o diferente, é necessariamente interrogar-me também, e à minha diferença. Para o incréu, é um imperativo da dúvida sistemática. Para o crente, um imperativo da humildade: se Deus me revelou assim a verdade, como e porquê a terá frustrado a outros? Ou será que, no itinerário da sua revelação, Deus foi abrindo outros caminhos, para que os homens de boa vontade, que são a sua glória, na encruzilhada se reconheçam? Afinal, o que nos une? Tudo o que Deus semeou ou só a nossa semente contra a dos outros? A rutura do Deus de Jesus Cristo com o Deus de Israel antigo é clara: quem são os meus irmãos, o meu pai, a minha mãe? Não é a minha família ou nação que os define, são os que me seguem no amor universal. E S. Paulo dirá que não há escravo nem homem livre, homem nem mulher... Contra todos os fundamentalismos, inclusive os nossos.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 14.09.12 neste blogue.

TEATROS REAIS NO SÉCULO XVIII

  


Remontamos aqui ao século XVIII para dar notícia evocativa de alguns Teatros Reais, no sentido de teatros régios e da corte. E importa ter presente que se referem sobretudo teatros de ópera, pois como bem sabemos a tradição do espetáculo dramático propriamente dito, na corte e nas cidades, vinha de traz: basta lembrar que Gil Vicente representava para a família real a partir de 1502.

Mas o primeiro espaço teatral público, o Pátio das Arcas de Lisboa, surge em 1590 por influência da Corte filipina e por iniciativa de Fernão Dias de La Torre. E ao longo do século XVII e XVIII surgem documentos e noticias relativos a edifícios e espaços de espetáculo, sobretudo (mas não só) em Lisboa: cite-se o Pátio do Borratem ou da Mouraria, o Pátio das Hortas do Conde, onde depois existiriam os sucessivos três Teatros e Cinema Condes, ou os Teatros do Bairro Alto.

Mas é evidente que temos descrições de espaços onde, antes disto, se faziam espetáculos.

Herculano, nas “Lendas e Narrativas”, descreve a representação de um Auto inaugural, digamos assim, no Mosteiro da Batalha, em 1402. E Gil Vicente é ainda mais explicito em indicações plausíveis de cena: por exemplo da Câmara da Infanta no “Auto da Visitação – Monólogo do Vaqueiro” em 1502 ou do chamado Mosteiro de Enxabregas no “Auto da Sibila Cassandra” em 1513.

Mas avancemos no tempo.

O que agora nos importa evocar é os Teatros Reais a partir do seculo XVIII. E desde logo, o do Palácio de Queluz.

Vale a pena recordar que o Palácio começou a ser construído ainda nos anos 50 do século XVIII, segundo projeto de Mateus Vicente de Oliveira e de Robilllon. Em 1778, inaugurou-se lá um Teatro de madeira, projetado por Inácio de Oliveira Bernardes. Mas esse Teatro pouco durou: na verdade, D. Maria I manda derruba-lo em 1790 para construir no local um Pavilhão onde se instala depois da subida ao trono do filho e sucessor D. João VI.

E aqui citamos o que escrevemos no livro “Teatros de Portugal”:

“Fez-se ópera em salas e pavilhões armados desde pelo menos 1761, e ficou uma tradição insólita de D. Miguel cantar o papel de D. Quixote na ópera de António José da Silva e António Teixeira em 1833! Restou no entanto, e está completamente recuperado, um pequeno Teatro no interior do edifício fronteiro ao Palácio, chamado Torre do Relógio”. (Edições INAPA pág. 20). 


Duarte Ivo Cruz

 

Obs: Reposição de texto publicado em 29.09.18 neste blogue.

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