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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR


Ao lado do brilho da modernidade do plano de Haussmann, as ruínas dos velhos bairros amontoam-se no chão.


O plano da nova cidade de Georges Eugène Haussmann, prefeito de Paris e arredores, consistiu numa modernização urbana em grande escala, porque abriu uma vasta rede de alamedas no coração da velha cidade medieval. Marshall Berman em Tudo o que é sólido se dissolve no ar (Edições 70, 1989) escreve que “…o boulevard (…) foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, o ponto de partida decisivo para a modernização da cidade tradicional.” (Berman 1989, 164) e que “por volta de 1880, os padrões de Haussmann foram universalmente aclamados como o verdadeiro modelo no urbanismo moderno.” (Berman 1989, 166-7)


Siegfried Giedion em Space, Time & Architecture. The Growth of a New Tradition escreve que Haussmann foi o primeiro homem a conceber uma grande cidade, como se de um problema técnico se tratasse, permitindo assim a criação de uma capital para milhões de habitantes (Giedion 2008, 773). Tais vias públicas concebidas como artérias de um sistema circulatório urbano “…eram altamente revolucionárias para a vida urbana do século XIX. As novas avenidas permitiram que o tráfego fluísse pelo centro da cidade e avançasse em linha reta, de um extremo ao outro.” (Berman 1989, 165)


A intenção de Haussmann era a de eliminar as habitações miseráveis e abrir espaços livres no meio da escuridão. O empreendimento deitou abaixo bairros inteiros e deslocou milhares de pessoas. A abertura das alamedas representou apenas uma parte do planeamento urbano de Haussmann - a outra grande parte incluía a construção de pontes, esgotos, fornecimento de água, uma rede de parques, mercados, monumentos culturais e a Ópera: “Foram concebidas grandes e majestosas perspetivas, com monumentos erigidos no extremo das avenidas, de modo que cada passeio conduzisse a um clímax dramático.” (Berman 1989, 166)


No texto ‘La Urbanistica Parisina. Haussmann o las Barricadas’, de Walter Benjamin lê-se que a atividade de Haussmann está intimamente ligada ao imperialismo napoleónico e que todas as instituições dominadas pela burguesia encontraram a sua apoteose nos boulevards.


Segundo Benjamin, Haussmann expulsou os parisienses de Paris, e foram esses mesmos que começaram a ter consciência do caracter inumano da nova cidade. Segundo Benjamin, Haussmann chega até a manifestar publicamente ódio em relação à população parisiense desenraizada. É através da subida das rendas que o proletariado é transportado para os subúrbios e os bairros de Paris perdem assim a sua distinta fisionomia e forma-se a cintura vermelha.


Haussmann denomina-se ‘artiste démolisseur’ e vê sempre o seu trabalho como sendo visionário, como sendo uma espécie de chamamento. Benjamin afirma que o verdadeiro objetivo de Haussmann foi o de assegurar a cidade contra uma guerra civil. Queria fazer para sempre impossível a construção de barricadas em Paris - as novas ruas muito largas são mais fáceis de controlar e estabelecem a ligação mais curta rápida entre os quartéis e os bairros operários. Contemporâneos de Haussmann denominam a operação de ‘l’embellissement stratégique’. (Pateta 1997, 383-4)


Para Giedion, o planeamento de Haussmann antecipou em muito o futuro e foi concebido para ser entendido só por gerações ainda por nascer, mas entrou muitas vezes em conflito com os desejos actuais da população: “Haussmann’s work on the incorporation of the banlieue, the suburban zone of Paris, was just such a coup de génie. (…) His intention was to give the great mass of the people a chance to live outside the city.” (Giedion 2008, 773)


Giedion afirma que, na altura ninguém conseguira prever que as largas vias públicas, estendidas ao longo do horizonte, pudessem ser o resultado mais produtivo das despesas públicas e abriria o futuro espaço da vida de Paris.


Para Berman, Haussmann contribuiu para a produção de uma sociedade que exacerba a visão que cada um tem de si próprio - as largas avenidas são uma multidão de olhos, um lugar onde se pode ver e ser visto, onde o mundo privado e o mundo público se mistura incessantemente. O que importa é o que as pessoas têm para exibir nas longas e largas avenidas. O indivíduo já não se pode perder nem desaparecer porque os grandes boulevards não deixam nada por desvendar, e a nova velocidade que se impõe intensifica esse deslumbramento. Berman escreve que os últimos poemas escritos por Baudelaire, aquando da reconstrução de Paris, revelam com muita clareza, que a modernização de qualquer cidade força a modernização da alma dos seus habitantes, tendo uma ressonância profunda na vida de cada um. Ao lado do brilho da modernidade, as ruínas dos velhos bairros amontoam-se no chão. Walter Benjamin nos seus escritos sobre Paris e Baudelaire oscila entre a total imersão do eu moderno na cidade moderna e o total alheamento em relação a ela, mas tenta mostrar que “…todo esse mundo luminoso é decadente, oco, viciado, espiritualmente vazio, opressivo em relação ao proletariado, condenado pela história.” (Berman 1989, 161)


Berman afirma que também os mais pobres querem ter um lugar na luz. Por isso, a vida da cidade moderna revela sobretudo ironias e contradições. As transformações físicas haussmannianas tinham sobretudo como objetivo a retirada da miséria e da escuridão do alcance da visão de todos - mas as grandes avenidas ao serem totalmente abertas não conseguem esconder nada. Para Berman, o brilho das avenidas ilumina os escombros e a vida sombria das pessoas de maneira a que as luzes mais brilhantes continuem a brilhar. A manifestação das divisões de classe na cidade moderna implica divisões interiores no eu moderno. A presença dos pobres na nova cidade lança sem piedade uma sombra sobre a luminosidade dessa mesma cidade. Sob a luz da cidade moderna, a vida parece um privilégio de classe. A avenida obriga cada um a reagir, ou pelo menos a ter uma consciência política. E a cidade moderna revela sobretudo isso o ressoar das contradições dentro do próprio indivíduo. (Berman 1989, 168-9)

Ana Ruepp