REGRAS TÉCNICAS. E AS PESSOAS?
Do que aqui se tem dito, facilmente se poderá entender que a perplexidade de quem pretende encarar e ajudar a resolver a "crise" decorre, por um lado, da crescente verificação de que as receitas "técnicas" que, aparentemente, poderiam trazer uma saída viável não se coadunam, nem com a capacidade das populações para aceitarem os remédios propostos, nem com a apregoada austeridade necessária: é como estar preso por ter cão e preso por não ter. Ou seja: vivemos numa cultura que refere a vida das pessoas ao desempenho do "homo economicus": todos acreditaram em que o crescimento do PIB era desenvolvimento social e humano, discordando uns dos outros apenas quanto ao modo de divisão do bolo. A planificação de uma economia centralizada deu os resultados que todos sabemos; a regulação entregue ao mercado vai-nos conduzindo ao impasse que antevemos. Promoveu-se o consumo, o crédito ao dito e o apagão de outros critérios de comportamento, na crença de que se induziria uma interminável espiral de produção e rendimento, que o bondoso e atento mercado naturalmente regularia. Hoje, destruídas as ilusões fáceis, opomos em discussão outras ilusões. Mas a evidência é que, no quadro do aberrante sistema que criámos, ou não se consome como nos ensinaram, ou não se pagam as dívidas como se pretende.
Inverteu-se a espiral. Por outro lado, a perplexidade decorre da nossa incapacidade para mudar de cultura. Ficamos agarrados ao materialismo serôdio das opções de vida que nos propuseram e abraçámos e às respetivas regras de "sucesso": o trabalhador por conta de outrem só se interroga sobre se estará a alimentar o infame capitalismo quando o seu salário não é aumentado, mas não quando foi consumindo coisas várias, sobre as quais nunca se perguntou se seriam supérfluas, ou mesmo nocivas e deseconómicas; o gestor financeiro reclama ao povo consumidor que pague as dívidas que ele incitou, sem jamais se inquietar com o valor humano do que propunha, quando apenas pensava no "valor" acrescentado para os acionistas. Até no ensino, que deveria ser educação, nos esquecemos da formação do espírito crítico, da consideração do outro, da solidariedade, da procura compreensiva das nossas raízes, do gosto do belo, do lúdico até, pela música e pelas artes e a literatura. Hoje, muito daquilo a que chamamos cultura é também objeto de consumo, e disso tudo se fala numa perspetiva economicista: discutem-se, de uma e de outra banda, subsídios e preços, já não se fala em valores. Vem a talho de foice citar a filósofa americana Martha Nussbaum, no seu "Not for Profit - why democracy needs the humanities": "No que todavia insisto (...) é nas faculdades de pensamento e imaginação que nos tornam humanos e fazem, das nossas relações, relações humanamente ricas, não meras relações de utilização e manipulação. Quando nos encontramos em sociedade, se não tivermos aprendido a olhar para nós e para os outros dessa maneira, imaginando uns nos outros faculdade íntimas de pensamento e emoção, a democracia está condenada a falhar, porque a democracia se constrói sobre o respeito e o cuidado do outro, e estes por sua vez se constroem sobre a capacidade de ver as outras pessoas como seres humanos, e não simplesmente como objetos". Daí concluir a necessidade imperiosa de dar um lugar largo - como ainda hoje é, aliás, facultado no ensino norte-americano - às humanidades nos curricula escolares tão programados para efeitos de produzir agentes do crescimento do PIB... Creio que a "crise", portuguesa ou outra, não se resolve com receitas financeiras nacionalmente aplicadas, mas apenas num quadro europeu, que deve ser um projeto novamente inspirado.
A Europa terá de ir buscar às suas raízes humanísticas a inspiração necessária a uma nova democracia. Terá de se reaprender com a sua história. A limitação dos objetivos da construção europeia à gestão do crescimento económico só nos trará frustrações, quer para as aspirações dos que pensaram aceder ao eldorado, quer - como já começamos a verificar - para os que pensavam que o seu próprio "sucesso" económico lhes garantiria o privilégio de exigir dos outros o cumprimento de deveres de subalternidade. O que é assim verdade para os estados e nações, deverá também ser entendido pelos agentes económicos enquanto classes sociais. Com a exposição crescente, até ao pormenor, da vida e da riqueza privadas - ainda por cima designadas pela publicidade, que faz "funcionar" o sistema, como "ideais" de vida para todos - o mercado das ilusões vai-se fechando em ghettos e ressentimentos. Não deixa, aliás, de ser curioso ver como o fim do coletivismo soviético é a plutocracia russa. E será talvez assustador demorarmo-nos na consideração dessa bomba de rebentamento universal que poderá ser o "capitalismo de Estado" (?) chinês. Talvez valesse a pena voltarmos ao princípio de todos os valores: a pessoa humana como medida de todas as coisas.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 05.10.12 neste blogue.