CRÓNICA DA CULTURA
DE UM PONTO A OUTRO
Sentada numa cadeira junto a uma porta por onde empregadas e visitas do Lar se cruzavam, estava Fernanda. No rosto, a expressão de uma profunda zanga mesclada com o sofrer revoltado por ali estar. Enganaram-na e ela sabia-o, agora.
O seu tempo sem futuro iniciara-se, e se nada fizesse, a idade que tinha, podia aprontar-lhe muitos e muitos anos daquela cadeia. Sentia com inenarrável dor que filhos e amigos tinham acordado que ali seria o novo espaço dela, de preferência a viver sem queixa e a ficar grata por breves visitas.
No quarto, nada era permitido de bens pessoais. Tudo absolutamente austero. O passado, assim, também não existia, e que ficasse claro. Uma fotografia ou duas na cómoda, seria o bastante do mundo que vivera e a família escolhera fotos, nas quais, todos muito felizes, curiosamente.
Emoções também não eram bem-vindas pois tinha tudo e um dia fraldas se necessário e teto para já.
Viver no nada das rotinas cruas era o destino por ora consciente.
Fernanda
olhou os vasos de flores secas ao lado da sua cadeira, e de repente, recordou-se que no meio da terra, havia algo que de noite lhe consumia as vísceras e lhe sorvia especialmente o coração.
São todas assim? Perguntou a uma das empregadas apontando para o vaso? As da entrada do jardim é que são bonitas, responderam-lhe.
Pois sim, seria verdade, a mentira, exprimia-se sorridente à entrada da porta principal que impressionava os familiares dos utentes do Lar, ou aqueles que queriam deixar-se impressionar para futura consciência tranquila.
Havia mesmo o vaso das flores da vigília à porta pesada, logo à entrada do Lar, não fosse ela, ou outros como ela, tentarem escapar ao pulmão seco desta não-vida a que a tinham condenado os seus amores, delegando poderes sucessivamente, sem que nunca para nada a questionassem, nem sequer na escolha do local para onde até um dia.
Fernanda
poisou no tal vaso das flores da vigília um rebuçado que tinha no bolso e sorriu ao vaso, às flores e ao rebuçado. Devagar, abriu a poderosa porta que acederia à sua casa ausente e já numa outra existência,
saiu.
Teresa Bracinha Vieira