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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ALMANAQUE PERPÉTUO

  

 

Abraão Zacuto (1450-1522), rabino, astrónomo, matemático e historiador, fez publicar em Leiria no início de 1496 o célebre “Almanaque Perpétuo”, que demonstra a qualidade excecional do homem de ciência – conselheiro de D. João II e de D. Manuel, num momento alto de cooperação de saberes de que as navegações portuguesas beneficiaram decisivamente. A ele se deve o aperfeiçoamento do Astrolábio e a opinião favorável que deu para a viagem à Índia. Mesmo assim foi uma das vítimas da expulsão do povo judeu, não lhe valendo a muita admiração que lhe votaram os reis de Portugal e o progresso científico que tornou possível. Zacuto é um exemplo do método do planeamento rigoroso que permitiu a definição das missões marítimas e os seus importantes resultados, longe de qualquer improviso ou cedência ao curto prazo.


Num ano com tantas incertezas vale a pena lembrarmos o exemplo do Almanaque, como repositório de informações e conhecimentos. Como disse o nosso Eça de Queiroz: “O tempo, essa impressão misteriosa a que chamamos tempo, é para o homem como uma planície sem forma, sem caminho, sem fim, sem luz, onde ele transita guiado pelo almanaque que segura na mão que o vai puxando e a cada passo murmurando: aqui está setembro!... além finda a semana” (…). Só com o almanaque sempre presente e sempre vigilante, pode existir regularidade na vida individual ou coletiva e sem ela… o que era seriedade seria apenas uma horda e o que era um cidadão seria apenas um trambolho”.  


E lembramos o “Verdadeiro Almanaque Borda d’Água – reportório útil a toda a gente para este ano de 2022, contendo todos os dados astronómicos e religiosos e muitas indicações úteis de interesse geral”. O que hoje se publica pela Minerva vem de 1929 e está na edição 93, mas teve como antepassado o da Barateira, com a mesma utilidade. Recordo-me do cuidado que meu Avô Mateus punha na consulta desse instrumento fundamental. Havia muitas anotações e pode dizer-se que o conhecimento da vida útil dependia dessa íntima ligação. Neste ano atípico com tantas incertezas, lembrei-me de Voltaire, do seu “Cândido” e da necessidade de sabermos cultivar o nosso jardim, só possível com a ajuda do Almanaque… Folheando o “Borda d’Água”, ficamos a saber muitas coisas, entre as quais que em janeiro se preparam as culturas de Inverno, como a da batata, ou que a poda é aconselhável no Quarto Minguante, apesar de a não devermos fazer nas figueiras, laranjeiras e macieiras, nas quais os grandes cortes são agora prejudiciais. Mas se pensarmos em enxertos, estes estão na altura certa no Crescente, do mesmo modo que a semeadura da fava, ervilha, alface e rabanete.


Se os hortelões são os destinatários de tão ajuizadas orientações, os jardineiros são aconselhados a plantar begónias, ervilhas de cheiro, gipsofilas, girassóis, lírios, paciências, sécias, zínias, goivos e miosótis. As indicações são as mais diversas à medida que percorremos os dias. E não falta a sabedoria popular: “Tudo perde quem perde o bom momento”; “Falar sem pensar, é atirar sem apontar”; “Antes escorregar o pé que a língua” ou “A inveja consome o invejoso como a ferrugem o ferro”… E não falta o “Juízo do Ano”, que nos é proposto pelo “Borda d’Água” e pela sabedoria omnipresente da sua cartola. São reflexões atinadas, infelizmente mais esquecidas que as referências às culturas de época ou às podas, enxertias, cortes e sementeiras… E quais os melhores ensinamentos, normalmente recorrentes?  A prevenção e o cuidado (que a pandemia aconselha), o aproveitamento do tempo, o não desperdício, o trabalho e a aprendizagem. E as longas séries matemáticas de Abraão Zacuto ensinam, no fundo, que não há resultados sem a audácia de ver longe.

 

Guilherme d'Oliveira Martins