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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

AS CAMAS DO MUNDO DOS HOMENS DO NADA

  


Procurava trabalho desesperadamente. Tinha três filhos para criar e há muito que o marido partira para encontrar um pedaço de espaço de vida noutro local e não voltara: não voltara nunca mais. Soube que morrera. Assim lhe disseram um dia:

olha, vai para a tua terra que teu homem já não é deste mundo e que fazes aqui se tens vergonha de não teres vencido na vida que te disseram existir aqui? Ou não sabias que isso podia ser mentira mais vezes do que aquelas que não comes e que teus filhos gritam?

Olha como já pareces tão velha e até nem és. Olha, já te viste? estás tão gorda e passas fome

Ó mulher, vai para donde vieste. Por lá os filhos criam-se na rua e por aqui atropelam-nos os carros

Vai-te embora, é conselho que te dou

Não sabes o que acontece quando não conseguimos? Olha é como aquelas camas do mundo dos homens do nada

Sabes tu o que passei e fiz para me manter aqui hoje e bem? Não sabes, e não adianta saberes. És gorda e pareces velha. Não adiantava tentares.

Mas, ó comadre, eu vou tentar mais uma vez. O Sr. Amparo é bom homem, olha até o nome dele! por Deus ele ajuda, e parece que conhece alguém que me deixa ser eu a limpar o lixo daqueles prédios e até, quem sabe, posso por lá encontrar nos caixotes algumas coisas que sirvam para a vida, e aos poucos, poder até tomar conta de lixeiras e ser eu a mandar quem entra lá, e claro serão todos

mas eu finjo que não, e sou patroa, e depois levo os filhos comigo e eles aprendem o ofício do grande lixo e vão ser melhores do que a mãe, impedem de entrar quem não pague e um dia têm futuro. Vais ver comadre. Vou agora falar com o Sr. Amparo – olha-me o nome dele, por Deus! -  e vou pedir trabalho em nome dos filhos. Vou já, já que ele sai às sete

Ó senhor, ó senhor Amparo? Lembra-se de mim? Sou a preta dos lixos bem limpos de há uns anos e olhe que preciso tanto, tanto de ajuda

Sim, recordo-me de si. Sim, vou de comboio. Venha comigo Tina. Vamos juntos e você diz-me o seu contato que envio a pedir trabalho para si

Ó senhor Amparo, eu bem sabia, eu bem sabia, por Deus!

As portas do comboio fecharam-se às pernas da Tina e com a dor ela voou em desamparo para dentro da carruagem, cara no chão, ali ficou sem se mover

Quando as pessoas se aproximaram a Tina não podia andar

Fraturara o joelho que num súbito perdera o formato, mas ainda disse a sorrir, olhando para o Sr. Amparo, com as lágrimas a escorreram desalmadas, tal a dor

mais logo ponho-lhe uma pomadinha

 

Teresa Bracinha Vieira

FRANCISCO: HÁ NOVE ANOS PAPA

  

 

1. Fez no passado dia 13 nove anos que Francisco foi eleito Papa. Apresentou-se de modo simples na varanda de São Pedro à multidão, sem esplendor, apenas com a batina branca e uns sapatos toscos. E logo na saudação à multidão ficou claro ao que vinha: “Agora iniciamos este caminho, Bispo e povo..., um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos sempre uns pelos outros. Rezemos por todo o mundo, para que haja uma grande fraternidade. Espero que este caminho de Igreja seja frutuoso para a evangelização. E agora quero dar a bênção, mas antes... peço-vos um favor: antes de o Bispo abençoar o povo, peço-vos que rezeis ao Senhor para que me abençoe a mim. Façamos em silêncio esta oração vossa por mim...”


Escolheu o nome de Francisco, o que nenhum Papa anterior tinha feito. Em ligação com São Francisco de Assis, o da simplicidade, da fraternidade universal, da paz, do vínculo com a Terra, do que tinha ouvido Cristo dizer-lhe: “Repara a minha Igreja em ruina...” Não foi viver para o Palácio Apostólico mas para a Casa de Santa Marta, utiliza um carro modesto, e é cristão — eu disse-o na televisão, logo quando foi eleito, causando imenso espanto e até perplexidade; mas, pensando bem, não é essa a causa de ele se ter imposto ao mundo como uma voz político-moral global, talvez a mais influente? Como cristão, bate-se pela paz, é simples, está com todos, a começar por aqueles e aquelas com quem ninguém está, é profundamente humano, o Deus que anuncia é o do Evangelho: o seu nome é Misericórdia...


2. Nas reuniões prévias ao conclave no qual foi eleito, tomou mais consciência da crise que a Igreja está a atravessar e de como era urgente uma reforma, para acabar com o longo inverno no qual mergulhara... Evidentemente, a reforma tem de ir ao interior e começar por cada católico/católica, com destaque para os padres, cónegos, bispos, cardeais, perguntando cada um, cada uma a si mesmo, a si mesma: Estou na Igreja porquê? Apenas por tradição? Por rotina? Ou porque a mensagem do Evangelho me interessa de modo vital? Ela é boa para mim? Para mim? Só com a resposta positiva a esta pergunta se poderá avançar para a reforma da Igreja enquanto instituição. Mas, por outro lado, também é certo que há  reversibilidade: a reforma da instituição ajudará na resposta pessoal de cada um, de cada uma.


Assim, acompanhado por um pequeno grupo de cardeais, ao longo destes nove anos, Francisco empenhou-se profundamente nesta reforma, que implica — ponto essencial —, a reforma da Cúria, apesar  de ter consciência de que “é mais difícil reformar a Cúria do que limpar a esfinge do Egipto com uma escova de dentes”. E, inopinadamente, sem fugas de informação, no passado dia 19, no nono aniversário do início solene do seu pontificado, Francisco promulgou a “Constituição Apostólica “Praedicate Evangelium” sobre a Cúria Romana e o seu serviço à Igreja no Mundo”, que entra em vigor no próximo dia 5 de Junho, dia do Pentecostes.


No título, “Praedicate Evangelium”, está o núcleo: “Pregai o Evangelho”. De facto, para que serve a Igreja senão para anunciar por palavras e obras o Evangelho, a notícia boa e felicitante de Jesus, a cada pessoa e à Humanidade inteira? Assim começa a Constituição: “Esta é a missão que o Senhor Jesus confiou aos seus discípulos. Este mandato constitui o primeiro serviço que a Igreja pode prestar a cada pessoa e a toda a Humanidade no mundo de hoje. A isto foi chamada.” 


O núcleo é a evangelização, e aí está uma Cúria humanizada, desclericalizada, numa Igreja em saída, não autorreferencial, sinodal, povo de Deus, ao serviço... Francisco põe em marcha “a revolução da primavera na Igreja”, como José Manuel Vidal, director de Religión Digital, gosta de lhe chamar.


Com 250 artigos, o texto é longo. Ficam aí apenas algumas notas, com a promessa de que voltarei ao tema. 1. “As pessoas que servem na Cúria são escolhidas entre os bispos, os padres, os diáconos, os membros dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica e os leigos que se distinguem pela sua vida espiritual, a sua boa experiência pastoral”. Mais: os membros da Cúria devem ser exemplares quanto à “sua sobriedade de vida e o seu amor aos pobres, o seu espírito de comunhão e de serviço, a sua competência nos assuntos que lhes são confiados e a sua capacidade de discernir os sinais dos tempos.” 2. Para cercear o “carreirismo eclesiástico”, os membros da Cúria vêem o seu tempo de serviço limitado a 5 anos, excepcionalmente renovado por mais cinco. 3. Como sublinhou o cardeal O’Malley, “pela primeira vez o Papa fez da protecção dos menores uma parte central do governo da Igreja.” De facto, o artigo 78 da Constituição estabelece que, no Dicastério (na linguagem corrente, um Dicastério é um Ministério) para a Doutrina da Fé, “institui-se a Comissão Pontifícia para a Protecção dos Menores, que tem como missão assessorar e aconselhar o Papa  e propor as iniciativas mais oportunas para a protecção dos menores e das pessoas vulneráveis.” 5. Agora, todos os fiéis poderão exercer um poder de governo na Cúria: os leigos, homens e mulheres, poderão ser chamados a presidir a um Dicastério ou outro Organismo. Para dar um exemplo, o próximo Secretário de Estado poderá ser uma mulher. As nomeações são decididas pelo Papa em função da “competência, do poder de governança e da função” da pessoa escolhida. 6. Há um Dicastério (Minitério) da caridade, para ir ao encontro da dor em todo o mundo.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 de março de 2022

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Por uma nova ciência do espaço urbano.


Em 1972, Henri Lefebvre em entrevista (Régnier, Michel. 1972. “Entretiens avec Henri Lefebvre.” L’Office National du Film du Canada. Youtube.) explica que o período urbano atual ainda é pensado de acordo com os princípios estabelecidos durante o período industrial. Para Lefebvre todas as noções símbolos, ideias, conceitos, práticas e representações deveriam ser repensados para de facto passarmos a um período verdadeiramente urbano.


Os problemas urbanos são problemas mundiais e devem portanto ser atualizados. O espaço urbano ainda não foi na realidade reformado, porque as noções de tempo e de espaço numa cidade ainda estão por desvendar. Sendo assim o espaço segrega-se, a população dispersa-se e todos os elementos da sociedade dissociam-se da vida social. Na opinião de Lefebvre, ainda está por descobrir a solução para a reunião e o encontro entre as pessoas que habitam uma cidade.


Nunca na verdade foi feita uma reforma urbana, tal como aconteceu na primeira metade do séc. XX com a reforma agrária. Marx, Engels e Lenine pensaram que a força mais eficaz que seria capaz de questionar a estrutura da antiga sociedade e assim conceber uma sociedade completamente nova, seria a classe operária e o proletariado e assim se deu a reforma proletária sobre o solo cultivado. Porém semelhante reforma não se deu na cidade.


Para Lefebvre a questão da propriedade do solo construído, do solo da cidade é tão importante quanto a questão do solo cultivado. A cidade precisa de uma reforma urbana, que seja profunda o suficiente para ser capaz de influenciar toda a sociedade e toda a sua estrutura. Para Lefebvre, vivemos numa sociedade de classes e isso está bem visível na forma com a cidade está construída.


A questão da especulação imobiliária tornou-se uma questão preocupante, porque sem mecanismos eficazes de controlo da força do mercado imobiliário e dos interesses instalados, por parte do estado, nunca se irá permitir que nenhum planeamento, por melhor que seja, se cumpra.


Para Lefebvre, grave é sobretudo a questão do solo construído que é ainda e sobretudo controlado pelo capital privado. O solo da cidade é tão importante como o solo cultivado. Sem uma reforma urbana nem arquitetos, nem planeadores sozinhos serão capazes de transformar uma cidade e por conseguinte fazer emergir uma nova sociedade.


Ao mesmo tempo que a sociedade atual se urbaniza cada vez mais, assiste-se a uma espécie de ruralização do fenómeno urbano. Assiste-se a uma assimilação num determinado meio de comportamentos, valores, atividades e atitudes consideradas rurais. Aqui ruralização significa que as pessoas vindas de um meio rural para a cidade não se conseguem adaptar e integrar a nível cultural, social e económico. Simultaneamente assiste-se também a uma reruralização do campo - que contribui para uma maior separação entre a cidade e o campo. Os subúrbios e as periferias não são uma síntese harmoniosa e não ajudam na transição entre estas duas realidades. Segundo Lefebvre, a urbanização da sociedade e a sua simultânea ruralização gerou um processo dialético contraditório.


Ao falar em segregação, Lefebvre refere-se aos espaços particulares que as diferentes camadas e classes de uma determinada sociedade ocupam. Ao estar tudo separado, através do fenómeno moderno da funcionalização, a vida social e pública deixa de existir. Lefebvre explica que no passado as cidades não apresentavam espaços especializados e tinham uma vida urbana intensa - por exemplo a praça do mercado ao apresentar um conjunto de atividades e ao ser polifuncional permitia o encontro entre pessoas mas também permitia a expressão de opiniões e decisões políticas por parte de um ou vários grupos.


Para Lefebvre, um espaço especializado é um espaço morto. A comercialização dos espaços supõe que cada espaço esteja separado para que possa ser vendido e comprado. A especialização do espaço, na opinião de Lefebvre é um fenómeno que advém da divisão do trabalho em parcelas, é consequência de uma sociedade profundamente especializada. Cada espaço de uma cidade atual é preenchido por uma determinada atividade que ocorre num momento preciso do tempo. Se esse momento termina, por qualquer motivo, a atividade perde-se e o espaço esvazia-se. Vivemos, por isso numa sociedade que se constrói através de infinitos espaços fragmentados, isolados e perdidos.


Lefebvre explica que entre 1960 e 1970 foram colocadas ilimitadas esperanças no urbanismo. Durante essa década acreditou-se ser possível fazer do urbanismo uma ciência nova, eficaz e reformadora da vida social. Mas na verdade, o urbanismo por si só, por enquanto, reduz-se a um conjunto de considerações ideológicas e de ações concretas que equilibram uma determinada vontade pública e um interesse privado específico. O urbanismo atual deseja somente a rentabilidade imediata e corresponde a medidas de curto prazo.


Lefebvre adianta porém que não se deve abandonar a ideia de criar uma nova sabedoria ou ciência do espaço, que não se funda através de leis administrativas mas que se gera sim por uma nova longa elaboração da noção de espaço e da noção de tempo-espaço. Esta nova noção de espaço deverá prender-se naturalmente à noção de espaço habitável - e está nas mãos dos filósofos e dos poetas encontrar o verdadeiro significado de habitar. A ideia de espaço como: vivência, presença, memória, multiplicidade, complexidade, permanência, obra de várias atividades humanas, constante relação com um lugar e com o cosmos, materialização de pequenas realidades (onde se pode conhecer e sentir mais, permitindo a construção de diferentes interpretações e pontos de vista diversos acerca da ideia de que se tem do mundo) - é uma ideia poética muito poderosa e poderá reformar a cidade em que vivemos.


“Le Corbusier a cru faire un travail révolutionnaire mais en réalité il a fait le project architectural du capitalisme monopolistique d'état et aussi du socialisme d'état!”, Henri Lefebvre (Régnier 1972)

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

  

De 28 de março a 3 de abril de 2022.


A guerra da Ucrânia está a pôr em grave perigo um património cultural de valor incalculável, que aqui referimos. É a humanidade que está em causa, uma vez que a memória histórica é a memória das pessoas e das culturas.

 


CULTURA EM PERIGO! 
Quando o património cultural está em perigo é a própria humanidade a estar em causa. E temos insistido em que não falamos de pedras mortas, mas de pessoas, como pedras vivas, na expressão do “nosso” António Sérgio, mas também de Rabelais. Longe do entendimento tradicional de um património visto como referência do passado, falamos de uma realidade viva, que abrange transversalmente todos os domínios dos direitos humanos. Quando a Diretora-Geral da UNESCO Audrey Azoulay lançou um dramático alerta a propósito dos bombardeamentos indiscriminados a que temos assistido nas últimas semanas na Ucrânia, afirmou expressamente: “Devemos salvaguardar este património cultural, como testemunho do passado mas também como vetor de paz para o futuro, que a comunidade internacional tem o dever de proteger e preservar para as gerações futuras. É também para proteger o futuro que as instituições de ensino devem ser consideradas santuários”.


De facto, o apelo envolve os monumentos históricos, mas também as escolas e as instituições da ciência e da cultura. Lembramo-nos do hediondo assassinato de Khaled Al Assad, estudioso e guardião de Palmira, que demonstra a ligação íntima que se estabelece naturalmente entre a defesa dos direitos das pessoas concretas e a salvaguarda da sua memória cultural e histórica. Como se sabe, quando se começam por queimar livros ou a destruir a memória humana, acaba-se por matar as próprias pessoas. No fundo, a criação cultural, a sua preservação e a sua comunicação têm a ver com a essência do ser humano. O avanço na UNESCO e no Conselho da Europa relativamente aos conceitos de património cultural e de direitos culturais tem contribuído, de facto, para ligar os direitos da Declaração Universal de 1948 à vida e à dignidade humana no sentido mais essencial. O caso da Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (2005) é bem demonstrativo disso mesmo. Por isso, o património cultural envolve direitos e deveres, não retrospetivos mas prospetivos, abrangendo o presente e o futuro, de modo a acrescentarmos valor ao que recebemos das gerações que nos antecederam. E o que está hoje em causa no tocante à necessidade de respeitar a Carta das Nações Unidas é a defesa de uma verdadeira cultura de paz e de respeito mútuo. João XXIII disse-o claramente na Encíclica “Pacem in Terris”.


DIREITO PATRIMONIAL COMO DIREITO HUMANO
Quando um tirano viola claramente o direito internacional comummente aceite, e até se propõe erradicar da face da terra um Estado soberano e um povo, de um modo unilateral, recusando o Direito e a própria História, compreende-se que a invocação de direitos culturais assuma uma importância insofismável. Falamos dos fundamentos dos valores éticos, morais e jurídicos.  Julgar que se pode tornar a Carta das Nações Unidas letra morta, esquecendo garantias essenciais como o primado da lei, o multilateralismo, a estabilidade de fronteiras, a soberania legitima, ou o direito de fazer a paz e a guerra são gravíssimos atentados de natureza humanitária, que tocam a essência da memória cultural dos povos e da partilha de um património comum da humanidade. Desde 1945 que a dúvida se não punha, e qualquer incerteza neste domínio a todos prejudicará, uma vez que o que os direitos protegem, os direitos garantem; o que os deveres salvaguardam, os deveres consolidam. O primado do direito a todos interessa, porque assenta no respeito mútuo.


A Ucrânia conta atualmente com diversos bens culturais e um natural, declarados como Património da Humanidade pela UNESCO. Todos estão, agora, diretamente ameaçados: a Catedral de Santa Sofia de Kiev, conjunto de edificações monásticas e o Mosteiro de Petchersk,, símbolo da Nova Constantinopla, de um valor espiritual e unificador incalculável (inscrito em 1990); o Conjunto do Centro Histórico de Lviv, onde que se encontra praticamente intacta a topografia urbana medieval, a que se acrescentam as construções barrocas e posteriores (inscrito em 1998 e 2008); Dezasseis Tserkvas de madeira da região dos Cárpatos, nos territórios da Polónia e Ucrânia, trata-se de templos da igreja ortodoxa tradicional (inscrito em 2013); o Arco Geodésico do astrónomo Friedrich Georg Wilhelm Struve (realizado entre 1816 e 1855), abrangendo dez países, desde o Báltico ao Mar Negro (inscrito em 2005); a Residência dos Metropolitas da Bucóvina e da Dalmácia em Tchernivtsi, junto da Roménia e da Moldávia, do arquiteto checo Josef Hlavka, reflexo da política de tolerância religiosa mantida pelo Império Austro-húngaro (inscrito em 2011); a Cidade Antiga de Quersoneso na Crimeia, que apresenta os restos da cidade fundada pelos gregos dóricos no século V a.C. no norte do Mar Negro, importante centro vinícola envolvendo relações entre os impérios grego, romano, bizantino com referências atá ao século XV (inscrito em 2013); e, no domínio natural, as Florestas Primárias de faias dos Cárpatos, abrangendo 12 países (inscrito em 2007). Além destes casos, refira-se o Centro Histórico de Chernigov, perto de Kiev, agora sob ameaça direta, com referência à célebre Catedral da Transfiguração do século XI. Há já a lamentar a destruição confirmada e irreversível do museu de Ivankiv, localidade a noroeste de Kiev. A instituição apresentava 25 obras da Maria Prymachenko (1908-1997), artista fortemente influenciada pelo folclore ucraniano, elogiada por Pablo Picasso, pelo seu caráter percursor. Segundo a imprensa local poucas obras terão sido salvas por um cidadão local, que enfrentou sozinho as chamas. Note-se que a grave situação no terreno levou alguns especialistas, a duvidarem do efeito positivo do pedido de proteção, com receio de atrair atenções…


ESCUDOS AZUIS PARA PROTEÇÃO
Entretanto, representantes da UNESCO e das autoridades ucranianas decidiram colocar Escudos Azuis nos bens patrimoniais ameaçados na zona do conflito. Além dos casos referidos, foi também assinalado o centro da cidade e o porto de Odessa. Esta prevenção insere-se na aplicação da Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, assinada na cidade de Haia em 14 de maio de 1954. O Comité Internacional do Escudo Azul (Blue Shield ou Bouclier Bleu) foi fundado em 1996 pelo ICOM (Conselho Internacional dos Museus), ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios), Conselho Internacional dos Arquivos e Federação Internacional dos Bibliotecários e Instituições com o fim de assegurar a proteção do património cultural ameaçado por guerras e catástrofes naturais. O acompanhamento deste tema torna-se neste momento melindroso em virtude de o Comité do Património Mundial ser presidido por Alexander Kuznetsov, de nacionalidade russa, estando prevista em junho uma reunião na cidade de Kazan do referido Comité, o que é fortemente contestado. O fundamental é deixar claro que é motivo muito sério de preocupação por parte das organizações multilaterais o facto de haver na comunidade internacional dificuldade evidente em fazer prevalecer a perspetiva dos direitos humanos, dos valores democráticos e a ligação efetiva destes ao desenvolvimento humano e à cultura.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

TRANSFUGA DA NATUREZA...


Não se volta atrás, não há regresso possível. O que era foi, sem repetição alcançável. Disse Ortega y Gasset que "el hombre es un transfuga de la naturaleza". E por isso, por em cada um de nós se iniciar e progredir sempre a consciência da liberdade de ser, somos, em música, uma fuga. Desenvolvemos um tema. Ou, em poética, glosamos um mote. À procura dessa qualquer harmonia, do que, à frente e para além, nos reconstitua na felicidade. Esta terá sido perdida - assim nos contam os relatos originais em textos religiosos e filosóficos - mas talvez volte a ser possível, não como regresso, só como porvir. Os homens são como as árvores: precisam de raízes para crescer, são uma semente cuja sombra possível ninguém conhece. Mas no advento de qualquer futuro - ainda que incógnito - de pessoas, instituições, nações, culturas ou civilizações, há sempre uma parte decorrente do exercício da nossa responsabilidade. E este é inalienável. Este ano, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído à União Europeia. Qualquer "Nobel" vale o que qualquer pessoa lhe queira atribuir, é contingente como todas as coisas do mundo. Mas, em tempo de crise, este gesto dá que pensar: afinal, o que se destaca e premeia é a realização de alianças e instituições supranacionais que conduziram a Europa das guerras a décadas de paz; mas é também uma chamada de atenção para um projeto que, parecendo emperrado, terá de encontrar inspiração e caminhos para o futuro. Quando, sem grande surpresa, recebi a notícia de já se discutiria quem, de entre Barroso, Van Rompuy e Schultz, deveria ir a Oslo receber o prémio, encantou-me a sugestão da Comissária Cacilia Malmstrom: "Porque não enviar 27 crianças?" E ocorreu-me uma ideia de Jean- Louis Bourlanges que já aqui citei: "Não foi a Europa que fez a paz, mas a paz que fez a Europa". Na verdade, na sua memória histórica que lhe mostrou o quanto violou o princípio da paz, todavia bem presente na inspiração cristã das suas raízes espirituais, encontrou a Europa a razão da paz que a uniu. Mas é hoje necessário compreender como a paz só se mantem pela justiça e pela solidariedade. Na verdade, a frase de Bourlanges não se refere à paz no sentido inspirador com que dela aqui falamos, mas quer, sim, dizer que a CEE percursora da União só foi possível graças à pax americana, garantida pelo plano Marshall e pela proteção defensiva que os EUA asseguraram. Pessoalmente, penso que essa "entrega" da defesa europeia explica, em grande parte, quer a incapacidade de se constituir uma intervenção europeia independente e comum em palcos internacionais como os Balcãs ou a Líbia, quer o acento posto, pelos Estados Membros, na preferência por ações em que cada um considerava prosseguir objetivos de interesse ou prestígio nacional. Hoje, já não temos Plano Marshall e temos o euro. A continuidade da construção europeia, de modo a assegurar a harmonia interna e a sua irradiação, portadora de valores de justiça, esperança e paz, num mundo global, só será possível se os nossos povos e os nossos políticos tomarem consciência firme da riqueza espiritual da Europa, onde mergulham as nossas raízes comuns e ganham sentido propósitos de entreajuda e solidariedade social. É certamente necessário pôr cobro ao facilitismo de um despesismo imprudente ou irresponsável, seja dos indivíduos ou dos Estados. E aqui será indispensável corrigir os comportamentos e propostas, sobretudo os relativos a símbolos de riqueza ou de poder (v.g. a frota automóvel da classe política) e ao gosto do luxo e do supérfluo, que os noticiários e a publicidade todos os dias nos apresentam. Só porque o exemplo também manda nas mentalidades. Como é necessário que os Estados hoje menos afetados pela crise compreendam que esta, agravando-se, começa a bater-lhes à porta. E que não é com ressentimentos históricos (de que a Alemanha, p.ex., foi vítima entre as duas grandes guerras do séc. XX) que se cria o clima propício à correção de erros e à procura de um futuro melhor. Finalmente, teremos de tratar a res publica com sentido no bem comum, e jamais no modo doentio da prossecução de interesses particulares, classistas, sectoriais ou partidários, nem com o desejo de protagonismo que torna a ação dos nossos políticos num lamentável exercício de "marketing" político. Antes, e mais do que económica e financeira, a nossa crise é de cultura ética.

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 19.10.12 neste blogue.

TEATROS HISTÓRICOS EM LISBOA: TEATRO DAS FANGAS DA FARINHA

  


Temos aqui referido o património histórico dos teatros-edifícios construídos e/ou adaptados ao longo do país, em sucessivas fases da História do Espetáculo, e aí cobrindo, desde as realizações iniciais, aos tempos atuais: e sempre tendo em vista a própria realidade do teatro como expressão de um texto que é apresentado ao publico de acordo com os hábitos culturais e as técnicas de cada época.


E de tal forma assim é, que não nos podemos vincular à arquitetura específica e à técnica correspondente de cada expressão de espetáculo cénico.


Por isso aqui temos evocado sucessivos espaços de espetáculo teatral, desde as primeiras manifestações até à geração mais recente, e isto no ponto de vista dos autores, dos arquitetos e do público: pois teatro é espetáculo e sem público – nem que seja um único espetador – não há espetáculo!...


E isto vem a propósito, precisamente, de uma efeméride teatral que neste ano de 2019 completa exatos 5 séculos: a saber, a estreia em 1619 de um espaço teatral, o chamado Pátio das Fangas da Farinha, no que é hoje a Baixa lisboeta.


Vejamos então.


A partir de 1590, o empresário, diríamos hoje, Fernão Dias de la Torre, castelhano de origem e de cultura, organiza em Lisboa o que se pode considerar o primeiro espaço público de espetáculos, o chamado Pátio das Arcas, situado na zona que hoje corresponde mais ou menos à Rua Augusta. Para tal, obtém autorização do Hospital de Todos os Santos. E assim prossegue uma atividade de produção de espetáculos.


Ora o que é mais curioso é que a zona consagra pelo menos desde aí uma vocação, digamos assim, para a realização de espetáculos e de espaços musicais e teatrais. E assim, em 1619, portanto há exatos 400 anos, inicia atividade o chamado Pátio das Fangas da Farinha, próximo do que viria a ser o Tribunal da Boa Hora.


Em 21 de novembro de 1622 o Município de Lisboa emite um documento divulgado por Eduardo Freire de Oliveira em 1888 (in “Elementos para a História do Município de Lisboa”) que citamos na nossa “História do Teatro Português” e que aqui se evoca.


Transcreve então Freire de Oliveira:


“A Relação se meteu em perturbar a jurisdição da cidade, mandando derrubar o Pátio das Fangas da Farinha (...) e ora chegando à nossa notícia que o Pátio da Rua das Arcas estava em notável perigo de arruinar e cair com o peso da gente se ordenou ao vereador do pelouro das obras que com o arquiteto da cidade e mais ministros dela fosse ver a fábrica do dito Pátio da Rua das Arcas e por todos, debaixo de juramento, foi dito que a obra estava fraca e notável risco de vira abaixo com o peso da gente, o que acontecendo, o que Deus não permita, mataria e estropiaria muita gente (...) deem licença a este Senado que mande concertar o das Fangas da Farinha”...!


Quer dizer: já nessa altura os poderes públicos se envolviam em problemas de gestão da infraestrutura de espetáculos!...

DUARTE IVO CRUZ

 

Obs: Reposição de texto publicado em 06.07.19 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


98. SOBRE O DIREITO À GUERRA  


A doutrina sobre a guerra justa, prevaleceu até à atual institucionalização do sistema internacional de Estados o qual, baseado na conceção bodiniana de soberania, passou a garantir o uso da guerra sem recurso a qualquer justificação, transformando o Estado num sujeito de direitos absolutos, num ente que teria no seu interior o seu próprio fim. O direito internacional assentava no princípio da autolimitação dos Estados, sem o reconhecimento de uma autoridade que lhe fosse superior, dirigindo-se às pessoas através do direito interno estadual.   

Estava-se, assim, perante um sistema legal que embora apelando a um recurso irrestritivo da guerra, não era credível, dado que os estadistas sentiam necessidade de justificar o recorrerem a ela, não aceitando que todos os recursos bélicos fossem de igual modo justos ou de igual modo injustos.

Este ganho do pragmatismo sobre a teoria, pôs em causa as bases da doutrina da guerra justa, facilitando uma regulamentação moderada das regras bélicas, porque só possível  regular o que é permitido e não o que é proibido.

Só a aprovação do direito à guerra, do jus ad bellum, pode admitir a imposição do direito na guerra, do jus in bello, a ambas as partes. O que se questionava era o direito na guerra e não à guerra.   

Entretanto, os conflitos bélicos foram aumentando continuamente de extensão e intensidade, desde as guerras religiosas, dos séculos XVI e XVII, de gabinete, Estado a Estado, às guerras políticas, primeiro com as guerras iluministas, depois com as  nacionais, passando com a revolução francesa a fazer-se o recrutamento em toda a nação. Nos séculos XIX e XX fez-se a aplicação do modelo da revolução industrial às atividades bélicas, nomeadamente a partir de 1870, com a guerra franco-prussiana. As guerras nacionais passaram, sucessivamente, a regionais e mundiais. 

Mas só com a primeira guerra mundial houve um grande envolvimento nacional de recursos no conflito, com a transformação maciça dos soldados em mera carne para canhão, designadamente com a morte em série provocada pela introdução em contenda da aviação, da metralhadora, do carro de combate, do gás e do submarino, a que acresceria o poder nuclear na segunda grande guerra.                      

 

25.03.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

A cidade fragmentada: a compaixão intacta


E firme a estação das flores vai chegando a prometer-se, viva e próxima

Peço-te que acredites que o mar vai chegar numa soma
E que os dias vão começar a durar mais para que mais nascimentos tragam novas falas
Até lá

A levedura que te dou é a do espremer do coração

Descansa agora.

Aí, é a minha vez de ficar eu por ti.

 

  Teresa Bracinha Vieira

RELIGIÃO E SACRIFÍCIO

  


Ele foi Auschwitz. Ele foi o Goulag. Ele foi e é a Ucrânia... Ele foi/é o abuso ignominioso de crianças pelo clero... A tantos homens e mulheres a quem foi prometida a liberdade, e eles desafiaram o medo! Depois, precipitaram-nos no inferno. Deportaram-nos, fuzilaram-nos, massacraram-nos. Eles gritaram, clamaram, já não havia lágrimas... O Calvário do mundo...

Onde está o Homem? Quanto vale um homem, uma mulher, uma criança? Perante tanta iniquidade e horror, assalta-nos a vergonha.

As palavras dignidade, indignidade, direito, justiça, injustiça, vergonha, bondade, civilização, honra, ternura, compaixão... ainda fazem parte das línguas dos humanos ou foram varridas dos dicionários?

“Senhora, tem piedade... Senhor, tem piedade de nós! Senhor, tem piedade do povo... Senhor, tem piedade de mim!”

Mas, aparentemente, também Deus se mantém mudo.

Será que Deus não tem vergonha? A própria Bíblia a um dado momento, perante o crescendo da maldade humana, diz que Deus se arrependeu de ter criado o Homem. Arrepender-se também quer dizer ter vergonha e pena.

Perante o sofrimento dos inocentes, Ivan Karamázov apressa-se a devolver o seu bilhete de entrada na harmonia futura. Em A Peste, Albert Camus coloca o médico Rieux a dizer ao jesuíta Paneloux: "Não, padre. Eu estou disposto a recusar até à morte amar uma criação onde as crianças são torturadas".

Face à crueldade hedionda e à mesquinhez bárbara e reles dos humanos e à massa incrível da história do sofrimento, sobretudo dos inocentes, para muitos está decidido: Não há Deus! O padre Eloi Leclerc, franciscano, que, com apenas 20 anos, viveu a terrível experiência dos campos de concentração nazis, a descida aos infernos, disse: “Quem não passou por essa experiência não pode sequer imaginar o que isso é. É o momento do silêncio absoluto de Deus, da ausência. Podia elevar os olhos ao Céu, mas o Céu não respondia. Os gritos não chegavam lá. Então compreendi que se pode perfeitamente ser ateu. Perante tanta desgraça, solidão e sofrimento, pode-se ainda acreditar no Deus do Amor?”

Mas, aqui, recomeçam as perguntas: Donde vem a nossa indignação? Qual é a fonte da nossa revolta, da nossa rebelião? E porque é que não nos resignamos?

Afinal, criminoso, horrendo, infame, brutal, insuportável, arrepiante, intolerável..., ainda são valorações morais. Indignar-se com Deus, rebelar-se, protestar contra Ele, ainda é por exigência moral. Estamos atenazados: somos seres morais, exigindo o Bem infinito, e comportamo-nos ignominiosamente.

Como escreveu o teólogo Johann Baptist Metz, "a pergunta a Deus é a piedade da teologia", e, assim, também sabemos que um Deus indiferente não seria Deus, mas um monstro. Na cruz de Cristo, Deus revelou-se como aquele que sofre connosco e por nós. Um Deus indiferente à dor só poderia conduzir os humanos à indiferença.

Mas que pensar do sacrifício na sua relação com Deus?

Perguntam-me por vezes o que é que eu penso sobre o gesto daquela gente que, em Fátima, se arrasta de joelhos...

A resposta é simples: evidentemente, tenho compreensão sincera e compassiva (no sentido etimológico da palavra compaixão) para com aqueles e aquelas que, no abismo da sua dor ou tragédia, se convenceram de que, arrastando-se diante da divindade, a comoveriam e forçariam a ajudá-los...

Mas também é evidente para qualquer ser pensante que um Deus que, para ser favorável ao ser humano, precisasse de toda aquela humilhação e tortura era um Deus sádico, que, por isso mesmo, não poderia merecer consideração nem respeito. Perante um Deus sádico, só há uma atitude humanamente digna: ser ateu.

No entanto, foi pregado tonitruantemente ao longo de demasiado tempo que Deus precisou do sangue do próprio Filho para aplacar a sua ira...

Pergunta-se: como é que foi possível pregar e acreditar num Deus vingativo e sádico, um Deus pior que qualquer pai humano sadio, decente?...

É evidente que Jesus não morreu na cruz para aplacar a ira de Deus. Jesus foi vítima daqueles que não aceitaram a sua mensagem, o seu Evangelho, notícia boa e felicitante, que é: Deus é bom. Há quem não queira o Deus bom.

A cruz de Cristo é a expressão máxima do amor incondicional de Deus para com todos os homens e mulheres. Jesus, o excluído, é aquele que não exclui ninguém. Pelo contrário, inclui a todos no amor sem condições.

É isso: o sacrifício pelo sacrifício é detestável. Mas, por outro lado, nada vale realmente sem sacrifício. Por causa do império de uma banalidade mole hoje triunfante, é recusado a muitos o sabor daquela alegria que resulta da superação de obstáculos. De facto, nada de grande, belo e valioso e digno se faz e constrói no mundo sem sacrifício. Os valores merecem que nos batamos por eles, e é esse sacrifício enquanto luta por aquilo que vale que nos engrandece como seres humanos.

Quem diz que ama e não está disposto a sacrificar-se por aquele que ama anda enganado e mente a si próprio. Quem ama verdadeiramente está disposto a sacrificar-se por aquele, por aquela, por aqueles que realmente ama. É esse amor que salva o mundo.  

Àqueles que o criticavam por participar em banquetes oferecidos por pecadores públicos Jesus respondeu: "Ide aprender o que significa: “O que eu quero é misericórdia e não sacrifício'". E também disse: "Quem quiser seguir-me tome a sua cruz todos os dias". Referia-se àquela cruz que dá testemunho da verdade e que acompanha o combate pela liberdade, pela dignidade, pela justiça, pelo amor. Pela solidariedade com a Ucrânia...

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 de março de 2022

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

 

Espaço é um instrumento hegemónico poderoso.


“(Social) space is a (social) product.” (Lefebvre 1991, 26)


No livro The Production of Space, Lefebvre avança com a ideia de que ao mudar-se a vida e a sociedade, deve inevitavelmente revolucionar-se o espaço. Lefebvre acredita que a pessoa humana comum é um ser social capaz de produzir a sua própria vida, a sua própria consciência e o por isso também produz o seu próprio espaço: “...each living body is space and has its space: it produces itself in space and it also produces that space.” (Lefebvre 2008, 170)


Lefebvre explica que a cidade é a materialização de dois circuitos de capital. O circuito primário diz respeito ao investimento de capital em mão de obra, em materiais e em máquinas de maneira a produzir produtos que possam ser vendidos no mercado e de modo a gerarem lucro que de novo poderá ser aplicado em novos investimentos. O circuito secundário diz respeito aos bens imóveis, ao capital investido em propriedade e no seu lucro. É através destes dois circuitos que se avalia a estabilidade, o rejuvenescimento e o declínio de uma cidade moderna.


Na cidade, na opinião de Lefebvre, o capital é hegemónico. Por isso é o capital que produz o espaço da cidade. O espaço ao ser produto de uma sociedade é necessariamente uma rede de relações sociais - é um produto social. Cada sociedade produz um espaço único, adaptado às suas necessidades e condições.


Na sociedade, os seres humanos produzem espaços sociais. As relações sociais, que são abstrações concretas, não têm existência real, mas existem e concretizam-se através do espaço. O espaço é assim, um produto e um meio de produção. O espaço é tão importante ao produzir o ambiente em que vivemos, porque somos constantemente moldados e influenciados pelo espaço que nos rodeia. O papel do governo é vital na determinação e conceção espacial de uma cidade - ao ter a capacidade para atrair investidores, ao possuir grande parte da propriedade e ao ter a competência legal para impor condições e sanções.


O espaço urbano é assim propriedade daqueles que têm dinheiro e poder. É pensado e concebido por um determinado conjunto de pessoas com determinadas necessidades e vontades mas é de facto vivido e experienciado por outro conjunto de pessoas (o indivíduo comum) que tem de se adaptar e obedecer a regras pré-estabelecidas. Para Lefebvre, o espaço real e vivido é um resultado do concebido e do percecionado. E as ideias dos proprietários e gestores de um determinado espaço nem sempre coincidem com as ideias do indivíduo comum que experiência e que utiliza esse espaço. Existe, por isso, naturalmente uma tensão entre o indivíduo comum e o capitalista. Na opinião de Lefebvre, essa tensão, materializa uma forma de repressão e esmagamento do indivíduo comum pelas classes dominantes.


Espaço é e sempre foi um instrumento hegemónico poderoso. Sobretudo se é a concretização do domínio, da manipulação, da exploração e da influência extrema de um conjunto de pessoas em relação a outro. Apesar de ser criado pelo ser humano, é um produto do poder e o indivíduo comum não tem nunca hipótese de criar o seu próprio espaço. A sociedade moderna só produz assim o espaço requerido e pensado pelo capital e pelo investidor.


Ana Ruepp

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